quinta-feira, 19 de março de 2015


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

 

# 86 - JOE LOVANO

 

 


 


Quando Joe Lovano nasceu em 1952, Cleveland estava no apogeu do seu vigor e era um dos pilares ardentes do rust belt, a “cintura de ferrugem” das grandes siderurgias e aciarias da Região dos Lagos, orgulho económico da América. Nessas margens também acabaria por medrar o jazz – sempre, sempre do lado dos tesos – forjado numa modalidade robusta, com têmpera, quase fumegante – de índole operária, portanto. Durante tais anos, de uma grandeza hoje apenas recordada, era o saxofonista tenor Tony “big T” Lovano, quem aquecia as noites agrestes de Cleveland. O pai de Joe.
Apear de ter começado a dedilhar o saxofone desde criança, obviamente inspirado e instruído pelo progenitor, Joe Lovano fez um percurso à antiga, com tarimba na “manada”, a Herd de Woody Herman e na Big Band de Mel Lewis com a qual desembarcou em Nova Iorque. Aí fez uma viragem de 180º e surge durante a década de 80 como um dos vértices do trio de Paul Motion, com o guitarrista Bill Frisell na outra ponta, no qual demonstrou ter assimilado bem o estilo livre de Ornette Coleman. Apesar de a sua consistência ter sido desde logo apreciada, a verdade é que Lovano só começou a ganhar estatuto já com 40 anos de idade, bem ao contrário de tantos talentos precoces que desde sempre irromperam no jazz com maior ou menor sorte, pois, actualmente, integrar uma orquestra é uma desdita que atrasa a progressão de um músico e o desqualifica para se alcandorar a cabeça de cartaz.
Seria, no entanto, uma ilusão resumir a experiência de Joe Lovano a estas credenciais e ao seu aspecto de tunante, com colares de ouro à mostra por cima da camisa berrante, provavelmente a ver se nos convence que aprendeu na rua tudo o que sabe. Nada disso, Lovano é um erudito: frequentou o insigne Berklee College of Music onde hoje leciona a emérita cátedra Gary Burton.
Chega-se assim a este momento  acurado que é “52nd Street Blues”, obra com a qual Joe Lovano quis concluir o século. Daí em diante, disco após disco, ano após ano, nunca mais deixou de disputar a preferência do público e da crítica com o “imortal” Sonny Rollins e o resiliente Wayne Shorter. Bastará correr o dedo pelas polls da Downbeat para comprovar esta afirmação.
 

52nd STREET THEMES
2000
Blue Note 96667
Joe Lovano, George Garzano, Ralph Lalama (saxofone tenor); Steve Slage (saxophone alto); Gary Smulyan (saxophone baritone); Tim Hagans (trompete); Conrad Herwig (trombone); John Hicks (piano); Dennis Irwin (contrabaixo); Lewis Nash (bateria).
 
 
A proposta de “52nd Street Blues” é reconsiderar o repertório do jazz dos anos 30 e 40, quando residia no troço dessa rua nova-iorquina entre a 5ª e a 7ª Avenida. Mas porque no jazz actual é por vezes difícil distinguir a mera eficácia da exactidão, à primeira escuta não será despropositado julgar o disco como demasiado culto e perfeito. Mas é esse o risco de Joe Lovano, o de bordejar a petulância sem nunca tropeçar nela.
Em nada “52nd Street Blues” sugere um regresso ou uma regressão. Puro nos princípios, mas informado nos processos, em vez de exumar cadáveres como tendem a fazer os revivalistas, Lovano não pretende fazer “à maneira de…” mas antes reviver “como se fosse”. Por isso “52nd Street Blues” não tem fantasmas, embora nele ressurjam os espíritos de Tadd Dameron e Billy Strayhorn, os mais prolíficos e determinantes compositores daquele tempo, assim como de Gershwin, a quem os boppers tantas vezes recorreram, ou de Miles Davis autor do tema “Sippin’ at Bells”, talvez a sua primeira composição, datado de 1945, precisamente quando actuava na Rua 52 e ainda de Willie “Face” Smith. Quem? Um obscuro herói da Cleveland natal de Lovano, falecido em 2009 e aqui também autor dos arranjos orquestrais.
“52nd Street Blues” é como se a conversa tivesse sido interrompida durante 50 anos e recomeçasse no ponto em que tinha ficado. Joe Lovano apresenta o fervor dos antigos, que ora exultavam de alegria, ora exacerbavam a tristeza: “I’m a possessed tenor saxophone player within the history of a lot of possessed tenor saxophonists.” Para início de conversa não lhe fica nada mal.
 
 
 
José Navarro de Andrade




 

3 comentários:

  1. Este é VIP (*), já o ouvi e vi ao vivo.
    Por acaso não tenho este disco mas aproveitando a onda do último post que calhou a ser sobre Bob Dylan e Sinatra vou apresentar um deste também com The Voice.

    (*) Aparentemente não está na célebre lista.

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  2. Boa escolha. Mas dada a prolixidade de Lovano e a energia das suas revisitações, quase se poderia eleger um disco dele de olhos fechados. Obrigado pelo comentário.

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  3. Bom finalmente chegamos ao mundo dos vivos.Assisti em Matosinhos a um concerto do Joe.Pode ser erudito mas é mesmo azeiterola na roupa e adereços.A musica é de primeira e isso é que conta.Sempre bem acompanhado.Mais um bom texto.Obrigado.

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