Cervejaria Solmar, Lisboa
|
Jorge de Sena no Martinho da Arcada com Fernando Pessoa,
e o Cirurgião na Ilha de Moçambique com Camões
Certo dia, no Verão de 1975, Jorge de
Sena, Luís Amaro e eu almoçámos no restaurante e cervejaria Solmar, em Lisboa,
a convite de Luís Amaro. No fim do almoço, Luís Amaro disse que tinha de voltar
para o trabalho, na Gulbenkian, e despediu-se. (Luís Amaro era então o Secretário
da Redacção da Revista Colóquio- Letras, como depois viria a ser
Consultor editorial, como depois não viria a ser nada na dita revista, mesmo
apesar de continuar a trabalhar nela e para ela. Sucediam-se os directores e
ele continuava sempre como secretário da redacção ou como consultor editorial
ou como nada, apesar de ser ele o verdadeiro fazedor da revista, desde a
primeira hora. A raiva que a D. Mécia mais de uma vez tem manifestado – raiva
que era também a de Jorge de Sena e que
é também a minha - por não terem promovido o Luís Amaro a director da revista,
logo a seguir à morte do primeiro director, o Prof. Hernâni Cidade! Unicamente
– lamenta com justa razão a D. Mécia – por o Luís Amaro não ter o título de
Dr..) Foi nesse momento que Jorge de Sena me propôs que fôssemos tomar o café
ao Martinho da Arcada. E enquanto tomávamos o café, Jorge de Sena, voltado para
o Tejo, falou-me, meio alucinado e
transfigurado, de Fernando Pessoa e da sua “Ode Marítima”, assim como me falou
do que já tinha escrito e tencionava vir a escrever sobre ele. E outrossim me
falou, sibilinamente, da sua velha e irresistível atracção e paixão pelo mar e
da sua vocação nunca realizada, facto que ele cripticamente resumira nestes
quatro versos de “’La cathédrale engloutie’ de Debussy”: “Submersa catedral
inacessível! Como perdoarei / aquele momento em que do rádio vieste, / solene e
vaga e grave, de sob as águas que / marinhas me seriam meu destino perdido?”.
À distância de tantos anos, só tenho pena de não ter
gravado as palavras do Mestre, ou pelo menos tê-las entregado ao diário que de
longe em longe, muito esporadicamente, porém, eu escrevia, mas, infelizmente,
não por essa época.
Tivesse havido oportunidade e não estranho que Jorge
de Sena, tal como me tinha convidado a tomar café com ele no Martinho da
Arcada, me tivesse convidado a sentar-me com ele à mesa em Creta, para em sua
companhia tomar café com o Minotauro, e sobretudo para Jorge de Sena ter uma
testemunha ocular desse memorável e mítico encontro.
Poderia ter acontecido isso na Ilha de Moçambique, em convívio com Luís Vaz de Camões, carente de
dinheiro e de amigos, com excepção do seu matalote Diogo do Couto (mai-los que
este não cita). Mas, infelizmente, após um breve encontro em Lourenço Marques,
no verão camoniano de 72, os nossos respectivos anfitriões levaram-nos à Ilha
de Moçambique em datas diferentes, o que para sempre lamentarei, pois ter
convivido com os manes de Camões, na muito real e mítica Ilha de Moçambique, em
companhia de Jorge de Sena, primaz dos camonistas do seu tempo, teria sido para
mim o sonho dos sonhos.
Verdade é que Jorge de Sena não precisava de
testemunhas oculares, para dar a conhecer aos seus contemporâneos e aos seus
vindouros as romagens e as peregrinações que fazia aos templos dos vates e dos
deuses e também “ad loca infecta”. Tudo era registado, ao pormenor, no armazém
da sua memória prodigiosa e nas cartas diárias (“diárias”, repare-se bem) que
ele escrevia à esposa, quando viajava, para já não falar das cartas aos amigos
e confrades e das entradas no diário, dos poemas ou prosas celebratórias, que
poderiam chegar até ao conto ou à novela, como de facto chegaram.
Aliás, por falar no meu convívio com Camões, a mais de
quatro séculos de distância, na Ilha de Moçambique, devo referir que durante
quase três semanas do verão de 72 visitei, como convidado inesperado do Governo
Português, a assim chamada Província Ultramarina Portuguesa de Moçambique, com
tratamento de VIP (como nas semanas anteriores visitara a chamada Província
Ultramarina Portuguesa de Angola). E, no decorrer dessa visita, chegou o dia em
que o meu guia me levou de carro da cidade da Beira à Ilha de Moçambique, onde
passei dois dias inesquecíveis.
