Chovia
que Deus a dava. Trovoada iminente, clarões ao fundo. Com tantos relâmpagos no
horizonte, não seria a melhor altura para subir a uma colina de Budapeste. Mas talvez
não houvesse outra ocasião para regressar ali, à Estátua da Liberdade, que
outrora foi da Libertação.
Ao
chegar ao Hotel Géllert, cúmulo de decadência, é só virar à direita e começar a
caminhada, que se faz bem nos dias bons. Acercamo-nos primeiro da Igreja da Rocha. No dia
13 de Maio de 1948, quando uma multidão de fiéis se reuniu ali em louvor à (nossa)
Senhora de Fátima, numa cerimónia celebrada pelo Cardeal József Mindszenty, a polícia fez valer
a nova ordem comunista, dispersando os crentes. Mais tarde, em Junho de 1960,
ergueram um muro de dois metros a tapar a entrada do lugar de culto. O muro só foi
demolido por volta de 1991-1992. Nesse mesmo ano de 1992, um artista húngaro,
numa imitação de Christo,
cobriu a Estátua da Libertação com um gigantesco lençol branco. Mas já lá
vamos. Agora, há que subir até ao alto. Da Igreja da Rocha, que deixámos para
trás, muito haveria a dizer, mas o essencial é isto: está transformada num
emaranhado de grutas kitsch, para
trogloditas de mau-gosto.
Fotografia de António Araújo
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Até
ao cimo da Colina Géllert, onde fica o Monumento e a Cidadela, ainda faltava um
bom pedaço. Lá no alto, a estátua da mulher esguia, segurando uma palma com ambas
as mãos. Pelo caminho, crocitavam corvos, muitos, abrigados do temporal que se
avizinhava. Estando em Buda e ouvindo corvos, devia curvar-me perante a memória
de Matias Corvino, até porque um outro Matias, esse grande amigo e de nome
Gonçalo, muito tinha feito para que eu ali estivesse. Corvinus Mátyás ou
Hunyadi Mátyás
foi, todos o sabem, um grande rei da Hungria, dos maiores de todos. Nas armas
dos Hunyadi, existe um corvo, um corvo com um anel de ouro no bico, símbolo que
encontramos em vários locais de Buda e também na Polónia (ver aqui)
Fotografias de António Araújo
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Aproximava-me
da Estátua da Liberdade. Alguns guias turísticos, incluindo o da American
Express, dizem que foi concebida para evocar a memória de István Horthy, o malogrado filho
do almirante Miklós Horthy,
«Sua Alteza Sereníssima, o Regente da Hungria». De acordo com a lenda, os
soviéticos apossaram-se desta criação do escultor Zsigmond Kisfaludi Stróbl (Alsórjak,
1884 – Budapeste, 1975) (e aqui, aqui ou aqui)
transformando-a compulsivamente numa homenagem às tropas libertadoras vindas de
Leste.
A
escultura, de quase 14 metros de altura (altitude?), assenta num obelisco com 22 metros, o
que, tudo somado, significa que está muito lá no alto. Foi inaugurada em Abril
de 1947, para celebrar o segundo aniversário da expulsão dos nazis e, portanto,
da libertação da Hungria pelo Exército Vermelho. Daí ter sido chamada «Estátua
da Libertação» (e não, como a sua colega de Nova Iorque, «Estátua da
Liberdade», até porque, como sabemos, para os soviéticos libertação era uma coisa e liberdade
era uma outra coisa).
A Colina Géllert, antes da Estátua da Libertação
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A Estátua, já presente ao fundo
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Em primeiro plano, a Cidadela
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Imagens pré-1989.
Os Pioneiros, desenhando a Estátua da Libertação
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Agora,
vamos ao mito urbano. Como refere Bob Dent em Every Statue Tells a History, um livro de 2009 algo ligeiro sobre
a riquíssima estatutária de Budapeste, com gritantes lacunas mas ainda assim
bastante informativo, mesmo hoje encontra-se enraizada a ideia de que o
Monumento à Libertação, da autoria de Stróbl, se destinava a honrar a memória
de István Horthy, o filho mais velho do almirante Miklós. Também no guia do
Parque das Estátuas/Memento Park, da autoria de Ákos Réthly, se refere a lenda urbana que propagava a falsa ideia de
que o monumento se destina a homenagear a memória do aviador István Horthy. Dizia-se,
até, que, em lugar de uma palma, a rapariga deveria ter uma hélice na mão…
Horthy e Hitler, 1938
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Ao
almirante deram vários títulos, como «Protector da Hungria». Comandou o país
nos difíceis tempos de entreguerras, Na época, aproximou-se amistosa e perigosamente
de Hitler, deixando na História da Hungria uma marca assaz incómoda. Se lermos
uma brevíssima introdução ao historial daquele país, como Hungary. A Brief History, de Itván Lázár (da editora Corvina, claro
está), apercebemo-nos do contorcionismo do autor para tentar justificar o
injustificável. Os tempos mudaram e hoje a figura do almirante Horthy goza de
bastante apreço, facto que, se juntado a outros que vamos conhecendo, não deixa
de ser preocupante para todos nós. No Museu Nacional da Hungria encontramos um
autêntico santuário dedicado à memória do Regente, com a sua farda e objectos
pessoais, entre outros adereços políticos (a que seguem sumarentas salas sobre
os tempos do comunismo).
Pois
bem, quando o almirante começou a vacilar no apoio a Hitler, os nazis
perceberam que era tempo de agir – rapidamente e em força. O seu filho querido,
oficial da Força Aérea, teve um estranho acidente de aviação, seis meses depois
de o parlamento o ter nomeado vice-regente da Hungria (ou seja, se algo
acontecesse ao pai, István suceder-lhe-ia no cargo). O rapaz, bem-parecido, que
em mais jovem trabalhara na fábrica da Ford, em Detroit, gozava de apreciável
popularidade e era um opositor ao nazismo e à deportação dos judeus. Casou com
uma condessa, Ilona Edelsheim-Gyulai, Ily de petit nom,
que morreu no Reino Unido o ano passado de 2013, aos 95 anos de idade.
Uma
senhora distinta de origem norueguesa, Edle Astrup Hubay Cebrian, casada com um
aristocrata húngaro, privou de perto com Ily Edelsheim, a mulher de István.
