Coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis.
Há
crianças que em criança têm gostos fortes e afiados, gostos que outras só
descobrem e apuram com a idade – ou não. Pelam-se por alho e picante, mioleira,
sopa de ossos de assuã, couves de Bruxelas, cabeças de peixe e respetivos
olhos, quiçá Marmite
(!) e até aquilo a que os adultos chamam polidamente de “gosto adquirido”, como
os queijos malcheirosos ou para lá de podres. Se queijo é propriamente leite
podre, variedades há que levam a podridão mais longe e no devir fermentado se
tornam, elas mesmas, queijo podre. Mais meta não se encontra.
Veja-se o Foujou,
que me abstenho de descrever, mas dizem muito apreciado por paladares “bastante
desenvolvidos”. Basta dizer que este laticínio decadente do sudeste francês convive
mal com os demais habitantes do frigorífico e da casa em geral, uma incompatibilidade
perfeitamente compreensível quando as camadas do fundo do frasco não são
avistadas durante 15-20 anos em muitas famílias. É assim que mandam as regras
da arte: deixar intocados os fundos do fundo para não perturbar o movimento
perpétuo da fermentação ao longo das gerações.
Outras crianças toleram amenamente ou, pelo
menos, não vomitam texturas dúbias e consistências incertas como ervilhas,
favas ou cenouras cozidas, fiapos de tomate no arroz e a película de nata a
boiar no leite.
Para todas essas crianças com um twist, espontâneo ou cultivado pelos
pais a adubo cínico-repressivo, abertas a coisas fora do anormal, capazes de
apreciar bizarrias e coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis, ficam
hoje duas sugestões de embalar:
1) A primeira, um tocador de serpente -- muito
mais à frente que um vulgaríssimo encantador de serpentes. Nunca ouviram o som da
serpente – em português serpentão, que o bicho é grande demais para tamanhos do
Sul? Então abalancem-se a ouvir esse instrumento de sopro que é precisamente
das tais coisas que parecem difíceis, mas não são fáceis. Por Michel Godard, um dos mais
virtuosos tocadores de serpente da atualidade. Aqui em
Miserere, no álbum A Serpent’s Dream, em que encontram
também Le Sommeil, se ainda for
preciso.
2) Também fora do
anormal, um tocador
de flauta que embala as ruínas, tal como há cantores que fazem chorar as pedras
da calçada.
É ele Vincent Lucas, em Un Joueur de Flûte Berce les Ruines, de
Francis Poulenc.
(Para as crias do
Plantas Tristes e seus diabólicos pais)
Manuela Ivone Cunha
Sem comentários:
Enviar um comentário