quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Memórias tecidas à maneira de uma manta de retalhos.



Soutelinho da Raia


 
Recebi há dias, graças à amabilidade de uma boa amiga, uma notícia extremamente auspiciosa e lisonjeira para um inveterado amante da Galiza e de Portugal como eu: a descoberta, feita por duas pesquisadoras galegas, professoras María Díaz Bernárdez e Paloma Gómez Varela, no Arquivo Histórico Provincial de Lugo, oriundo do Colexio da Señora da Antiga Casa de Monforte de Lemos, de vários fragmentos do Livro da Montaria do Rei de Portugal, Dom João Primeiro, o de Boa Memória, fundador da Dinastia de Avis, fragmentos redigidos na Corte Real, entre 1415 e 1433.
Se a saúde mo permitir, na minha próxima visita a Portugal, que espero venha a acontecer num futuro não muito longínquo, tudo farei para regalar os meus olhos famintos de novidades exóticas na contemplação desses fragmentos (confesso que uma das coisas que mais prazer me dá na vida é passar horas esquecidas a saborear o encanto de um manuscrito medieval, decorado com iluminuras. E então se esse texto é da autoria de um escritor português, e para mais de sangue real, e ainda por cima do rei fundador da dinastia mais gloriosa de Portugal, o prazer aumenta de intensidade).
Para que se compreenda a principal razão de ser do meu entranhado amor pela Galiza, explico que a aldeia em que nasci e em que passei a minha meninice e parte da adolescência é Soutelinho da Raia, um dos três chamados “Povos Promíscuos” da longa fronteira entre Portugal e a Espanha, assim denominados por estarem sitos em território português e espanhol, desde a Idade Média, pelo que tiveram de ser objecto de um tratado entre Portugal e Espanha, celebrado em 1864, como já foi referido noutro texto. Nos termos desse tratado, todas as casas de Soutelinho da Raia passaram a constituir parte de Portugal, não podendo construir-se nenhuma casa a menos de cinquenta metros da raia, com excepção do quartel da Guarda Fiscal, construído junto à linha da fronteira, a qual, por sinal, dada a ausência de rios ou riachos, era puramente convencional, demarcada por um marco de granito, enterrado no solo, o qual tinha de um lado esculpido um P (para Portugal) e do outro um E (para Espanha), como também já foi referido noutro texto.
Em virtude do meu estatuto de raiano puro e do meu convívio de toda a hora com os galegos, a começar pelo pároco, o Padre José (j pronunciado por nós guturalmente, à castelhana, e não à portuguesa nem à galega (x), não sei bem por quê, fui objecto de troça, durante os primeiros dias, quando, menino e moço, dei entrada no seminário. É que em Soutelinho da Raia, à excepção da Dona Marquinhas, a professora, com formação de Escola Normal, e de uma ou outra pessoa que, por uma razão ou por outra, como os meus pais, tinha podido fazer umas andanças prolongadas fora da santa terrinha, ninguém oralmente fazia qualquer distinção entre o b e o v. Para efeitos de pronúncia só existia o b.
Neste contexto, jamais esquecerei o que uma vez pude testemunhar, quando minha mãe me autorizou a passar um dia na escola primária – e única - de Don Pepe -, professor da aldeia galega mais próxima da minha (a um quilómetro e meio de distância, aproximadamente), chamada Videferre. Quando chegou a hora de fazer ditado, sempre que a palavra lida por Don Pepe se escrevia com b ou com v, lá vinha sempre um aluno mais atrevido e brincalhão a dirigir-se a Don Pepe nestes termos: - “Maestro, esta palabra se escribe con b de buey o con b de vaca.” Ao que Don Pepe respondia sempre, bem-humorado, invariavelmente: - “Cuando te devuelva el dictado corregido, ya lo verás.” (Para os que porventura não saibam, informa-se que, no tempo da ditadura de Franco, a língua oficial de todas as Espanhas e, portanto, a única língua ensinada nas escolas, era o Castelhano.)