Edle Cebrian escreveu memórias, publicadas entre nós em 2003 pela Oficina do
Livro, com o título De Budapeste ao
Estoril. Uma vontade indomável. A páginas tantas, recorda a coragem de Ily
durante a guerra, trabalhando como enfermeira da Cruz Vermelha e criando um
filho de dois anos. Quando o marido lhe disse que iria tentar aproveitar um voo
de reconhecimento da frente Leste para se juntar aos Aliados, Ily ter-lhe-á
dito, com nobreza: «− Se achas que é isso que deves fazer pelo teu país, não
hesites. Vai, e não penses em nós». Não sabemos se o patriótico diálogo foi
exactamente esse, mas pelo menos foi assim que Edle Cebrian o ouviu da boca de
Ily Edelsheim, quando ambas viviam refugiadas em Portugal, mais precisamente no
Estoril. Seguindo o conselho da mulher, István descolou no seu monomotor às
quatro da madrugada. O avião despenhou-se pouco depois, tendo o piloto morte
instantânea. Quando um general alemão se deslocou a casa da viúva para lhe dar
as condolências do Führer, a condessa
recusou os pêsames e pô-lo na rua. Se não é verdadeiro, é bem achado.
O
escultor Kisfaludi Stróbl trabalhou num memorial evocativo de István, muito
provavelmente a pedido do pai deste, o almirante Miklós Horthy. O que não é verdade
é a história segundo a qual, em 1945, os russos entraram no atelier de Stróbli,
viram a estátua e quiseram-na para eles. Essa historieta, ao que parece, surgiu
pela primeira vez num livro sobre a Hungria, da autoria de Pál Ignotus,
publicado no Reino Unido em 1972. A partir daí, foi difundida amplamente, como
todas as boas lendas. Ainda hoje podemos ver o Memorial de Horthy, de que
existe um modelo no Museu Göcsej, em Zalaegerszeg, que possui uma ala dedicada à obra de
Stróbl. Existem ténues semelhanças com a Estátua da Libertação, mas pouco mais
do que isso.
Kisfaludi Stróbl,
Estudo para monumento a István Horthy, 1944
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Morto
István num acidente aéreo, restaram o almirante e o seu filho, Miklós Horthy de Hagybánya II,
nascido em Pula, no ano de 1907, e falecido no Estoril em 28 de Março de 1993.
Com Miklós Jr. passou-se uma história curiosíssima, mas esta verdadeira. Depois
da morte do irmão, Miklós Jr. – que chegou a ser, durante uns tempos,
embaixador da Hungria no Brasil – decidiu incrementar a sua hostilidade face
aos nazis. Como também o seu pai dava mostras de querer descolar do letal amplexo
de Hitler, os alemães urdiram a retaliatória e chantagista «Operação Panzerfaust»,
também conhecida por «Operação Mickey Mouse» («Mickey» era uma derivação humorística
do nome Miklós, ou «Nicky»).
Otto Skorzeny
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Para o efeito, colocaram em campo o melhor homem que tinham para as operações de alto risco, o mítico austríaco Otto Skorzeny, que já havia cometido a proeza de libertar Mussolini, encarcerado num hotel dos Apeninos. Nas suas memórias, Skorzeny conta em detalhe a «Operação Mickey Mouse» (cf. Otto Skorzeny; Skorzeny’s Special Missions. The Memoirs of «The Most Dangerous Man in Europe», 1957, reed. 1997, pp. 131ss; cf. ainda, por ex., Charles Whiting, Skorzeny. «The Most Dangerous Man in Europe», 1998, pp. 47ss). Antes desta operação, o austríaco ainda foi enviado a França, com vista a montar a captura e resgate de Pétain (outra das acções engendradas visava matar Churchill, Roosevelt e Estaline quando estes se encontravam reunidos na Conferência de Teerão). Abandonado o plano de raptar Pétain, Skorzeny é enviado a Budapeste, com uma identidade falsa. Pouco depois de chegar às margens do Danúbio, o «Dr. Wolf», de Colónia (era essa a sua falsa identidade), sabe que Miklós Jr. havia iniciado conversações secretas com os partisans jugoslavos, comandados por Tito, com vista a obter a rendição da Hungria aos soviéticos. Tito actuava como intermediário de um negócio a que os nazis tinham de pôr cobro de imediato. Assim o fizeram. Entre diversas peripécias, Skorzeny rapta Miklós Jr. e um amigo deste. Para os conseguir tirar discretamente de onde estavam, foram enrolados numa carpete atada com uma corda de um reposteiro e levados para longe dali. Em pouco tempo, estavam metidos num avião a caminho de Munique. Miklós Horthy Jr. acabaria no campo de concentração de Dachau e, com o avanço dos Aliados, seria deslocado para o Tirol.
Perante
a ameaça de que matariam o seu filho, o almirante Horthy rendeu-se aos alemães
e abandonou o poder, sendo conduzido por Skorzeny a um castelo na Baviera, onde
ficou detido em prisão domiciliária. A história da carpete, por mais
rocambolesca que pareça, é autêntica. Foi até recriada, em figuras de cera, num
dos locais mais fantásticos de Budapeste, o Hospital na Rocha. Era aí, nesse
hospital subterrâneo, convertido em abrigo nuclear durante a Guerra Fria, que a
condessa Ily Edelsheim e outras grandes senhoras da aristocracia húngara
serviram como enfermeiras da Cruz Vermelha. Aliás, foi Ily Edelsheim, a viúva
de István Horthy, que presidiu à inauguração do estabelecimento hospitalar
cavernícola, onde tantas vidas foram salvas (cf. Gábor Tatai, The Short History of the Hospital in the
Rock, 2012, pp. 10-11). Nesse mesmo local, muitos anos depois, seria
colocada uma recriação em cera do rapto do seu cunhado, prova de que a vida, de
facto, dá muita volta. Muda num segundo. Para quem duvide, mais uma nota: Otto
Skorzeny e o pai Horthy acabariam por reencontrar-se. Onde? Nas celas do
Palácio da Justiça de Nuremberga, estando ambos encarcerados por envolvimento com
o III Reich. Reencontraram-se, falaram longamente e, segundo Skorzeny, ficaram
amigos.
Com o final da guerra, quer o almirante
Horthy quer o seu filho exilar-se-iam no Estoril. O pai morreu em 1957, o filho
em 1993, tendo deixado duas filhas, Zsófia (nascida em 1928) e Nicolette
(nascida em 1929). Não sei se estão vivas. Sei que Skorzeny, o vilão da
história, terminaria os seus dias não muito longe daqui: fixou-se em Espanha,
onde morreu de cancro, em Madrid, no ano de 1975.