Era sábado ou era domingo? Faço-me esta pergunta
porque, a caminho da Ilha, dei de repente com um grande agrupamento de pessoas,
reunidas à volta de uma espécie de ermida. Sentadas umas e outras de pé, à
sombra de frondosas árvores, estavam todas vestidas de festa, com roupas muito
vistosas e coloridas e a piquenicar. Curioso, perguntei ao meu guia do que se
tratava. Nada de especial – respondeu–me ele. Tinham todos acorrido ali porque
era dia de pagamento de impostos. – Meu Deus! – exclamei eu. Se fosse comigo,
vestia-me de luto, não de festa e ainda por cima de roupa tão garrida. Razão
tinha quem criou o brocardo latino (ou apotegma jurídico?): “Distingue tempora
et concordabis jura.”
As primeiras horas na Ilha foram passadas em companhia
do meu guia oficial, visitando os principais monumentos turísticos. Ao passar
por uma mesquita, perguntei ao guia se se tratava também de um monumento
oficial e ele respondeu-me que não. Entretanto eu, que nunca entrara numa
mesquita em nenhuma parte do mundo, manifestei interesse em visitar essa. Tendo
compreendido o meu interesse, o guia pediu-me que esperasse um momento, que ele
voltava logo. Que aconteceu então? Ele entrou na mesquita e, passados uns
breves momentos, apareceu-me acompanhado de um senhor. Feitas as devidas
apresentações e os devidos cumprimentos, entrámos. Os primeiros momentos foram
de recolhimento, quase de silêncio total, apesar de haver um número razoável de
pessoas – todos homens – dentro da mesquita. Porém, quando ia para sair, vi-me
rodeado de vários muçulmanos, quase todos de túnica e de turbante. E, para
espanto meu, noto que se aproximam de mim e começam a implorar-me que me faça
eco junto do Governo Português de várias carências deles. É que se tinham
convencido, não sei bem por quê, que eu devia ser uma pessoa importante e com
influência junto do Governo de Lisboa. E no momento em que ia para sair, quase
em coro, gritam bem alto: nós não somos católicos, mas somos portugueses. Viva
Portugal e viva Salazar (e a verdade é que já havia quatro anos que Salazar caíra
da cadeira, no Forte de São João do Estoril, e que Marcello Caetano era o
primeiro ministro de Portugal. O que me faz lembrar o que cheguei a ouvir, em
criança, da boca dos portugueses de algumas aldeias transmontanas, por ocasião
de uma das frequentes visitas do Presidente da República Portuguesa, o Marechal
António Fragoso Carmona, a Chaves, de
onde era oriunda a sua esposa, Madame Carmona: - Viva sua Majestade El-Rei).
Tendo chegado ainda antes do meio dia, fiz questão de
ver e rever monumento a monumento, pedra a pedra, desde a primeira igreja
construída pelos portugueses na costa oriental da África até ao Palácio do
Governador. Por volta da meia noite, recolhi ao hotel, onde creio ter sido o
único hóspede, com excepção de um casalinho em lua de mel – ela da Rodésia e
ele dos Estados Unidos -, e fui deitar-me. Mas, como o tempo passava, e eu não
conseguia adormecer, levantei-me, saí do hotel e pus-me a percorrer sozinho
toda a Ilha. No meio do maior silêncio de uma noite estrelada de Agosto, apenas
quebrado pelo doce, manso e misterioso marulhar das ondas, nunca na minha vida
tinha sentido tanta emoção como português. Cada pedra falava-me de uma gesta
cometida pelos portugueses de antanho! Possuído de uma espécie de intoxicação
mística, com a mente a transbordar de caravelas e de guerreiros e de
missionários e de aventureiros, sei que houve um momento em que me vi impelido
a sentar-me numa rocha debruçada sobre o mar e em que senti os olhos marejados
de lágrimas.
Quando, pela vida fora, à distância dos anos, revivo
esses momentos mágicos, sinto dentro de mim uma raiva indescritível por não ser
poeta para poder atirar para o papel com algumas das emoções experimentadas
nessa noite inolvidável, passada, vivida e sofrida “na muito real e mítica Ilha
de Moçambique”.
António Cirurgião
Quem consegue transmitir aos outros o seu fascínio, é um artista e um artista, é um poeta!
ResponderEliminar