Vamos imaginar que, por miraculoso anacronismo, o primeiro-ministro austríaco Karl von Stürgkh se dirigia aos seus concidadãos, fazendo uma declaração solene na televisão no dia 16 de Julho de 1914:
“Tendo reunido o Conselho Ministerial, sob a presidência dos Ministros dos Negócios Estrangeiros, das Finanças e da Guerra do Imperador, tendo também estado presentes o Primeiro-Ministro da Hungria, István e eu próprio, venho comunicar-vos que estamos a considerar seriamente a possibilidade de apresentar um ultimato ao Reino da Sérvia, devidamente formulado para tornar impossível uma resposta positiva. Os trágicos acontecimentos de 28 de Junho em Sarajevo tornam indispensável uma manifestação de força da nossa parte para conter a pulsão expansionista sérvia. É bem verdade que só nos reunimos no dia 7 de Julho e talvez apresentemos o ultimato um pouco mais tarde, talvez no próximo dia 23. Precisámos desse tempo para pressionar o nosso pacífico Imperador e para convencer o Primeiro-Ministro húngaro de que vale a pena arriscar tudo num único lance. Por mim, é indispensável: o sistema político austríaco é inenarrável, os partidos multiplicam-se, divididos por três linhas de fractura – a étnica, a religiosa e a ideológica. Tenho conseguido governar, primeiro prometendo tudo a todos, depois decidindo a suspensão do Reichsrat, do qual aliás nunca gostei, e governando por decreto, cheguei agora à conclusão de que, por muito que me custe, não é possível continuar com um parlamento bloqueado enquanto se tem de aumentar os impostos e financiar o rearmamento no momento em que assistimos à arrogante afirmação dos eslavos do sul. Não é mais possível continuar a governar a Áustria e o Império sem um grande e irresistível movimento do espírito comum que nos une, o que só pode ser conseguido, enquanto não for inventado o Mundial de futebol, através de uma guerra contra os inimigos do Império. Assim sendo, entendo que a humilhação da Sérvia é uma condição da existência do Império. Sabemos que o Governo sérvio não está por trás da mão assassina dos terroristas, mas mais ninguém sabe. Também é sabido que o Arquiduque Franz Ferdinand era desprezado pelo nosso querido imperador, que nunca lhe perdoou o desprestigiante casamento morganático. Estou intimamente convencido de que a sua subida ao trono constituiria um perigo para o nosso querido Império, porque alimentava algumas ideias perigosas sobre a monarquia dual e sobre as minorias que temos de manter sob controlo. Não obstante a conveniência do seu desaparecimento, devemos agir. Correndo, bem o sabemos, o risco de que a criatura escape ao criador: o conflito localizado que pretendemos pode estender-se à Rússia, aliada da Sérvia. E a França, aliada da Rússia, pode-se-lhes juntar. Mas temos a garantia do apoio incondicional do Kaiser e do Chanceler Bethmann-Hollweg. A intervenção alemã em França, sobretudo se ofender a Bélgica, pode arrastar a Inglaterra e o seu Império para a refrega, tornando-a mundial. Mas vale a pena o risco. Podemos ter uma guerra breve. Queremos uma guerra breve, de breves semanas. Também podemos ter uma guerra longa, que dure mais de 4 anos, provocando mais de 16 milhões de mortos e mais de 20 milhões de feridos graves. Mas vale a pena o risco. No fim dessa guerra, três impérios podem cair, o mapa da Europa e das colónias pode ser refeito, a revolução pode vencer. Mas vale a pena correr o risco. Porque, se tudo correr bem, criaremos as condições para a sobrevivência do Império e, nele, para o reforço do predomínio do povo alemão”.
Algum austríaco daria crédito a esta declaração? A imensa maioria dos espectadores, muito provavelmente, consideraria que o seu austero primeiro-ministro estava completamente doido varrido. Se esta declaração fosse divulgada, mesmo pelos meios mais anódinos da imprensa de então, provocaria decerto a demissão de von Stürgkh e o seu internamento no Júlio de Matos lá do sítio. No entanto, todo o conteúdo da declaração que imaginámos corresponde inteiramente à verdade.
Vejamos agora o que sucedeu, de facto, alguns anos mais tarde, quando outro império já se encontrava no seu estertor final.
