terça-feira, 9 de fevereiro de 2016





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

 
# 63 - ROLAND KIRK

 
 

 

 
Uma enfermeira toxicómana confundiu o colírio com outras gotas e cegou Roland Kirk, ainda bebé de berço. Nunca ele haveria de se conciliar com o negrume primordial em que ficou apresado; recusava-o como um azar ou golpe do destino, porque o vindicava como crédito pessoal a cobrar à sociedade, se não mesmo à humanidade. Este estado de espírito de Kirk impregna a sua música, da qual perdurava uma sensação, se nem sempre de revolta, no mínimo de inquietação constante, de uma impaciência e uma aspereza sem tréguas.
Mas isto só se apreendia depois de o ouvir, dado que a primeira impressão infundida por Roland Kirk era de extravagância. Entrava em palco encapuçado com umas coifas arrevesadas e, sobretudo, ostentando no colo uma despropositada panóplia de instrumentos de sopro. Recorria com frequência à técnica da respiração circular, conseguindo soprar ininterruptamente, o que às vezes resultava em habilidade circense – o espectador incauto ou neófito intrigava-se: será que assistia a uma palhaçada? Os laivos de comédia que Roland Kirk gostava de intentar, eram pesados de sarcasmo e, às vezes, embaraçantes. O pior, porém, era a espécie de filosofia que evocava: que primeiro mudara o nome de “Ronald” para “Roland” e depois antepusera-lhe um exótico “Rahsaan”, em ambos os casos porque os sonhos assim lho ditaram e ele tinha crença na divindade do onírico.
 

 
We Free Kings
1961 (1991)
Polygram / Mercury - 826455-2
Roland Kirk (saxofone tenor, flauta, stritch, manzello, sirene); Richard Wyands (piano); Hank Jones (piano); Art Davis (contravaixo); Wendell Marshall (contrabaixo); Charles Persip (bateria).
 
 
Em abono de Roland Kirk entenda-se que procurar algum destaque nos anos 60 era tarefa ingrata, dado o panorama saturado de mudanças, com novos nomes e novas propostas a surgirem quase todos trimestres. Mas é pertinente questionar se aquilo que fazia para se tornar conhecido, não impediria precisamente que fosse respeitado. Ou seja, se para admirar a sua música há que contornar o estorvo da fancaria intelectual, então é lícito questionar os motivos que o levaram a engendrar tais distrações, julgando trazer engrandecimento onde toda a gente viu diminuição. Por outro lado, que o génio de Roland Kirk tenha sido reconhecido debaixo de tão opaca camuflagem, é prova cabal da sua exuberância. Confirma também que ele nunca era bem aquilo que fazia crer.
“We Free Kings” foi a obra que notabilizou Roland Kirk. E é preciso tê-la sempre à vista para não cair em ilusões com o que veio mais tarde. Quando um par de anos depois começou a alternar temas mais pirotécnicos do que substanciais, com aventuras sónicas frívolas sob a égide da desconstrução harmónica, ainda assim vislumbra-se uma centelha de redenção, atiçada pelo arraigamento de Kirk aos blues, esse um poço sem fundo que dá de beber a todos os desenvolvimentos musicais. “We Free Kings” é, portanto, a pedra de toque que tudo sustenta, porque regressa ao chão genuíno da música negra americana, numa altura em que o davam como gasto, e dele recolhe um revigorado alento. E quanto a esta autenticidade, não há maluquices que enganem.
 
José Navarro de Andrade


 

1 comentário:

  1. Deste e do anterior vou publicar da Verve Jazz Masters os discos que ela lhes dedicou.

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