terça-feira, 19 de maio de 2020

Quietude júnior (3).




Coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis.

Há crianças que em criança têm gostos fortes e afiados, gostos que outras só descobrem e apuram com a idade – ou não. Pelam-se por alho e picante, mioleira, sopa de ossos de assuã, couves de Bruxelas, cabeças de peixe e respetivos olhos, quiçá Marmite (!) e até aquilo a que os adultos chamam polidamente de “gosto adquirido”, como os queijos malcheirosos ou para lá de podres. Se queijo é propriamente leite podre, variedades há que levam a podridão mais longe e no devir fermentado se tornam, elas mesmas, queijo podre. Mais meta não se encontra.

Veja-se o Foujou, que me abstenho de descrever, mas dizem muito apreciado por paladares “bastante desenvolvidos”. Basta dizer que este laticínio decadente do sudeste francês convive mal com os demais habitantes do frigorífico e da casa em geral, uma incompatibilidade perfeitamente compreensível quando as camadas do fundo do frasco não são avistadas durante 15-20 anos em muitas famílias. É assim que mandam as regras da arte: deixar intocados os fundos do fundo para não perturbar o movimento perpétuo da fermentação ao longo das gerações.

Outras crianças toleram amenamente ou, pelo menos, não vomitam texturas dúbias e consistências incertas como ervilhas, favas ou cenouras cozidas, fiapos de tomate no arroz e a película de nata a boiar no leite.

Para todas essas crianças com um twist, espontâneo ou cultivado pelos pais a adubo cínico-repressivo, abertas a coisas fora do anormal, capazes de apreciar bizarrias e coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis, ficam hoje duas sugestões de embalar:

1) A primeira, um tocador de serpente -- muito mais à frente que um vulgaríssimo encantador de serpentes. Nunca ouviram o som da serpente – em português serpentão, que o bicho é grande demais para tamanhos do Sul? Então abalancem-se a ouvir esse instrumento de sopro que é precisamente das tais coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis. Por Michel Godard, um dos mais virtuosos tocadores de serpente da atualidade. Aqui em Miserere, no álbum A Serpent’s Dream, em que encontram também Le Sommeil, se ainda for preciso.

2) Também fora do anormal, um tocador de flauta que embala as ruínas, tal como há cantores que fazem chorar as pedras da calçada.
É ele Vincent Lucas, em Un Joueur de Flûte Berce les Ruines, de Francis Poulenc.
(Para as crias do Plantas Tristes e seus diabólicos pais)





Manuela Ivone Cunha






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