quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Dos justos.

 
 
Pintura de Celja Stojka
 
O António pediu-me para contar esta história aqui. Eu conto, tal e qual a contei a ele e a uma amiga italiana que acabara de me dizer, horrorizada, que durante a noite de ontem alguém pintou uma estrela de cinco pontas na casa de uma pessoa judia.
 
A minha filha tem um nome com uma combinação improvável, entre outras coisas porque acabou com o nome do avô materno, que não vem a este caso, e o da avó paterna, que vem. A avó Suzanne já morreu, bem como o tio-avô Albert e os bisavós Élie e Marie-Louise de que fala este apontamento-notícia:
 
 Traduzindo resumidamente:
Élie e Marie Louise Richaud (…) tinham acolhido refugiados do Leste da France durante a Primeira Guerra mundial, em 1914-1918. Têm três filhos, Louis e Albert, resistente, e Suzanne. Em 1938, deram abrigo durante uns tempos a republicanos espanhóis. Durante a Segunda Guerra mundial, guiados pelo respeito de outrem, Élie e Marie Louise vão acolher e salvar numerosas pessoas (…). Nesta tarefa são ajudados por I.(…), padeiro e resistente, cujo filho irá buscar a Marselha uma pessoa judia, que tinha escapado in extremis à Gestapo, e a conduziu à casa de Élie e Marie Louise (…). O filho destes, Albert Richaud, agente de ligação entre os vários movimentos da Resistência, encontrará refúgio para as pessoas que transitavam pela casa dos seus pais, enquanto a filha, Suzanne, professora primária, “vinha todos os fins de semana substituir a mãe nas tarefas que se aproximavam das de um hotel benemérito", dirá Louis Richaud quando da atribuição da medalha dos Justos aos seus pais, em 26 de junho de 2009.
Em razão desta história (aqui contada só pela metade, como se verá de seguida), a miúda lá foi receber a tal medalha dos Justos, como símbolo-testemunho para as novas gerações e depois da entrega de um documento ao tio na foto.  
 
O que não vem na notícia é o seguinte, que também merecia ser contado porque entra no rol dos pequenos gestos salvíficos de que pouco se fala: escaparam todos por um triz ao fuzilamento certo que se teria seguido à denúncia anónima de que foram alvo (e, pelas leis da biologia, escapou ela à não-existência futura). Tudo graças à ação de uma senhora funcionária dos correios, que intercetava as cartas dirigidas à Kommandantur da zona, levava-as para casa, abria-as com vapor e avisava os visados. Depois voltava a fechar e só então as fazia seguir. 
 
Agora a outra história, a abjecta. Poderia juntar aqui a tal carta anónima, mas é uma infeção, não aconselho ninguém a ler. Finda a guerra, um amigo influente na polícia deu com a carta e abriu uma investigação bicudinha, metendo perícias grafológicas e tudo. E deu com o autor da dita. Pois bem, o infame era nada mais, nada menos, do que o filho do melhor amigo de Élie. Não só melhores amigos. Tinham estado juntos nas trincheiras de Verdun. Ciúme daquela amizade, ressentimento, mesquinhez, quem sabe? 
 
Grandeza e miséria humana, como sempre. E memória, outros laços, outras vidas: as famílias salvas e seus descendentes lá estão, e foram voltando. Tenho pena de nunca ter calhado cruzar-me com eles. O que também não vem ao caso.
 
Manuela Ivone Cunha
 
(dedicado à Adriana Costa Santos e aos Justos de hoje)
 
 
 
 

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