Foi no Estoril que, como vimos, a
norueguesa Edle Astrup Hubay Cebrian privaria de perto com Miklós Horthy e
senhora, com a sua nora Ily Edelsheim, viúva do primogénito István, e com
Miklós Jr., atapetado pelos nazis. O marido de Edle Cebrian estivera à frente
da fábrica de porcelanas Herende, ainda hoje famosa. E, como nestas histórias
aparece sempre um leão, aqui fica uma fraca imagem de um horroroso felídeo de
porcelana, quase em tamanho natural, rosnando na montra da Herende na elegante
Avª Andrássy:
Fotografia de António Araújo
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Devido a esta experiência laboral na
Herende, e aos seus dotes estéticos, o marido de Edle recebeu dois convites:
um, para dar aulas numa universidade norte-americana; outro para ser director
artístico das porcelanas Vista Alegre. Aceitou este último, pelo que a família
veio viver para Portugal. Segundo a viúva, que também já morreu, tentou
modernizar os métodos de produção da fábrica de Ílhavo, mas «esbarrou sempre
com alguma hostilidade por parte dos proprietários». Acabou por se demitir, mas
permaneceu entre nós, dando aulas de desenho e pintura na Escola Americana e
sendo treinador de futebol no colégio St. Julian’s. Quando se dá a revolução de
1956, o casal continuava a residir no Estoril. Apoiante dos revoltosos, o
marido de Edle fez dezenas de chamadas telefónicas para Budapeste, tantas que
chamou a atenção da PIDE. Seria convocado à António Maria Cardoso e, durante
três dias, a família nada soube dele. Um amigo da família, Salvador Corrêa de
Sá, intercedeu junto de Salazar. O húngaro foi devolvido ao lar nesse mesmo
dia, sendo conduzido a casa num Mercedes negro, e de chauffeur. Morreria em Fevereiro de 1971.
Com tantas histórias pelo meio, nunca
mais chegamos ao cimo da Colina Gellért e à Estátua da Libertação. A verdadeira
história da estátua nada tem a ver com os Horthy. Aliás, nas suas memórias,
expressivamente intituladas Pessoas e
Estátuas, o escultor Kisfaludi Stróbl conta efectivamente o que se passou. Um
dia, no final da guerra, o marechal Voroshilov, chefe da missão soviética no
Comando Aliado de Budapeste, entrou no seu atelier. Ao que parece, gostara muito
de uma estátua sua, O Arqueiro, de
1918, que originalmente, em 1925, estava em frente ao Atlético Clube da Hungria,
na bela Ilha Margarida. Em 1929 foi trasladada para o Parque da Cidade, naquela
que é actualmente a Praça Olof Palme. Ainda lá está. Há quem diga que
Voroshilov (ou Vorochilov) terá apreciado sobretudo o aspecto dinâmico e
heróico da estátua, muito ao gosto do socialismo realista. O certo, porém, é
que O Arqueiro aparece referido em
vários roteiros gay e possui, de
facto, uma ressonância homoerótica muito nítida, o mesmo acontecendo, de algum modo, com uma medalha de 1925, onde surge um homem nu esgrimindo com a Morte.
Kisfaludi Stróbl,
O Arqueiro, 1918
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O facto de uma personalidade como
Voroshilov se deslocar ao atelier de Stróbl só tem uma relevância transcendente
se percebermos de que personalidade falamos quando falamos de Kliment Yefremovich Voroshilov (1881-1969).
Foi, nem mais nem menos, do que um dos apoiantes de primeira hora de Estaline,
logo após a morte de Vladimir Illich Ulianov. Como refere Robert Conquest, na
sua biografia de Estaline (Stalin.
Breaker of Nations, 1991, p. 78), conheciam-se há muito; ao que parece,
Estaline encontrou Voroshilov a primeira vez quando este liderada uma greve de
trabalhadores do petróleo em Baku; depois, foram ambos delegados ao Congresso
de Estocolmo, em 1906, partilhando quarto nessa ocasião. Estaline deu-lhe
destaque na Guerra Civil como forma de enfraquecer a autoridade de Trotsky;
este protestou, dizendo que Voroshilov «era capaz de comandar um regimento, mas
não um exército de 50 mil homens». De acordo com a clássica biografia de
Estaline feita pelo trotsquista Isaac Deutscher, Leão Trostky terá mesmo
ameaçado levar Voroshilov a um tribunal militar, tal era a sua incompetência
castrense. Diz-se até que, de todos os protegidos de Estaline, Voroshilov era
aquele que mais irritava Trotsky (cf. Ronald Hingley, Joseph Stalin. Man & Legend, 1974, p. 119). Trotsky julgava que
era Voroshilov o culpado pelos constantes actos de insubordinação na «frente
czarista» e só mais tarde (tarde demais…) se apercebeu de que o verdadeiro
responsável era Estaline (cf. Robert Payne, The
Rise and Fall of Stalin, 1965, p. 238). O marechal sempre fez parte do
círculo mais restrito dos fiéis a Estaline – e conseguiu a rara proeza de ter
sobrevivido a todas as purgas. Destacou-se, aliás, nas purgas do Grande Terror
como um dos mais ferozes e impiedosos defensores das matanças em massa. Nos
alvores da década de trinta, escreve Montefiore, Vorishlov era «o maior herói
do panteão bolchevique». Sebag Montefiore descreve-o, aos cinquenta e poucos
anos, como «um comandante de cavalaria simpático e jactancioso, ex-torneiro
mecânico, senhor de um belo bigode quase d’artagnesco, cabelos louros e um
rosto rosado de querubim» (A Corte do
Czar Vermelho, 2006, pp. 28-29). O retrato de Simon Sebag Montefiore é
impedioso:
«“Vaidoso como uma mulher”, ninguém
gostava mais de uniformes do que Vorochilov. Este boulevardier proletário, que vestia roupas de flanela branca na sua
sumptuosa dacha e tinha um
equipamento completo para jogar ténis, era um alegre epicurista, “amável e
divertido, amante de música, de festas e de literatura”, que apreciava a
companhia de actores e escritores. Estaline soube que usava o lenço de pescoço
da mulher por causa de uma constipação de Verão: “É natural, gosta tanto de si
mesmo que se cuida o mais que pode. Ah! Até faz exercício!”, comentou.
“Notoriamente estúpido”, Vorochilov raramente via um pau sem lhe pegar pela
ponta errada.
