domingo, 5 de maio de 2019

Discutir o Acto Colonial (I) - Imprensa da Época.


 
 
 
Desde Janeiro de 1930, Salazar acumulava o cargo de Ministro das Finanças com o de Ministro das Colónias interino, este último especificamente para resolver a grave crise que Angola atravessava e a polémica sobre política financeira que, a propósito, travara com Cunha Leal, governador do Banco de Angola, demitindo-o[1].
Em 29 de Abril, através de uma extensa Nota Oficiosa, comunicou ser necessário aditar imediatamente um Acto Colonial. Neste, deveriam reunir-se não só «as garantias fundamentais da nação portuguesa como potência colonial, as dos indígenas, as da governação ultramarina e as das relações económicas e financeiras entre a Metrópole e as Colónias», como ainda, aproveitando as Bases Orgânicas aprovadas pelo Ministro João Belo em 1926, proclamar-se o «mais alto nacionalismo e uma barreira contra os factores de desorganização». Mais dispunha a Nota Oficiosa que, embora já aprovado na generalidade pelo Conselho de Ministros, o Acto Colonial seria divulgado publicamente a fim de ser examinado e beneficiar das «observações aproveitáveis».
         O projecto foi publicado pelos jornais no dia seguinte, 30 de Abril de 1930. Para o editorialista do vespertino Diário de Lisboa um texto sobre tão delicada matéria envolvia dois aspectos de importância transcendente: o constitucional e o colonial. Quanto ao primeiro, podia deduzir-se irem ser convocadas Cortes Constituintes; quanto ao aspecto colonial, visto tratar-se «de um assunto em que qualquer propósito de especulação bem poderia ser tomado à conta de sacrilégio», esperava-se uma opinião de todos os que para isso tinham autoridade e competência.
         Imediatamente, foram entrevistadas  pelos jornais três personalidades: o Conde de Penha Garcia, o general Norton de Matos e Aires de Ornelas, lugar-tenente de D. Manuel II.
         O primeiro, então presidente da Sociedade de Geografia, onde dentro de dias iria decorrer o III Congresso Colonial, destacou tratar-se de «um documento de alta importância», provando que Salazar estava a considerar «o problema colonial, nas suas grandes linhas, com decisão e um golpe de vista de conjunto»; além disso, a abertura à discussão pública significava que Salazar pretendia pôr-se «em contacto com a opinião das Colónias, para assim fortalecer a sua própria em assuntos que não lhe eram familiares». Na sua conclusão pessoal, o diploma era «nacionalista e centralizador» e correspondia, na matéria financeira, à «correcção indispensável aos exageros provenientes da autonomia»[2].
Para Norton de Matos – Alto-Comissário em Angola, cargo de que se demitira em 1925, e Embaixador em Londres, de que fora exonerado em Junho de 1926 –, o projecto «não une, não harmoniza nem acalma». Discordava do disposto nos artigos 3.º, 4.º e 5.º (sobre a forma e denominação do Império Colonial), mas acentuava que nos artigos 7.º, 8.º e 9.º, apesar das deficiências de redacção, residia a boa doutrina por, ao regularem a propriedade dos territórios coloniais e as concessões, se destinarem a pôr «um freio às abusivas e escandalosas explorações da soberania nacional». Também apoiava o regime previsto para os indígenas; quanto à autonomia e descentralização manifestava-se «francamente contrário às restrições começadas pelo falecido comandante João Belo e agora continuadas»[3]. Mas desvalorizou-o – como provou, no ano seguinte, quando, embora defendendo que toda a administração e governo de Portugal devia basear-se na Unidade Nacional (cujo primeiro aspecto era a unidade territorial), qualificou o Acto Colonial de mera Lei Orgânica, não lhe dando qualquer desenvolvimento[4].
Pelo lado dos “monárquicos africanistas” – a quem, em 1926, coubera a primeira definição e comando da política colonial da Ditadura Militar –, Aires de Ornelas não pretendia analisar o projecto no seu articulado, limitando-se a destacar que ele defendia «com energia os interesses de Portugal» e, além disso, reatava «a nossa altíssima e incomparável tradição de povo colonizador»; considerava, por fim, bom e necessário que nesta se insistisse com vista a reafirmar a posição portuguesa quer em Genebra quer nas outras reuniões internacionais «em que se falaceia de mandatos»[5].
         Também o prolixo “colonial” e polemista, advogado, agricultor e industrial em Moçambique, Eduardo de Almeida Saldanha (Viseu, 1874, Lourenço Marques, 1948) – tentando, segundo acrescenta, chegar a Salazar ou, ao menos, à eventual publicação no jornal Novidades – redigiu um extenso e crítico artigo sobre o que qualificava de «pomposamente baptizado»[6] Acto Colonial. Descobria nele oito princípios: i)- unidade de administração das colónias (assim pondo termo à delegação de poderes em empresas particulares); ii)- normalização da administração (acabando com o regime dos Altos- Comissários); iii)- régie na exploração dos portos comerciais; iv)- nacionalização da economia das colónias; v)- remuneração obrigatória dos serviços prestados pelos indígenas ao Estado ou aos corpos administrativos; vi)- cessação do trabalho indígena compelido a favor dos particulares; vii)- responsabilização financeira das colónias directa e exclusivamente perante a Metrópole; viii)- dever de honra dos Governadores em sustentarem os direitos de soberania da Nação e promoverem o bem da colónia.
Ora, em sua opinião, só este último princípio constituía novidade. Porém, mesmo esse não passava de «declaração piedosa». Por tudo isso, concluía, o Acto Colonial era mera «comédia».
Anos antes, em 1924, impressionado pelo facto de Portugal não ter opinião pública que se interessasse pelas coisas das colónias, Augusto da Costa, jornalista do Jornal do Comércio e Colónias, submetera a dezasseis intelectuais e militares um “inquérito nacional” com quatro perguntas sobre o sentido, presente e futuro, de Portugal enquanto potência colonial. Foram escolhidos: «os monárquicos integralistas ou de sentido nacional e tradicional Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e João Ameal […], o também integralista e escritor colonial Américo Chaves de Almeida, o poeta também monárquico e nacionalista Afonso Lopes Vieira, o economista Bento Carqueja, o escritor Sousa Costa, o grande poeta modernista Fernando Pessoa, o pensador Fidelino Figueiredo, o então jovem político de extrema-direita Marcelo Caetano […], o médico […] Francisco Garcia, o marinheiro colonialista José Francisco da Silva, os militares coloniais João de Almeida, Paiva Couceiro e João de Azevedo Coutinho»[7]. Duas conclusões relevantes se retiravam do conjunto de respostas. Primeira: para a maioria dos depoentes as colónias faziam parte da identidade portuguesa. Segunda: prevalecia a ideia de que o destino das colónias seria, a prazo, a independência, embora os “novos brasis” presumivelmente se mantivessem «ligados a Portugal, com a sua identidade própria, o que passaria também pela reafirmação da identidade portuguesa no jogo da política mundial»[8].
Como se verá, alguns destes depoentes intervirão na apreciação pública do Acto Colonial. Ora, só em 1934 Augusto Costa editou em livro estes depoimentos, mas então votava-se à «Apologia do Império Colonial», como intitulou o posfácio[9]. Neste, sistematizava «os três dogmas do imperialismo português», salientando  nunca ter sido um imperialismo de expansão ou de cobiça, antes e apenas, um imperialismo de consolidação do existente[10].
Mas o dogmatismo deste artigo – que, em grande medida, antecipava a doutrina que Armindo Monteiro iria desenvolver na construção e governo do Império Colonial – não era então absolutamente coincidente com a ideologia governamental e, sobretudo, contrariava o sentido da discussão preliminar do projecto do Acto Colonial, em que ainda intervieram activamente os defensores da política colonial prosseguida pela Primeira República, como se verá de seguida.
 
