quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Dois Papas – a reforma e o maniqueísmo papal




 

 

A Igreja da Suécia é conhecida pelo seu extremo liberalismo. As mulheres são sacerdotes desde 1960 e bispos desde 1997. Os casamentos religiosos entre pessoas do mesmo sexo foram aprovados em 2009. A diocese de Estocolmo teve à sua frente entre 2009 e 2019 Eva Brunne, homossexual, casada com uma outra sacerdote, que defendeu que uma determinada igreja retirasse as cruzes para que ali pudessem rezar pessoas de outras religiões. Desde 2013 que o cargo de Arcebispo de Uppsalla, Primaz da Igreja da Suécia, é ocupado por uma mulher, Antje Jackelén, a primeira bispa a ser recebida pelo Papa no Vaticano, em 2015.

 

Mesmo sabendo deste historial, ainda surpreende que a partir de Maio de 2018 passasse a ser proibido referir-se a Deus como “Ele” ou “o Senhor”. Os livros do cerimonial e de cânticos foram adaptados. A Trindade deixou de ser “Pai, Filho e Espírito Santo”. A linguagem inclusiva, verdadeiro mantra dos tempos modernos que a Academia Francesa descreveu como “aberração”, é o motivo subjacente.

 

País luterano desde a Reforma Protestante do século XVI, a Suécia conserva uma Igreja própria, a Igreja da Suécia, que até ao ano 2000 foi igreja de Estado – como continua a acontecer noutros países nórdicos – Dinamarca, Noruega e Finlândia – que mantém as ligações formais entre o Estado e a suas Igrejas. Em Setembro de 2017 houve eleições na Igreja da Suécia, as mais participadas desde 1950, relatou a imprensa. Envolvimento ou entusiasmo com a instituição? Nem por isso. Dominadas pelos partidos políticos, as eleições prenderam-se com as posições partidárias na questão dos imigrantes e dos refugiados, que se tornou central no debate político nacional. A Suécia é, de acordo com estatísticas divulgadas, o país ocidental menos religioso do Mundo.

 

Reflexo, em boa medida, de uma sociedade profundamente liberal nos costumes, a Igreja evoluiu no mesmo sentido. A ordenação de mulheres, por exemplo, tornou-se obrigatória por lei pelo Parlamento sueco em 1958, depois de a Assembleia da Igreja a chumbar no ano anterior. Os homens que se recusaram a colaborar com as mulheres ordenadas deixaram de poder ser ordenados em 1994. A Igreja da Suécia acompanhou, à força quando foi necessário, a mentalidade do Estado (ou dos legisladores) e da sociedade. Deixou de parte tradições, dogmas ou doutrinas e agora referências milenares. Tudo para ser aquilo que se convencionou chamar “politicamente correcta”.

 

Apesar de números aparentemente altos de pertença formal à Igreja da Suécia (a inscrição era automática com o registo de nascimento até há uns anos), as estatísticas dão conta de uma perda anual de fiéis que se assemelha a um sangramento. A participação nas liturgias é residual, com menos de 2% da totalidade de fiéis a comparecerem nas celebrações dominicais.

 

Vem este intróito pouco canónico a despropósito do filme Os Dois Papas, de Fernando Meirelles, e da ideia que me parece resultar central no mesmo, que é a de necessidade imperiosa e inadiável de uma profunda reforma da Igreja. A par desta ideia, as críticas que vou lendo, de pessoas mais ou menos ligadas à Igreja, evidenciam um certo estado de maniqueísmo – nas redes sociais, nos jornais, sente-se uma necessidade aguda de clarificação de facções, ora em apaixonada defesa do Papa Francisco, ora em desagravo das ofensas ao Papa Emérito Bento XVI. Salva-se a quase unanimidade no elogio à qualidade do filme e dos actores – que eu acompanho.

 

Os dois assuntos, o maniqueísmo papal e a necessidade de reforma, vão claramente de mãos dadas. Mas vou tentar tratar dos dois de forma separada.

 

O maniqueísmo papal

É possível gostar dos dois Papas ou pelos menos de aspectos dos seus pontificados e das suas personalidades e, por insólito que pareça, o filme de Meirelles até parece adocicar a imagem de Bento XVI – mas porque o aproxima de Bergoglio e não porque o explica como Ratzinger. Mas há inquestionavelmente uma certa tendência para, ao preferir um, encontrar defeitos no outro.