Serralheiro em Lugansk (mais tarde
crismada Vorochilov), mal completara, como muitos dos líderes de Estaline, dois
anos de escolaridade. Membro do partido desde 1903, partilhara um quarto com
Estaline em Estocolmo, em 1906, mas foi em Tsaryn que se tornaram amigos. A
partir de então, o Vozhd apoiou o seu
“comandante-chefe desde o torno-mecânico” até que se tornou comissário da
Defesa, em 1925. Completamente fora de pé, Vorochilov odiava as mentes
militares mais sofisticadas com o complexo de inferioridade que era, no círculo
de Estaline, uma das paixões mais motivadoras. Desde os tempos em que levava o
correio, a cavalo, aos mineiros de Lugansk, o cérebro dele sentia-se muito mais
à vontade com o equino do que com o mecanizado.
Habitualmente descrito como um ranhoso
cobarde na presença do amo, Vorochilov tinha flertado com as oposições e era
perfeitamente capaz de perder a paciência com Estaline, que sempre tratou como
um velho amigo. Era muito ligeiramente mais novo do que Koba e continuava a
chamar os bois pelos nomes mesmo depois do Terror. De cabelos louros e faces
rosadas, olhos calorosos e brilhantes, era meigo por natureza. E a coragem
deste beau sabreur não tinha igual.
No entanto, por baixo deste aspecto angelical, havia qualquer coisa nos lábios
que revelava um feitio petulante, uma crueldade vingativa e um gosto pelas
soluções violentas. Uma vez convencido, era “politicamente tacanho”, cumprindo
as ordens com rígida obediência.
O culto que lhe prestavam só ficava
aquém do de Estaline: até no Ocidente, o romancista Denis Wheatley publicou um
panegírico intitulado The Red Eagle –
“a assombrosa história do rapazinho que derrotou os soldados profissionais de
três nações e é hoje o Senhor da Guerra da Rússia”».
(cf. Simon Sebag Montefiore, A Corte do Czar Vermelho, trad.
portuguesa, 2006, pp. 69-70).
Voroshilov e Estaline, ou vice-versa
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Também
o general Dmitri Volkogonov o apresenta em tons algo depreciativos, dizendo que
Voroshilov foi apresentado como um herói da Guerra Civil em larga medida devido
ao patrocínio de Estaline. «Combatera com coragem, mas com pouca cabeça»,
resume Volkogonov. E o facto de, no final dos anos vinte, existirem biografias,
livros e artigos sobre ele, um tanque de guerra baptizado com o seu nome, etc.,
pouco incomodava Estaline, já que, na década seguinte, os títulos laudatórios o
colocavam numa posição subalterna: «aquele que transmite a vontade do líder», o
«marechal vermelho conduzido pelo camarada Estaline» ou o «comissário de
Estaline». Eram verdadeiros amigos, mas Voroshilov sempre se sentiu em dívida
para com Estaline, a quem devia a fama e a glória, as honras e o conforto. Já
então era um «mero executor que não pensava, destituído de opiniões próprias»
(cf. Dmitri Volkogonov, Stalin. Triumph
& Tragedy, 1988, pp. 249-250).
Na
2ª. Guerra, como seria de esperar, Voroshilov atrapalhou-se, sendo rapidamente
substituído no comando da defesa soviética quando os alemães se encontravam já
quase às portas de Moscovo. Em Koba, the
Dread, saído em 2002, Martin Amis define-o como «cretino», o que não será
dos qualificativos mais apropriados, ainda que seja um facto de que um dos
desportos favoritos do inner circle
de Estaline era gozar com a estupidez e a vaidade de Voroshilov. Mas, pelo
menos, o marechal Voroshilov sabia sobreviver, o que não era fácil na corte do
czar vermelho. Tanto assinava a ordem que ditou o massacre de milhares de
oficiais polacos em Katyn como era capaz de se virar para Estaline e dizer-lhe
que este era o grande culpado pelos sucessos da invasão alemã, ao ter dizimado
os melhores generais do Exército Vermelho. Após a morte de Estaline,
destacou-se, sem sucesso, entre os que se opunham a que os crimes daquele
fossem investigados. Mas, sendo toda a vida um fidelíssimo estalinista, não
teve destino idêntico ao de Béria (pelo contrário, foi dos que ditaram a queda
do odioso Lavrenti). No final da vida de Estaline, e juntamente com Molotov ou
Mikoyan, Voroshilov era dos poucos, muito poucos, que o líder ainda queria ver
à frente, e isto quando estava bem-disposto e, como era seu velho hábito, lhe
apetecia ver um filme com os amigos. Voroshilov era dos mais íntimos, dos que
ficaram até ao fim, como acentua Allan Bullock em Hitler and Stalin. Parallel Lives. Em tempos mais recuados,
Estaline deleitava-se em cantar conjuntamente com Voroshilov e Molotov, sendo o
trio acompanhado ao piano por Zhdanov (cf. Robert Service, Stalin. A biography, 2004, p. 436). Com a chegada de Krutschev,
ascenderia ao cargo de presidente do Presidium da URSS. Formalmente, foi, por
conseguinte, chefe do Estado da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
entre 1953 e 1960. Mas, por mais coisas que tenha feito na vida e por mais
títulos que haja ostentado ao peito, o marechal Voroshilov ficará para a
História – e eternamente inscrito! – como aquele-artista-que-deixou-cair-ao-chão-a-Espada-de-Estalinegrado.
A Espada de Estalinegrado
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Expliquemo-nos:
por ordem de Sua Majestade Jorge VI, o Reino Unido forjou uma magnífica espada,
adornada de oiro e prata, para ser entregue à União Soviética em homenagem pela
sofrida vitória na tremenda Batalha de Estalinegrado. O nome era óbvio: Espada de Estalinegrado (e aqui).