Acabadas de escrever estas palavras, veio-me à mente o que uma vez me aconteceu, durante o meu ano de noviciado na Congregação Salesiana, onde por vários anos fui aspirante, noviço, professo, clérigo, filósofo, teólogo e professor, de votos temporários, durante seis anos, primeiro, e perpétuos, depois. “Veio-me à mente” e perguntei-me logo como poderia encaixar o que me veio à mente nesta entrada do meu Diário, datada do dia 5 de Março do Ano do Senhor de 2014, sem ferir aquele mínimo de lógica interna que qualquer texto deverá ter. E a resposta não se fez esperar, o que não é muito de espantar para quem sempre teve um pequeno fraco pelo sofisma. Poderia, como tantas vezes tenho feito, começar mais ou menos assim: “Neste contexto...”. Mas já recorri tantas vezes a este chavão, inclusivamente uma vez nesta prosa, que achei que devia procurar lançar mão de outro estratagema. E concluí que a coisa afinal nada tem de complicado, se me lembrar de definir o género literário Diário à minha maneira: uma espécie de manta de retalhos, onde cabem todas as espécies de panos e trapos, como aquelas que vi fazer à minha avó materna, a última tecedeira da minha terra, ou então, recorrendo a uma imagem culinária, uma espécie de caldo de pedra onde se podem misturar os mais variados produtos alimentícios e condimentos, em que minha avó materna era também perita.
Aí vai o que me veio à mente, como disse na primeira linha do parágrafo precedente. E noto agora, com certo agrado, que afinal o que vou narrar não vem lá muito puxado pelos cabelos, visto à luz do meu confessado amor pela Galiza, desde que me conheço, amor enunciado no início da entrada deste dia. O facto aí vai. Um dia, certamente um domingo, deu-nos na cabeça a um grupo de noviços, mais inclinados para as belas letras, organizar um recital informal de poesia. Se bem me lembro, uns optaram por Camões, outros por Diogo Bernardes, outros por João de Deus e por Antero de Quental, e houve quem optou por Bocage. Mas, naturalmente, por um Bocage penitente, bem-comportado, edificante, pois em autocensura todos nós éramos, não noviços, mas peritos exímios. Eu, saudoso da minha longínqua Galiza, optei por Rosalía de Castro, escolhendo três dos seus poemas de um livro que o dito Maestro Don Pepe de Videferre me tinha dado e que eu guardava com grande estima e folheava, clandestinamente, com certa frequência. Santo Deus! O que eu tive de ouvir da boca má e feia e ferozmente irada do meu Mestre de Noviços, um castelhano da execranda escola de Torquemada. Que Rosalía de Castro não era poeta espanhola. Que a língua em que escrevera era uma língua morta. Que se a minha intenção era homenageá-lo a ele, meu Mestre, que o fizesse recitando poesias em castelhano bem castiço, como, por exemplo, as de San Juan de la Cruz ou de Fray Luis de León. Que lhe passasse imediatamente para as mãos – eu diria manoplas – de asceta intolerante a minha antologia das assim chamadas poesias de Rosalía de Castro e que nunca mais me atrevesse a proferir na sua presença um verso dela ou de qualquer outro poeta de língua galega. E quando eu ingenuamente imaginava que as cortinas estavam corridas e que o nefando drama havia terminado, eis que o meu zelosíssimo Mestre de Noviços, Padre Alfonso Nácher, se volta para mim, com os olhos ainda em fogo, e me pergunta se eu não tenho por acaso mais livros em galego. Que não: que não tinha. Mas que, por acaso, tinha o Don Quijote, em castelhano, com que o generoso Maestro Don Pepe também me havia presenteado. O quê? Que lho passasse imediatamente para as mãos, pois o Don Quijote não era livro apropriado para um noviço da Congregação Salesiana. E eu, que candidamente imaginava que ia receber um louvor por continuar a aperfeiçoar a língua que eu estudava, por mim, desde a minha infância, não tive outro remédio senão prometer-lhe que assim o faria, ao mesmo tempo que, mentalmente, impetrava aos sagrados e venerandos manes de Cervantes que dessem mau dormir e atormentassem noite e dia esse abominável obscurantista, ele que, dotado de uma inteligência acima do vulgar, estava quase a concluir o curso de engenharia, quando optou por entrar numa ordem religiosa. E depois de me fulminar com os seus olhos de velho inquisidor, o meu Padre Mestre virou-me malcriadamente as costas, sem dúvida para ver se eu tinha estômago para superar mais uma prova a que ele tão feroz e impiedosamente sabia submeter os noviços.
