Fotografia do espólio de Alberto Lacerda
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É de louvar o ímpeto que procura baixar um murro na
mesa, puxar-lhe nem que seja um susto para interromper os "vagares de
galinhola" com que se joga este pequeno vício de ter os dias apostados
entre cartas marcadas, com resultados que não servem nem para adiar a morte.
Mas, se for para partir, que se parta a mesa e não a mão.
Herberto Helder lançou há umas semanas um livro de
poemas inéditos e escritos no ano passado e logo o galinheiro se agitou de alto
a baixo, como tem feito sempre que o velho lobo faz descer as últimas crias. É
uma tal comoção e alegria que diz mais da estupidez das galinhas que da fome de
que se vêem cercadas. Comecemos por assentar nisto: não faltam a este país
grandes poetas. Vivos ou mortos, a um ouvido minimamente apurado soam uivos de
tal modo fundos que é difícil dormir descansado neste idioma. Porquê então este
nível de espalhafato com Herberto? Não há uma resposta, mas várias, e a maioria
são motivo de vergonha num ambiente cultural que tem grande dificuldade em
evitar que os seus lances se vejam absorvidos pelo casino manhoso nas mãos
desses que mostram mais "jeito para o negócio". O jogo público de
reflexão, o debate cultural e o esforço crítico de recepção das obras de
relevância artística e social, tem tido muita dificuldade em sobreviver às
grandes mesas de azar em que a casa ganha sempre.
Mesmo o papel em que os jornais hoje vão impressos as
mais das vezes não passa de mortalha a compor um defunto e tornou-se evidente
como o que por aí anda de crítica a nível da livralhada tem carta branca para o
exercício da fraude, das pequenas negociatas e dos tráficos de conveniências e
esquemas de compadrio. É tudo feito às claras e há anos que já não escandaliza
nem choca, aborrece simplesmente.
Muito aborrecido foi uma vez mais o levantar de penas
sem qualquer admirável "golpe de asa" que se seguiu à aparição do
novo livro de Herberto. Uma alegre tristeza para a qual contribuiu a inépcia da
grande agência editorial, que procurou montar um golpe de imagem com o frenesi
que já se esperava. Na grande desilusão que este público sempre à caça de
fenómenos é, raramente ele desilude. Que falta faz cá o Pacheco, para fazer
chegar uns rubores às faces deste tempo. Essa dose de vergonha sem a qual fica
tudo meio abandalhado, quando a mediocridade e a patetice se espreguiçam
alarvemente. O primeiro editor de Herberto havia de gritar mais alto que o rei,
que há anos se ermitou, desta vez saiu à rua em pelota. Ou Cesariny, esse seria
também gato suficiente para olhar da varanda este absurdo sem se misturar,
lembrando que, numa hora destas, "o que importa é não ter medo de chamar o
gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está
azedo!"
Então sua eminência, o supremo bardo, depois de um magnífico ressurgimento
ao fim de oito anos de silêncio com "A Faca não Corta o Fogo"
(Assírio & Alvim, 2008) e de um acto de bravura tauromáquica frente à
Grande Besta com "Servidões" (Assírio & Alvim, 2013), vem agora
fazer a fita de "burro velho" e distribuir pelas moscas uns últimos
coices já sem pujança. Num acto impulsivo irrompe para uma vénia grosseira,
como diva a quem subiram uns calores senis, não se decidindo a deixar o palco
sem uns ajustes de conta finais. Mas com quem? Com "este público",
com a vida em geral, ou com a cabra em particular?
Com o livro lido e sacudido umas vezes, o leitor é levado a inclinar-se
para esta última hipótese.
O autor diz às tantas: "Filhos não te são nada, carne da tua carne são
os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo."
Assim, numa encenação antecipada da pública leitura do seu testamento, "lá
está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo,/que nem o Diabo ousa/
ouvi-lo/quanto mais os anjos do Senhor, os pintainhos!", e adianta: "Eu
que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/vou morrer como um
cão deitado à fossa!" Mas se o tom, mais que queixoso, lamuriento,
surpreende por se tratar de um registo até aqui arredado de tão magna obra, o
pior vem mais à frente, quando o poeta se representa assim: "E aqui jaz,
acomodado, oitenta e três [...] uma reforma de pilha-galinhas e
poeticamente/enterrado vivo".
O livro vai depois acabar com um poema de tal modo
convertido às servidões a que a "vida quotidiana" obriga que Herberto
diz não se queixar "de nada no mundo senão do preço das bilhas de
gás". O leitor coça a cabeça e sente-a pequena, mas não "do
mundo" que tem diante de si, não de uma manifestação da tal "última
ciência" ou de qualquer outro gesto majestoso, antes de uma mão que sacode
o mau jeito de um gás, deixando a dificuldade de acreditar que seja a mesma com
que o poeta, "sensível apenas ao papel e à esferográfica",
"administra[va] a alma".
O disparate, no entanto, começa logo na nota que abre
esta edição gorda, feia e desavergonhada: "Tudo quanto neste livro possa
parecer acidental é de facto intencional." A sério!? O leitor já embala
maravilhado a seguir a isto, cheio de vontade de atender com a máxima acuidade
a todos os desafios do livro. E logo, encerrando o primeiro poema, vem o
reforço de um apelo: "Peço por isso que um erro de ortografia ou
sentido/seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro." Que
conversa é esta? Provocação?
Parece um desaire grandiloquente.
É preciso repetir a única verdadeira lição sobre a
poesia que precedeu isto, a de que é preciso lê-la. Di-lo Manuel Gusmão:
"Leiam Herberto Helder", o seu "poema contínuo". É um
desafio colossal. Um tipo descobre-a e fica torto, zonzo, afasta-se, volta lá
de vez em quando, serenado, como quem já sabe ao que vai, mas volta a perder o
norte. A vida muda-se para ali, "a verdadeira vida" está ali. Quanto
a este, "A Morte sem Mestre", fica a clara sensação de que não tem
lugar no grande "ministério lírico" do autor. Não está à altura. É
quase uma bofetada na cara do contentamento podre deste tempo com as servidões
a que se assujeitou. Uma acusação à alma baixa de um mundo que se deita e
rebola na lama da sua existência desprovida de qualidades.
Este livro só resiste como uma denúncia, um "é
isso que querem?, então tomem lá!" Sem ânimo, sem a energia apaixonante e
comovedora que confirma o acto de criação e nos devolve, através de uma
nomeação e música nada austeras - na antítese da "austeridade" -, ao
sentido profundo, sagrado da experiência de estar no mundo e ocupar nele um
lugar harmonioso, atento. São avisos apagados, epigonais em relação à anterior
obra do poeta, aquilo que de melhor resiste a esta "Morte sem
Mestre": "Queria ver se chegava por extenso ao contrário:/força e
pulsação e graça,/isto é: a luz, de dentro, despedaçando tudo,/e
concentrada:/estrela".
Depois do acto final de "Servidões", este
livro é já a Morte, o apagamento de uma luz que corre o risco de ser
desentendida se a língua em que vive não resistir à banalidade, tocando uma vez
por outra o céu da boca, para sentir o ouro da estrela que foi Herberto Helder.
Diogo Vaz Pinto
(originalmente
publicado no jornal «i»)
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