Foi desenhada por um professor de Oxford, com aprovação final do projecto pelo próprio
monarca. Uma comissão de nove peritos acompanhou a execução dos trabalhos,
tendo a inscrição em russo sido vista e revista por um prestigiadíssimo
especialista em iconografia eslava, professor em Cambridge. A peça, que levou três
meses a forjar, é considerada uma das mais brilhantes jóias da armaria
contemporânea. Antes de ser oferecida aos soviéticos, a Espada fez um tour pelo Reino Unido, para que o povo a
pudesse admirar. Chegou a estar exposta na Abadia de Westminster, episódio que
Evelyn Waugh retratou, em tom crítico, na sua trilogia Sword of Honor. Acertou-se diplomaticamente que Winston Churchill a
entregaria em mão a Josef Estaline, no decurso da Conferência de Teerão, aquela
onde Otto Skorzeny, como vimos, planeou matar os líderes dos Big Three. Vejamos as filmagens da
oferta da Espada. Com pompa e circunstância, num ambiente de enorme solenidade,
Winston Churchill deposita a Espada de Estalinegrado nas mãos do líder
soviético. Este passa-a para o lado, para as mãos calejadas do seu camarada de
armas, o portentoso marechal Voroshilov. As imagens da cerimónia foram cortadas
na parte mais embaraçosa, mas aqui, nestes vídeos, aos minutos 1:09 e 1:22, percebemos
claramente que algo errado se passou. Voroshilov deixou cair a Espada ao chão.
Existem
diversas versões do desastre, essencialmente reunidas em três teses académicas:
(1) a Espada caiu ao chão; (2) a Espada caiu em cima do pé do marechal; (3) o
marechal conseguiu apanhar a Espada antes dela cair no soalho. Seja como for,
notamos nestas hilariantes imagens o ar atrapalhadíssimo de Voroshilov, que
decerto temia que, após o incidente, a sua cabeça fosse a primeira a rolar sob
o fio implacável da rutilante Espada de Estalinegrado.
Tempos depois deste histórico percalço,
Voroshilov foi colocado aos comandos doutra exigente tarefa: a sovietização da
Hungria. Foi nessa qualidade que se deslocou ao atelier de Stróbl e lhe
encomendou um monumento. Antes disso, perguntou ao escultor quais os seus
antecedentes biográficos, artísticos e políticos, se dispunha boas condições de
trabalho, se tinha gasolina para o aquecimento, aspectos práticos e comezinhos,
mas fundamentais nos tempos árduos do pós-gurerra. Em resultado desta conversa
altamente produtiva, os vidros partidos das janelas do atelier de Stróbl foram
substituídos, chegou uma remessa de combustível para o aquecimento e vários
pacotes com alimentos. Numa ocasião, que Stróbl recorda efusivamente nas suas
memórias, entregaram-lhe nada menos do que dez quilos de caviar. Voroshilov
poderia ser pouco perspicaz em matéria militar, mas era um esteta que se
deleitava em conviver com artistas.
Endereçado no início de Setembro de
1945, o convite para desenhar o memorial surgiu formalmente do governo da
Hungria mas, na prática, era uma encomenda pessoal de Voroshilov, acompanhada
de dez quilogramas de ovas de esturjão. Stróbl, muito obediente a estas
hierarquias, tinha isso em mente. Despachou-se com a empreitada, pronta em
dezoito meses. Tratava-se de gizar um conjunto onde convivessem, tão
harmoniosamente quanto possível, uma figura feminina com uma palma nas mãos,
uma jovem a correr com uma tocha acesa e um homem musculoso à luta com um
dragão. A que acrescia um soldado soviético com uma bandeira triunfal e dois
baixos-relevos: um alusivo à amizade húngaro-soviética, outro saudando a reconstrução
de Budapeste. «Poderia haver melhor tarefa do que preservar, na pedra e no
bronze, a memória heróica dos nossos salvadores e libertadores, que
sacrificaram as suas vidas por nós?» − pergunta Stróbl nas suas memórias,
publicadas em 1969 (e, muito grato e obsequioso, em 1955 faria o busto de
Voroshilov, seu patrono).
Kisfaludi Stróbl,
Busto de Voroshilnov,
1955
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Apesar
do seu discurso grandiloquente, o facto é que Stróbl sempre foi um servidor do
gosto dominante. No seu academismo de salão, fez esculturas de George Bernard
Shaw e de vários príncipes e princesas da Hungria, e não só. Em 1937, desenhou
o busto a uma jovem princesa britânica: Isabel, filha de Jorge VI, futura
rainha de Inglaterra. Em bom rigor, Stróbl era um conformista, que só se
desviara uma vez dos caminhos convencionais; decidiu, por sua alta recriação, dar
forma à figura de um soldado revolucionário que encontrou nos levantamentos subsequentes
à Grande Guerra. Cópias desta sua obra foram usadas nas celebrações do 1º de
Maio de 1919. O artista, ao que parece, viu-se em trabalhos por causa da
estátua do soldado rebelde, jamais tendo a ousadia de esculpir fora da linha.
Kisfaludi Stróbl,
O Soldado, 1919
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O
militar que criou para o Memorial da Libertação não corria esses riscos.
Cumpria ao milímetro a nova regra soviética. Diz-se que o modelo foi o soldado
Vasili Ivanovich Golovcov, do Exército Vermelho. Há quem lhe confira o grau de
sargento, dizendo que, cerca de vinte anos depois da inauguração da obra, o
levaram a conhecer a estátua e o artista que a concebera, sendo as imagens
filmadas por documentaristas soviéticos. Será que estamos a falar de Vasili
Ivanovich Golosov, um dos mais conhecidos snipers
da 2ª Guerra? A sua pontaria fez 422 vítimas e o Exército Vermelho galardoava
todos quantos matassem acima dos 50 inimigos, o que era o caso. No sinistro top ten dos melhores snipers da 2ª Guerra,
apenas um deles não é soviético. Simo Häyä, pacato agricultor, era chamado
«Morte Branca» pelos seus camaradas do Exército Vermelho. No cadastro tem entre
542 (confirmadas) ou 705mortes (não confirmadas). Vasili Golosov averba 422 mortes, onde se
incluem 70 outros snipers, seus
adversários. Não admira, pois, que seja uma das personagens do jogo Call of Duty 2.
Call of Duty 2
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Antes
da honra de figurar num jogo de vídeo, Golosov terá sido imortalizado em
bronze. Trata-se de uma suposição, aliás arriscadíssima, mas que pode ter
fundamento. Para mais, o sniper e a
estátua têm algumas parecenças. Em 1956, quando se dá a revolução na Hungria,
derrubaram muitas estátuas. Uma delas, como se sabe, foi a de Estaline, cuja gigantesca
cabeça andou a rolar pelas ruas de Budapeste, em imagens muito célebres. Outra
vítima foi o soldado da Colina Géllert. Deitaram a estátua abaixo, só ficando
os pés em cima de um plinto de sete metros. Com a reposição da ordem, repôs-se
também a estátua. De facto, e para que não restassem dúvidas sobre quem mandava
ali nas margens do Danúbio, em 1958 uma réplica exacta foi colocada naquele
lugar.