António Duarte Silva
 
 





[1] Este texto, em seis partes, é uma reformulação (no estilo, conteúdo e notas) do artigo “A discussão pública do Acto Colonial”, a publicar in AAVV, Estudos em Homenagem do Conselheiro Sousa Ribeiro (Presidente do Tribunal Constitucional).


[2] In Diário de Lisboa, de 6 de Maio de 1930.


[3] In Diário de Notícias, de 7 de Maio de 1930.


[4] In O Primeiro de Janeiro, de 29 de Maio e 3, 13, e 17 de Junho de 1931, transcritos apud “A Questão Colonial”, Boletim da Agência Geral das Colónias, Ano 7.º, Julho de 1931, n.º 73, pp. 262 a 279.


[5] In Voz, de 7 de Maio de 1930.


[6] Eduardo de Almeida Saldanha, “Projecto do ‘Acto Colonial’” apud Colónias, Missões e Acto Colonial, Vila Nova de Famalicão, 1930, pp. 24 e segs. Não se encontrou a pretendida publicação jornalística.


[7] Conforme síntese de Luís Reis Torgal, “Do ‘Império às ‘Independências’. Colonialismo, Anticolonialismo e Identidades nacionais”, in Estudos do Século XX, n.º 3 Coimbra, CEIS 20/Quarteto, p. 11.


[8] Idem, ibidem, p. 13.


[9] Augusto da Costa, Portugal Vasto Império - um inquérito nacional, Lisboa, Imprensa Nacional, 1934.


[10] Idem, “Os três dogmas do imperialismo português”, in Boletim Geral das Colónias, ano 8.º, Junho de 1932, n.º 84, pp. 154-155.





 
 


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