 

Convenhamos: é difícil não ficar desconcertado e comovido com alguns gestos de Francisco. O seu beijo nas chagas de um doente, logo no início do Pontificado, é uma das imagens mais fortes que alguma vez vi. E Francisco é eficaz no nosso tempo, pouco dado a leituras e reflexões – as suas mensagens são mais simples e o Papa privilegia os gestos, as imagens, porque sabe que poucos serão os que lerão o que diz ou escreve.

 

Já Bento XVI foi mostrado desde o princípio como o fiel guardião da doutrina e apesar da solidez do seu pensamento e da profundidade (e acerto) das suas reflexões sobre o nosso tempo, levou e levará colado o rótulo de antiquado e retrógrado. O facto de se ter rodeado por tanta beleza litúrgica e para-litúrgica, cheia de significados e com o objectivo primeiro de glorificar a Deus foi sempre explorado para o denegrir. Meirelles faz dele uma caricatura, mostrando-o altivo, rude e até ansioso por ser eleito.

 

Como o António escreveu no seu texto sobre os sapatos papais, somos muito influenciados pela percepção que nos dão sobre os assuntos. Nada que o António escreva hoje vai mudar a convicção tão profunda quanto errada que milhares de pessoas têm de que os sapatos vermelhos de Bento XVI eram um capricho, corrigido pelo novo Papa para bem do povo de Deus.

 

Ora, o problema central deste belo filme é o facto de reforçar estereótipos – uns bons e outros maus, mas sobretudo uns verdadeiros e outros falsos – em relação a ambos os papas e à Igreja. E, partindo de uma ideia (falsa) de que estamos perante uma base verídica, transmite uma percepção errada do que é a Igreja e do que são os dois papas escolhidos para a liderar neste início de século e de milénio.

 

Creio que não basta dizer que o filme não é um documentário. A não ser que desconheçamos alguma informação secreta soprada a Meirelles, a parte essencial do filme – as conversas entre Ratzinger e Bergoglio sobre a Igreja – são puríssima ficção. Não apenas no seu conteúdo, mas no facto de terem sequer existido como antecâmara da histórica decisão de renúncia de Bento XVI. Ou seja, tirando a existência de dois Conclaves e alguns pormenores da vida de Jorge Mario Bergoglio, a estrutura do filme não tem correspondência com a realidade.

 

Aparte disso, apesar de se chamar Os Dois Papas, o filme é essencialmente – como Fernando Meirelles já reconheceu – um filme sobre o Papa Francisco. Outra referência de Meirelles é de que se trata de “um filme sobre perdão”.

 

Creio que aqui se pode encontrar a chave do descontentamento dos que sentem que Bento XVI é injustiçado. Há, no filme, dois assuntos que motivam a necessidade de perdão: (1) a actuação do Papa Francisco durante o regime autoritário militar na Argentina e (2) a actuação do Papa Bento XVI nos casos de pedofilia, centrado no filme na figura de Marcial Maciel, dos Legionários de Cristo.

 

Sobre o primeiro discorrem longos e belos minutos em flashback na vida de Bergoglio, numa penitência que parece até explicar alguns dos seus actos já como pontífice. Sobre o segundo, é ignorada não apenas a actuação de Ratzinger contra Maciel antes de ser eleito Papa em 2005, como tudo o que fez para combater a pedofilia depois de ser eleito Papa – o perdão não chega a surgir, aparecendo antes um ralhete do Cardeal Bergoglio na sacristia da magnífica Capela Sistina.

 

Ora, embora não seja o assunto do filme, a questão da pedofilia e dos abusos sexuais na Igreja é um dos mais sérios e graves assuntos, que devem envergonhar os Papas e todos os cristãos e que precisam de uma resposta firme. Mas se os problemas não começaram com São João Paulo II, também não terminaram com as respostas firmes de Bento XVI ou de Francisco em relação aos processos judiciais, nem com os seus pedidos de desculpa às vítimas. Mas o que é certo – e histórico – é que a resposta começou com Bento XVI e isso está ausente do filme, que trata este grave assunto de forma ligeira e portanto injusta.