Parque das Estátuas, Budapeste.
Fotografias de António Araújo
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Mais
tarde, a réplica foi removida, encontrando-se hoje no Parque das Estátuas, nos
arredores de Budapeste. Foi lá que a vi, ainda imponente, mas já sem a chama belicista
de eras pretéritas. A estrela do obelisco, que eu saiba, desapareceu de vez. Creio
que tudo se passou logo em 1989 (ou princípio da década de noventa), quando
removeram a estrela e a estátua do soldado, tendo as inscrições no obelisco
sido mudadas. Onde se lia «À memória dos
heróicos soviéticos libertadores. O povo da Hungria, agradecido» passou a
ler-se «À memória de todos os que
sacrificaram as suas vidas pela independência, liberdade e prosperidade da
Hungria». A estátua central do monumento deixou de chamar-se «Estátua da
Libertação». Agora é «Estátua da Liberdade».
A estátua do soldado:
derrubada em 1956, foi feita uma cópia, posteriormente transferida para o «Memento Park»
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Além
do soldado soviético, na efémera revolução de 1956 também quiseram deitar
abaixo a rapariga com a tocha. Ao que parece, foram os estudantes da
Universidade Técnica (por sinal, um majestoso edifício, não muito longe dali)
que se opuseram à remoção da flamejante jovem. Segundo os estudantes, a rapariga
poderia ficar, pois era uma alegoria da liberdade, bem adaptada às esperanças
da rebelião húngara. Ainda lá está hoje. Mas, não sei em nome de que tradição,
tem as nádegas num estado lastimável, cobertas de pastilhas elásticas. O mesmo
não sucede com o homem ao lado, tratado mais respeitosamente. Vê-la assim é
algo estranho, até triste. Um turista qualquer, bastante palerma, deve ter
começado a vandalização. Seguiu-se outro, mais outro depois e rapidamente se
transitou da libertação para a liberdade e desta para a libertinagem. Vede o desconchavo:
Fotografias de António Araújo
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A
Estátua da Libertação/Liberdade foi feita tendo por base um modelo de carne e
osso, uma jovem de nome Erzsébet Gaál Thuránszkyné. Criada num orfanato, aos 20
anos serviu de inspiração a Stróbl. A rapariga, que não recebeu quaisquer
honorários pelo seu trabalho como modelo, iniciou pouco depois uma relação
amorosa com um funcionário alfandegário austríaco. Os soviéticos não gostaram.
Erzsébet foi proibida de sair do país até ao fim da vida.
Erzsébet Gaál Thuránszkyné, o modelo
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Os
húngaros adoram estátuas – e Budapeste tem uma estatuária extraordinária. Além
do brilhantismo matemático, terá sido, porventura, este apreço pelas formas e
pela sua dinâmica que os levou a conceberem o Cubo de Rubik e, mais
recentemente, o lindíssimo Gömböc. Afeiçoaram-se à Estátua da Liberdade, a quem chamam na
gíria «Abre-Garrafas» (as formas, de facto, assemelham-se a um abre-garrafas).
É um símbolo de Budapeste, muito reproduzido e alvo de variados pastiches. Já apareceu em selos postais
e, entre 1970 e 1995, circulou nas moedas de 10 HUF.
Uma acção do Greenpeace
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Recentemente foram
ensaiadas aqui, em jeito de brincadeira, alternativas criativas para o topo da
Colina Géllert, substituindo o Monumento da Liberdade e a Cidadela.
A
primeira e única vez que a Hungria enviou um astronauta ao espaço, em 1980,
este levava no bolso uma miniatura da estátua. É certo que Bertalan Farkas (n. 1949), assim se chama o viajante
dos astros, hoje tornado político conservador, embarcou numa nave soviética, no
âmbito do programa espacial Intercosmos. Por isso, estando a bordo da Soyuz 36, era um gesto de elementar
cortesia para com os anfitriões levar algo que recordasse a amizade
húngaro-soviética. Nada melhor do que uma miniatura da Estátua da Libertação.
Fotografias de António Araújo
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Agora, o homem. A figura masculina representa um homem musculado prestes a esmurrar um dragão malvado. Não é claro de que figura mitológica se trata, se é que se trata de uma figura mitológica. Muito possivelmente, estamos perante uma alusão a Hércules, por razões tão conhecidas que me abstenho de explicar. A inspiração será essa, muito possivelmente. Sendo assim, não há como deixar de falar de outra estátua. Por sinal, a uma vítima do estalinismo, que desapareceu na sinistra sede da polícia política em Moscovo, na Praça Lubyanka. Trata-se do grande Raoul Wallenberg, o diplomata sueco que, desde que foi colocado como secretário da Legação da Suécia em Budapeste, em Julho de 1944, salvou a vida a muitos milhares de judeus. Desapareceu durante o cerco de Budapeste, em Janeiro de 1945, e, anos depois, em Fevereiro de 1957, Andrei Gromyko reconheceu oficialmente que tinha morrido na Prisão da Lubianka. Logo em 1945, ano do seu desaparecimento, foi criado um Comité Wallenberg que, sob o patrocínio de Béla Zsendényi, o presidente da Assembleia Nacional Provisória, propôs às autoridades municipais de Budapeste que se erigisse um memorial em homenagem ao diplomata sueco. Como refere Bob Dent, num livro já citado, encomendou-se o trabalho ao escultor Pál Pátzay (1896-1979), que fez uma estátua de um homem em luta com uma serpente: aquele simbolizando a força e o Bem, esta encarnando o Mal. Trata-se de uma alusão óbvia ao combate entre Hércules e Aqueloo, tal como relatado nas Metamorfoses de Ovídio (sim aquele livro clássico em que o adivinho Tirésias tem a capacidade transgender de mudar de sexo, de homem para mulher e, depois, regressar à masculinidade). A inspiração de Pátzay, que estudara em França, foi uma das mais famosas representações escultóricas da luta entre Hércules e Aqueloo, feita em 1824 pelo barão François Joseph Bosio. Essa, sem dúvida, é uma escultura extraordinária, que durante anos esteve nas Tulherias e agora, mais abrigada, pode ser vista numa das galerias do Louvre.
François Joseph Bosio,
Hércules, 1824
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A
estátua de Pátzay tem uma história fabulosa. Em 9 de Abril de 1949, no dia
aprazado para a inauguração… a estátua desapareceu do lugar marcado.