No dia 17 de Maio de 1991 o quinto canal da televisão de Leningrado transmitiu para todo o país o programa cultural “Quinta Roda”. Nesse dia, o apresentador Sergei Sholokov introduziu uma nova rubrica, na qual foi entrevistado um cientista desconhecido do grande público, Sergei Kurekin. Sentado ao lado de Sholokov, tendo atrás de si prateleiras repletas de livros, Kurekin adiantou que se iria debruçar sobre “o mistério central da revolução de Outubro”. Durante uma hora, sem parar, auxiliado por fotografias, documentos escritos, excertos de filmes e entrevistas com outros cientistas, com ar tranquilo e convicto, discorreu sobre a sua extraordinária teoria:
“Cada revolução tem uma representação visual que perdura. Tendo estado recentemente no México, aí encontrei algo que me perturbou: as imagens da sua revolução são em tudo semelhantes às imagens que simbolizam a revolução bolchevique. Ora, se os líderes de revoluções tão distantes no espaço imaginaram os seus actos de maneira tão semelhante, tenho por certo que as suas mentes foram sujeitas ao mesmo tipo de influências. No caso México é certo e seguro qual foi a influência decisiva: os povos nativos usam regularmente bebidas à base de peiote, um pequeno cacto que contém um grande espectro de alcalóides de fenetilamina, dos quais o principal, a mescalina, produz fortes efeitos psicotrópicos. Apesar de, como todos sabem, não haver peiote na Rússia, não é menos certo que nas suas florestas proliferam cogumelos que criam efeitos semelhantes, nomeadamente o amanita muscaria. Há muito que a ciência os conhece e, antes dela, há muito que os camponeses os consomem pelos seus efeitos alucinogénios. Quem os ingere vê imagens incrivelmente fortes, coloridas e brilhantes, de grandes acontecimentos revolucionários. Entretanto, fiz uma grande descoberta que nos conduz ao mistério central da revolução de Outubro. Lendo atentamente a correspondência trocada entre Lenine e Estaline, deparei com esta passagem enigmática: “Ontem comi muitos cogumelos e senti-me muito bem”. Para os iniciados, contudo, é fácil de perceber o que aqui se revela. Os líderes bolcheviques, podemos concluir, comiam muitos cogumelos. Estes cogumelos, consumidos durante muitos anos de seguida, podem mudar permanentemente a personalidade de quem os ingere. Assim, cheguei à conclusão absolutamente irrefutável de que a revolução de Outubro foi dirigida por pessoas que consumiam estes cogumelos há muitos, muitos anos. E que esses cogumelos mudaram as suas personalidades. Em suma, essas pessoas transformaram-se em cogumelos. Por outras palavras, eu quero dizer tão-somente que Lenine era um cogumelo.”
Sergei Kurekin era um brilhante pianista, um líder de banda rock da cena underground de Leningrado, um performer talentoso, um actor e um futuro humorista famoso. À época era praticamente desconhecido. Por isso, e pela sua extraordinária e convicta apresentação, foi levado a sério. Foi levado a sério por milhões de russos condicionados a aceitar a verdade vinda pela televisão. Na TV oficial não havia lugar à ironia, muito menos à irrisão. O programa de 1991 era um primeiro sinal de abertura e de menor controlo. O conteúdo dos programas a transmitir já não tinha de ser antecipadamente autorizado. Ora, naquela fase de transição para os novos tempos, os espectadores ainda não tinham aprendido a descodificar o discurso. Era uma primeira experiência de liberdade, por quem ainda não entendia o seu significado. Por isso, durante algum tempo, para muitos, Lenine foi um cogumelo.
Em 1914, ninguém acreditaria na verdade que um von Stürgkh lhes poderia ter transmitido, tão espantosa que ela era. Em 1991, tantos acreditaram na mentira, mesmo sendo tão espantosamente inverosímil. E tudo começou precisamente em 1914, quando um Lenine deliciado esfregou as mãos de contente ao tomar conhecimento do início da guerra: anunciava-se o conflito final do capitalismo, no qual todas as suas contradições se digladiariam em modo terminal. Lenine, um cogumelo!? Quem estaria afinal verdadeiramente alucinado, senão von Stürgkh, Bethmann-Hollweg, o Kaiser, o Czar e aquelas dezenas de iluminados que condenariam milhões? A alucinação de Lenine começaria depois, quando lhe foi dada a oportunidade de engenheirar uma nova sociedade sem ter literalmente ideia de como o fazer. Dessa experiência de engenharia social nasceria o homem soviético que não sabia distinguir a verdade da mentira.
José Luís Moura Jacinto
Sem comentários:
Enviar um comentário