 

A injustiça é até agravada pelas dúvidas que foram sendo levantadas sobre diversas decisões e declarações do Papa Francisco em relação a outros escândalos noticiados já no seu pontificado. Não se trata de medir quem tem mais culpas. Trata-se de olhar os assuntos de forma séria e não tentar que fique a ideia – que creio que fica do filme –, de que os escândalos são da era de Ratzinger e a luz da era de Francisco. Embora perceba praticamente tanto de futebol como o Papa Emérito, creio que é relativamente evidente que a mudança de treinador, neste caso de Papa, não resolve os problemas da equipa – e a equipa são, neste caso, milhares de sacerdotes e milhões de crentes laicos que formam a Igreja. E isto, leva-nos ao tema central do filme.

 

A reforma

O actual Papa é uma personalidade que marca indubitavelmente o nosso tempo. Em 2013, na noite em que foi escolhido no Conclave, estive na RTP a comentar a sua eleição. Referi que o desconhecido Bergoglio me recordava o Papa João XXIII e referi que o despojamento seria muito provavelmente a marca do seu pontificado, uma vez que aparecera sem as vestes tradicionais que os seus antecessores envergaram na mesma ocasião. Falhei redondamente noutra previsão, de que seria a Argentina o seu primeiro destino após a eleição. Não voltou a pôr lá os pés, o que é ainda hoje desconcertante.

 

Francisco gerou, desde a primeiríssima aparição na varanda de São Pedro, uma forte empatia não apenas dos fiéis mas também da comunicação social. À boa imprensa juntou-se o aplauso dos críticos da Igreja, que viram no Papa Bergoglio e nas suas primeiras declarações críticas para a Cúria a oportunidade da tão ansiada reforma – defendida sobretudo pelos que não fazem ideia nenhuma do que é a Igreja e que, por muito que mude, continuarão ao largo.

 

Os estereótipos e as percepções que nos são inculcadas sobre a Igreja, sobre o seu imobilismo, sobre a sua rigidez moral e a sua inadaptação ao mundo, tornam praticamente unânime a convicção da necessidade de uma reforma.

 

Francisco deu gás a esta ideia, criando um comité para reformar a Cúria e aludindo por diversas vezes aos pecados, falhas e insuficiências da Igreja e dos seus pastores. Curiosamente são estas as declarações de Francisco que têm mais repercussão mediática e que criaram a imagem de justiceiro, amplificada pelo filme de Meirelles mas que vem desde o início do Pontificado. Por contraste, sempre que o Papa reafirma a posição da Igreja sobre o aborto ou sobre a eutanásia as suas declarações são em geral ignoradas ou objecto de uma circunspecta nota de rodapé (e apenas muito raramente, alvo de um espirro de um crítico).

 

Então, se a reforma é inevitável, resta perguntar, que reforma? E para quê?

 

Retomando o brusco exemplo de arranque deste texto, não há nada, do ponto de vista dos parâmetros sociais de hoje, de criticável na Igreja da Suécia, naquilo que aceita para a sua hierarquia e para os seus fiéis. Reformou-se em todos os aspectos em que a Igreja Católica é alvo de crítica – a ordenação feminina, a questão da orientação sexual (o casamento dos sacerdotes já vinha de trás, de Lutero), até se adaptou à linguagem inclusiva. Mas o exemplo sueco mostra também é que a incorporação forçada da “moral” do nosso tempo não tornou a aquela igreja mais próxima das pessoas, nem reforçou o seu papel evangélico. Pelo contrário, esvaziou-a, tornou-a indistinguível da sociedade, socialmente irrelevante.

 

Além disso – e naturalmente esta não é uma questão de somenos importância – é muito difícil encontrar uma sustentação nos Evangelhos que nos permita dizer que aquela igreja sueca que os homens moldaram à sua imagem é a Igreja que Cristo instituiu há quase 2000 anos.

 

O que nos leva a outra questão: é melhor uma Igreja que desafia e tenta moldar a sociedade ou uma Igreja irrelevante, que não se distingue da sociedade?

 

Há meios-termos, claro. A reforma a fazer não tem de ser radical como a levada a cabo a partir do parlamento de Estocolmo, por diktat administrativo. Há elementos reformáveis na Igreja Católica – e nem sequer tenho posição definida em relação a todas as questões. É evidente que se devem corrigir erros e sobretudo impedir a repetição de crimes, como os hediondos que referi e que envergonham todos os católicos. Mas a ideia de que a salvação da Igreja só é possível através de uma reforma que abale os seus alicerces, uma revolução que a deixe quase irreconhecível nas suas posições morais, parece-me um erro profundo – precisamente porque a Igreja que não se distinga da sociedade, que não incomode pela sua doutrina, não servirá o propósito que Cristo teve ao fundá-la.