Esfumou-se, mais ou menos como aquele que visava homenagear. Aos soviéticos,
naquela altura, não interessava nada que se falasse de Wallenberg. Anos depois,
por razões que se ignoram, a estátua apareceria frente à empresa farmacêutica
Biogal, na localidade de Debrecen, no sudeste da Hungria. Agora, já não tinha
nada a ver com o incómodo diplomata sueco, sendo apresentada como símbolo da
luta contra a doença. A figura estilizada tornou-se emblema da firma de
medicamentos. Uma cópia da estátua, em tamanho mais reduzido, aparecia também,
como que por milagre, defronte da Clínica de Radiologia sita na Üllői út em
Budapeste. Somente em 1989 ali colocaram uma placa dizendo tratar-se de uma
evocação de Wallenberg.
Pál Pátzay,
esculpindo o monumento a Wallenberg
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Pál Pátzay,
Monumento a Wallenberg, 1949
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O símbolo da farmacêutica Biogal
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Réplica existente na Üllői út, Budapeste
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Uma cópia do original
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Em
Budapeste continuou a tentar-se que o herói sueco fosse homenageado. Ainda antes
da perestroika, no ano de 1985,
começam a existir movimentações para que uma nova estátua fosse erguida à sua
memória. Numa jogada combinada, os embaixadores dos Estados Unidos e da Suécia conseguiram,
através de um estratagema que me abstenho de descrever, encostar János Kádár à
parede, praticamente impondo-lhe que este autorizasse a construção da estátua
antes de iniciar uma visita oficial a Estocolmo. E assim foi. Correndo contra o
tempo, o escultor Imre Varga (n. 1923) conseguiu ter a estátua pronta em 1987. O monumento,
como se pode ver, não é grande coisa, mas contém uma alusão explícita à estátua
de Pátay que havia desaparecido no dia da inauguração. Varga fará outra
estátua, bem mais criativa, de homenagem ao martírio dos judeus húngaros e à
acção de Wallenberg. Datada de 1991, encontra-se junto à Grande Sinagoga de Budapeste e tem a forma de um menorah
invertido. Em cada folha, o nome de uma família vítima do Holocausto.
Imre Varga,
Monumento a Wallenberg, 1987
(note-se a alusão à estátua de Pál Pátzay)
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A
figura de Hércules em combate com Aqueloo serviu de inspiração a Bosio e a
Pátay, mas está também presente, de modo inquestionável, na figura masculina do
monumento da Colina Géllert. Aliás, noutros lugares da Hungria (e não só), a
representação da luta entre o Bem e o Mal é frequentemente apresentada sob esta
forma.
E, a este propósito, é impossível não lembrarmos uma obra de Yevgeny
Vuchetich (1908-1974). Já falámos dele aqui, a propósito da «Mãe de Brejnev». Vuchetich concebeu a estátua Transformemos as Espadas em Arados, que
ornamenta os jardins da sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. A URSS
ofereceu-a à ONU em 1959, sendo curioso um país comunista entregar uma estátua
que ostenta uma citação bíblica,
constante do Livro de Isaías (2: 3-4), muito usada em vários discursos a favor
da paz, como o farewell adress de
Eisenhower (a alocução em que este falou do «complexo militar-industrial), nas
intervenções de Jimmy Carter, Sadat e Begin em Camp David, em 1979, no discurso
de Reagan na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1987.
Yevgeny Vuchetich,
Transformemos as Espadas em Arados, 1957
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Oferta da estátua pela URSS à ONU,
Dezembro de 1959
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É
flagrante a ligação, mesmo que inconsciente, à luta de Hércules com Aqueloo. Mais
ainda: Vuchetich, o autor da estátua, é também autor de uma monografia sobre
Stróbl. Sim, sobre o escultor que concebeu o Monumento à Libertação que encima
a Colina Géllert, visível de praticamente todos os pontos de Budapeste. Por
conseguinte, é muito provável que Vuchetich, conhecedor da obra de Stróbl,
tenha tido presente o Hércules de Budapeste quando concebeu Transformemos as Espadas em Arados. O
que Vuchetich não sabia é que a sua estátua, num processo interessantíssimo de
apropriação – ou, como diria Ovídio, de metamorfose – se iria converter num
símbolo da luta a favor da paz e, mais do que isso, de contestação ao domínio
comunista. Em 24 de Setembro de 1983, o pastor protestante Frierich Schorlemmer, levou a cabo
uma acção de protesto em Wittenberg, a cidade natal de Lutero, no decurso do
Congresso das Igrejas Protestantes. Um ferreiro de profissão, Stefan Nau,
transformou, à frente de todos, uma espada num arado. As autoridades da RDA
nada puderam fazer, pois no Congresso participava Richard von Wezsäcker, então
presidente da câmara de Berlim. Os media
do Ocidente relataram o incidente e, desde então, a estátua de Vuchetich, um
artista fidelíssimo aos ideais soviéticos, converteu-se num dos mais poderosos
símbolos da resistência alemã à presença da URSS. Um livro de Rainer Eckert e
Kornelia Lobmeier conta a história ao pormenor. Foi editado em 2007 pela Casa
da História da República Federal da Alemanha e intitula-se precisamente Schwerter zu Pflugscharen. Geschichte eines
Symbols. Aliás, quem for visitar o Palácio das Lágrimas, em Berlim, de que já falámos aqui,
poderá ver uma ampla exposição sobre este episódio.
Berlim, Palácio das Lágrimas
Fotografias de António Araújo
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«Espadas em Arados»
tornou-se o mote do movimento pacifista na República Democrática Alemã e a
escultura de Vuchetich, estilizada, converteu-se, sobretudo para os jovens
cristãos, num emblema poderosíssimo de protesto contra a crescente
militarização da RDA. Uma obra de um dos artistas soviéticos mais conceituados
tornar-se-ia, assim, num sinal fortíssimo de libertação e liberdade. A história pessoal de Stefan Nau é que é mais triste: após a reunificação, o heróico ferreiro de
Wittemberg deixou de ter trabalho…
Com
a queda do Muro e as mudanças na URSS, de novo quiseram mudar a estátua de
Budapeste. Em 1990, na sequência de eleições livres para o conselho municipal
da cidade, a nova governação removeu muita estatutária dos tempos comunistas.
Chegaram a pensar remover a Estátua da Libertação, mas acabaram apenas por
tirar de lá o soldado soviético e mudar as inscrições no obelisco. O povo gosta da escultura, é um símbolo de Budapeste.