Falei acima da Dona Marquinhas e parece-me ser este o momento de a apresentar ao hipotético leitor destas reminiscências da minha meninice e da minha adolescência. Morava numa casa grande, quase senhorial, toda construída de granito muito bem trabalhado, cuja entrada principal estava separada da entrada da nossa casa por um velho chafariz público. Vivia com uma irmã, a Dona Aninhas, separada há vários anos do marido espanhol e mãe de dois filhos – o Rubens, robusto, fragueiro e boémio, e o Fernandinho, anémico, caseiro e mimado.
A Dona Marquinhas era solteirona. Quando, pelos seis anos, entrei pela primeira vez para a escola, já ela devia andar pelos seus sessenta anos. Mais baixa que alta, a atirar um pouco para o roliço, com o cabelo todo branco, penteado em toitiço, de rosto muito branco e austero, era a imagem de uma velha rainha sem trono. Nunca a vi senão vestida de preto, o que aliás se aplicava também à irmã, que era mais alta e esbelta que ela.
Como disse anteriormente, a Dona Marquinhas era professora de escola normal, de uma cultura fora do vulgar, e quem a visse não podia imaginá-la a desempenhar outra profissão na vida que não fosse a do magistério. Como a aldeia, por aquele tempo, só tinha à volta de umas quatrocentas e cinquenta almas, era ela a única professora, responsável pelas quatro classes, em que consistia a escola primária daquela época. Em casos excepcionais, raríssimos, como os de doença, a Dona Marquinhas era substituída pela irmã, a Dona Aninhas, com o estatuto de professora regente, a qual, para azar dos alunos, era má como as cobras, alérgica ao sorriso e a um simples gesto de amabilidade, e recorria à palmatória com uma prodigalidade de nos fazer arrepiar de medo, só de vê-la entrar na sala de aula.
O edifício em que se encontrava a escola consistia em rés-do-chão, primeiro andar e um velho sótão. No rés-do-chão funcionava uma loja de bugigangas, onde se vendia um pouco de tudo, desde tecidos a agulhas, a dedais, a tesouras, a louças, a toda a espécie de apetrechos de casa. Essa loja era explorada pelo cunhado da Dona Marquinhas e primo direito de minha mãe, o Tio Domingos Pires (Tapado de alcunha, e, portanto, conhecido por Domingos Tapado), que aliás era o dono de todo o edifício. A escola funcionava no primeiro andar, o qual tinha duas grandes salas. Todos os alunos ocupavam a mesma sala (servindo a outra para objectos de arrecadação, tais como velhos mapas, mesas e bancos quebrados). Nas primeiras carteiras, a contar da secretária a que se sentava a professora, sentavam-se os alunos da quarta classe; vinham a seguir os da terceira classe; depois os da segunda; e por último os da primeira.  
Para concluir este breve excurso memorialista, quase sem nexo, acrescentarei apenas que, segundo voz corrente, no Concelho de Chaves, a que pertencia a freguesia de Soutelinho da Raia, não havia melhor escola primária. Competentíssima e briosa, a Dona Marquinhas tinha a fama e o proveito de ver, ano após ano, aprovados, muitos com louvor e distinção, todos os alunos da terceira e quarta classes que levava a exame, realizado oficialmente, com pompa e circunstância, em Chaves, sob a direcção de engravatados e empertigados inspectores escolares.   
 
 
           António Cirurgião
 
 
 
 

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