segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Pensar o clássico.

 
 
 
 
Ao ler o brilhante, brilhantíssimo ensaio de Camile Paglia sobre David Bowie (in Provocações, Relógio D'Água, 2019), ocorreram-me algumas coisas que passo a expor.

A primeira é que as coisas que ela lá fala do Bowie, drags e vanguardismos enormes, se passaram há mais de cinquenta anos e, por isso, já são «clássicas» e tão «cultura» como outras cenas passadas há cem ou mais anos. E foi, e é, uma cultura que nos passa um bocado ao lado como tal, como cultura. Pensamos naquilo como música e dinheiro e fama, malucada e droga, androginia e gajas, mas era bom pensarmos naquilo como cultura, só mesmo cultura. É que, além do mais, como a Paglia mostra, há imensa cultura sugerida ou patente no universo Bowie, precisamos é de saber vê-la, termos cultura para a topar, tanta coisa lá está... Talvez o Bowie ainda esteja demasiado próximo de nós ou talvez saibamos demasiadas coisas sobre ele e a vida dele para o conseguirmos pensar como cultura, só mesmo cultura.
A segunda coisa que me ocorreu é saber se o classicismo não é ou está a ser um bocadinho negação da realidade. Explico: se eu agora me começasse a interessar à séria pelo Bowie (e estou mortinho por isso), havia gente a dizer que eu dera em maluco (sim, estou a pensar em si, António Duarte Silva). Mas se eu me pusesse a escrever sobre o Caravaggio ou o Bacon (e também estou mortinho por isso) o pessoal achava bem e muito culto, refinado e o gajo é sensível e elevado de espírito. Vejo agora que morreu Roger Scruton e a coisa que me ocorre perguntar é se ele ou muita gente que se dedica cada vez mais ao clássico, como o Pedro Mexia, o Frederico Lourenço, etc., não me anda numa espécie de escapismo a negar a realidade, com o pretexto de que o clássico é que é bom, os antigos é que sabiam pensar e dizer bem as coisas, está tudo inventado há três mil anos, está lá tudo, tudinho, o Montaigne é actualíssimo, o clássico dá muito nice snob de falar, etc. Com isso, a realidade actual, do Trump e dessas coisas, está a ser negada, e o mesmo sucede com o Bowie enquanto fenómeno cultural, só cultural, que é um pouco negado por esta fuga para o clássico dos clássicos. A coisa não é, ou não é só, dizer que quem vai para o clássico e antigo está a fugir do presente, a albergar-se numa Arcádia pretérita e imaginária, como forma de iludir o Trump e o resto. E claro que também há muita gente, incluindo a Paglia, que talvez escreva em modo «culto» sobre o Bowie ou sobre o Tom of Finland para parecer moderno e vanguarda, também isso é nice e snob, claro. Não é tratar o rap como «cultura» igual ao Mozart, é mais do que isso, entendam-me. A questão, e talvez tenha dificuldade em pensá-la quanto mais expressá-la, é que na ida militante para o clássico há uma desvalorização implícita do actual, a negação ao Bowie de estatuto idêntico ao do Satie ou do Couperin. Mas o Bowie já é clássico, as coisas malucas dele têm 50 anos. E o Bowie é cultura. O facto de termos dificuldade em pensá-lo assim (não digo estudá-lo assim, isso é fácil, basta ouvir discos e comprar uns livros) é uma grande falha nossa, pelo menos minha. E insistir no clássico dos clássicos e no «sublime» como forma de denial só aprofunda e aumenta essa falha nossa ou minha, acho eu. Até porque nos dá uma relação viciada e viciosa com o clássico, uma co-dependência com os gregos e com o Satie. Não é aquela coisa é tudo cultura, tudo é cultura e chocalhos a património da humanidade (agora até querem pôr a relação médico-doente a património da humanidade…). É mais isto: talvez a dimensão de entretenimento do Bowie seja tão avassaladora (ou ainda tão avassaladora, tão presentemente avassaladora) que eu não consigo pensá-lo como cultura e como clássico. O Bowie disse uma vez que queria fazer as cenas dele à maneira do Diaghilev mas eu não sou capaz de o ver assim, cono não sou capaz, já agora, de ver a Capela Sistina como entretenimento. O ensaio do Eliot sobre o Shakespeare aponta um bocadinho nesse sentido, e o Eliot aliás não foi o primeiro nem é o único a dizer isso, que o pessoal tem de pensar e compreender o Shakespeare como entretenimento, como o Bowie. O problema é que o pessoal não consegue, eu pelo menos não consigo. Ponho-me a ler aquilo (e passei um ano quase só com o Shakespeare) e é logo ai que culto que eu sou, grande masturbação onírica, ai que grande génio que este tipo era, ai que génio eu sou ao ler este génio e pronto já somos dois génios, e por aí fora. Agora já sou capaz um bocadinho de ver o Apocalypse Now como cultura, só cultura, ainda não cheguei lá mas ando lá perto (e não digam que o filme tem de ser visto compósito e holístico: cultura plus entretenimento, um mix dos dois, assim não vamos lá). Mas continuo a não conseguir pensar muito bem o Bowie como cultura nem a Capela Sistina como entretenimento (por acaso, há um livro sobre a Capela Sistina de um autor algo desvalorizado, o Ross King, chamado O Tecto do Papa, que nos ajuda um pedaço a pensar naquilo como entretenimento, mas não chega). Depois há coisas que são instantâneo-cultura, como por exemplo o último livro do Daniel Blaufuks, Não Pai, que conto ler esta semana. Logo que sai, e muito bem, é «cultura», conseguimo-lo pensar assim. Ao Bowie, temos mais dificuldade, ou pelo menos eu tenho. Porquê? Bem, boa semana.













  

 
 
 
 
 
 

 

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