 

Não sei qual é a experiência nas outras paróquias. Na minha, as igrejas não me parecem mais cheias por causa da popularidade do Papa Francisco ou da sua vontade de promover uma reforma. De resto não tenho, nem procurei ter, dados sobre as vocações, mas duvido que os seminários estejam a abarrotar. Ao ler alguns dos comentários e crónicas, fico com a sensação de que há muitos fãs, alguns até devotos, do Papa Francisco que não são devotos de Cristo, nem sequer ponderam sê-lo. Apreciam, de certo modo, a humanidade do Papa, ignorando que ele representa, entre nós, algo de substancialmente maior e intemporal.

 

A culpa não é do Papa, nem deste, nem do anterior – a sociedade de hoje, marcada por um forte individualismo, que quase abjura a presença de qualquer referência a Deus e a Cristo, torna porventura inevitável que a Igreja se torne mais pequena. Não deve ser imutável, foi mudando ao longo de dois milénios; tornou-se pior quando se aproximou dos homens e das guerras e foi melhorando e corrigindo erros ao longo do último século e meio, quando se centrou no divino. Mas o radical esvaziamento sueco – que é apenas um exemplo que tem paralelo noutros países e noutras igrejas protestantes – mostra que é preciso cautela quanto à solução, para que o efeito de uma reforma não seja o contrário do pretendido.

 

A Igreja não é um partido político, não é um clube de futebol, nem uma associação que precisa de membros para justificar a sua relevância. Como Hopkins-Ratzinger refere no filme de Meirelles, deve evitar ficar fora de moda e para isso deve evitar procurar estar na moda. Não deve procurar ir ao sabor do vento, perdendo a referência fundacional que são os textos dos Evangelhos. Melhor do que Hopkins, o Ratzinger original, numa das suas homilias mais poderosas, a última como cardeal, na missa que antecedeu o Conclave de 2005:

 

“Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas ondas lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, ao colectivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar "aqui e além por qualquer vento de doutrina", aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.

 

“Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. "Adulta" não é uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e madura é uma fé profundamente radicada na amizade com Cristo. É esta amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o critério para discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer esta fé, para esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé só esta fé que gera unidade e se realiza na caridade.”

 

Recordo-me de ouvir um repórter americano referir, em 2005, que as palavras de Ratzinger tinham sido a sua desistência de ser eleito papa, de tão radical que era a recusa da “ditadura do relativismo” e das “ondas da moda”. Mas o cardeal alemão proclamava, sobretudo, a fidelidade à mensagem de Cristo e por isso foi tão importante tê-lo como Papa, para trazer para o centro essa radicalidade original do cristianismo – uma radicalidade baseada na fidelidade, no amor e no perdão.

 

A Igreja pode ser fiel a essa mensagem, sem que, com isso, tenha de ser inflexível e de atear fogueiras aos pés de quem com ela não concorde; mas deve poder permanecer fiel, sem que lhe ateiem diariamente fogueiras aos pés, forçando uma reforma que a anule no seu propósito, um propósito que transcende o nosso tempo. Podemos continuar a rezar em latim, em português, em grego, em russo, a cantar e até a dançar. Podemos ter uma Igreja misericordiosa, mas no essencial creio que deve ser fiel à mensagem salvífica, essa sim verdadeiramente revolucionária, que Cristo nos trouxe há 2000 anos.

 

Termino com outra citação:

 

“Ao principiar este ano, descubramos de novo a adoração como exigência da fé. Se soubermos ajoelhar diante de Jesus, venceremos a tentação de olhar apenas aos nossos interesses. De facto, adorar é fazer o êxodo da maior escravidão: a escravidão de si mesmo. Adorar é colocar o Senhor no centro, para deixarmos de estar centrados em nós mesmos. É predispor as coisas na sua justa ordem, reservando o primeiro lugar para Deus. Adorar é antepor os planos de Deus ao meu tempo, aos meus direitos, aos meus espaços.”

 

São também estas palavras, no fundo, contra a mesma “ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades” de que Ratzinger falava em 2005, contra aquilo que nos convém em cada momento, contra uma igreja-à-la-carte. Esta citação é da belíssima homilia do Papa Francisco, esta semana, a 6 de Janeiro de 2020, na Solenidade da Epifania.

 
Ademar Vala Marques




Sem comentários:

Enviar um comentário