A Estátua continua lá, ainda que agora se chame da Liberdade. Em 1992, um artista criativo, com o soberbo nome Tamás St. Auby, cobriu a estátua com um gigantesco pano branco, dizendo que pretendia transformá-la no «fantasma do comunismo».
A Estátua continua lá, ainda que agora se chame da Liberdade. Em 1992, um artista criativo, com o soberbo nome Tamás St. Auby, cobriu a estátua com um gigantesco pano branco, dizendo que pretendia transformá-la no «fantasma do comunismo».
Em paralelo, na Internet, aqui, graças ao fantasma do capitalismo, vende-se (ou
vendia-se) uma réplica da estátua, assinada por Stróbl, por cerca de 800 euros.
Coisas…
Por
ironia do destino, na Praça da Liberdade, em Budapeste, permanece um imponente
monumento russo (como, aliás, em Viena ou Berlim). Perto dele, uma estátua de
Ronald Reagan, pois ali fica a Embaixada dos Estados Unidos. Foi nesse edifício
que, refugiando-se das perseguições do comunismo, viveu vários anos asilado o
Cardeal József Mindszenty, cuja celebração litúrgica na Igreja da Rocha foi interrompida
a 13 de Maio de 1948.
Foi
na Igreja da Rocha que, numa tarde chuvosa, ameaçando trovoada, comecei a
escalada da Colina Géllert. Agora, era tempo de deixar a Estátua da Liberdade
(em húngaro: Szabadság Szobor), que
outrora foi da Libertação.
Ao crepúsculo, continuava a divisar-se a sua figura, na outra margem do Danúbio. Agora que estava em Pest, lembrei-me que, por mais voltas que o mundo tivesse dado, conhecendo o nazismo e o comunismo, a liberdade sempre estivera no coração de Budapeste – e na alma dos húngaros.
Fotografias de António Araújo
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Ao crepúsculo, continuava a divisar-se a sua figura, na outra margem do Danúbio. Agora que estava em Pest, lembrei-me que, por mais voltas que o mundo tivesse dado, conhecendo o nazismo e o comunismo, a liberdade sempre estivera no coração de Budapeste – e na alma dos húngaros.
Café New York
Fotografia de António Araújo
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No
elegantíssimo Hotel New York (hoje, Hotel Boscolo), um dos tectos do salão de chá exibe uma alegoria
da Estátua da Liberdade. O hotel foi construído em 1891-1895, com um
esplendoroso interior neobarroco. Agora, existem duas representações da
Liberdade na capital da Hungria. Uma, no cimo da Colina Géllert. Outra, no
tecto do New York Café.
Esperemos
que ambas se mantenham, para bem de todos – da Hungria e da Europa.
António Araújo
Vendo o filmete sobre a entrega da Espada de Estalinegrado, tive a impressão de que quem deixou a espada cair foi Estaline, que a pegou desajeitadamente, de ponta-cabeça, pela bainha, no momento de passá-la ao marechal, de onde ela escorregou, e pode mesmo ter caído no pé deste, cujo ar desconcertado é mesmo visível. Não seria nada prudente dizer que foi Estaline quem a deixou cair. Sobrou para Voroshilov.
ResponderEliminarPensa mesmo que alguem vai ler esta coisa do principio ao fim?!
ResponderEliminarEu a li.
EliminarEu também. E nem é a maior nem a mais densa que AA já escreveu e publicou. O nosso «anfitrião» é incapaz de escrever textos desinteressantes.
EliminarReformado?
ResponderEliminarHá ainda pessoas que não vêem TV há anos , como eu .
EliminarNem imagina a quantidade de tempo útil que lhes sobra ...
Li-o à noite.
ResponderEliminarPois com a idade ha mais tempo livre á noite...
ResponderEliminarMuito obrigado, é uma informação que desconhecia e lhe agradeço. Talvez fosse interessante um jornal ou uma revista entrevistar algum dos descendentes de Horthy, até para saber se têm memória do rapto do filho Miklós por Otto Skorzeny, da sua estada em Portugal, etc. Para mim, isso é interessante, termos tido em Portugal o almirante Horthy e o filho. Aqui, perto de nós, possivelmente entrevistáveis, capazes de darem testemunhos importantes e interessantes. Bem, interessantes para quem se interesse por isto, claro.
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo
Lembro-me do túmulo do almirante Horthy no Cemitério dos Ingleses em Campo de Ourique, ao lado do Jardim da Estrela. Estava sempre enfeitado com coroas de flores com fitas das cores nacionais da Hungria.
ResponderEliminarOra aqui está um trabalho com densidade, assim a modos de um António Araújo!!!!... E, mais uma vez, com belas fotografias suas.
ResponderEliminarSB
Excelente, como sempre.
ResponderEliminarNos anos 90 passei uma tarde nos famosos banhos do Hotel Géllert e já "cheirava" a decadência. Se nada foi feito desde essa altura acredito que deve estar de fugir.
Sim tipo este blog.
ResponderEliminarAnónimo, por que você não foge mesmo ?
EliminarCaro António Araújo: só agora, 10 anos depois, li este seu magnífico post. Durante anos vi a Estátua da Liberdade (hoje assim designada) todos os dias, dado que o Monte Gellért ficava praticamente em frente da minha universidade, do outro lado do Danúbio. Parabéns!
ResponderEliminarOriginalmente, a designação oficial foi Monumento à Libertação. Esta palavra libertação tem duas formas em húngaro: felszabadulás, quando a libertação é obra do próprio, felszabadítás quando a libertação é obra de outrem. No primeiro caso, uma pessoa, uma cidade, um país liberta-se, no segundo caso, é libertado. Segundo o nome oficial de 1947, a libertação (felszabadulás) teria sido obra dos próprios húngaros, o que é mentira. Em 1945, a Hungria foi de facto libertada dos nazis pelos soviéticos, ainda que pouco depois o país tenha perdido a liberdade para os mesmos soviéticos, até 1989. Chamando-se-lhe Estátua da Liberdade, ficou a questão resolvida, entregue à interpretação de cada um.
Em 1974, tentei explicar isto a um estudante americano de visita a Budapeste, mas duvido que ele tenha percebido.
Cumprimentos, ZB
Muito e muito obrigado, meu caro Zé Barreto! Já nem me lembrava que tinha escrito este texto, confesso... Um abraço, AA
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