terça-feira, 3 de maio de 2016

O Agosto quente e a Lei da Descolonização (III)

 
 


 
A 12.ª Sessão do Conselho de Estado (Protocolos com o PAIGC e a FRELIMO)
 
Em 29 de Agosto de 1974, realizou-se a 12.ª Sessão do Conselho de Estado (CE) que tratou primeiro da aceitação do Protocolo do Acordo entre Portugal e o PAIGC –  o qual, antes de ser assinado pelo Presidente da República deveria, em conformidade com o disposto na artigo 3.º da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, ser posto à consideração do CE –  e, depois, na segunda parte da sessão, da aceitação do “documento” que  delineava «o processo de descolonização e a transferência de poderes a efectuar para a FRELIMO em Moçambique, segundo um contrato [sic]  que viria a ser discutido e assinado em Lusaca a 5 [sic] de Setembro» (“documento” de Dar-es-Salam, de 15 e 16 de Agosto). Estiveram presentes 20 conselheiros (faltou o Vice-Almirante Rosa Coutinho, ausente em Angola)[1].
Trata-se de uma reunião histórica, essencial para a compreensão do alcance dos acordos de descolonização celebrados com o PAIGC e a FRELIMO e do papel desempenhado na descolonização portuguesa pelo Presidente Spínola, pelo CE e pelos principais negociadores (sobretudo, Mário Soares, Almeida Santos e Melo Antunes) – que tem passado despercebida nas memórias dos conselheiros presentes e dos agentes da descolonização portuguesa e sido ignorada pelos historiadores, pois só recentemente foi conhecida a respectiva acta.
O Protocolo do Acordo entre Portugal e o PAIGC (bem como o Anexo a regular a continuação da retracção do dispositivo militar português, a saída progressiva das forças armadas e algumas obrigações portuguesas) fora assinado em 26 de Agosto. Era o resultado do sucesso das conversações entre os representantes do Governo português e do PAIGC que – iniciadas em Londres, a 25 de Maio – estavam suspensas em consequência do completo fracasso das (primeiras) reuniões de Argel, em 13 e 14 de Junho. Todavia, a nova conjuntura política e, sobretudo, a aprovação da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, o discurso de Spínola sobre a respectiva promulgação, a visita do Secretário-Geral da ONU com a correlativa Comunicação do Governo português, no princípio de Agosto, e a iminência da admissão da Guiné-Bissau na ONU tinham favorecido o reatamento das negociações, em que, aliás, Portugal tinha grande interesse e pressa. Por isso, o Governo português propôs, através do embaixador em Londres, um encontro preliminar urgente e secreto ao mais alto nível, em Argel. A delegação portuguesa (Mário Soares, Almeida Santos e Manuel Monge) partiu via Paris e o essencial do Protocolo de Acordo foi conseguido nas reuniões de 8 e 9 de Agosto. Precedido de um curto Preâmbulo, consta de nove artigos e, além da retirada das forças portuguesas, continha essencialmente dois reconhecimentos e uma garantia: a)- o Estado português reconheceria de jure a República da Guiné-Bissau; b)- o Governo português reconhecia o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência; c)- o Governo português garantia ao PAIGC um lugar destacado no exercício deste direito, a realizar por via eleitoral[2].
Logo no início da referida sessão de 29 de Agosto do CE, depois da leitura deste protocolo e do seu anexo, Spínola «considerou afirmativamente a sua aceitação» pois que nele se salvaguardava «o prestígio e a ética das Forças Armadas», acrescentando «estar esperançado de que a forma como foram conduzidas as negociações tenha ou possa vir a ter influência no quadro geral do desbloqueamento em África no sentido de se conseguirem facilidades para as conversações respeitantes aos outros territórios». Finalmente, salientou que o protocolo sob apreciação fora «fruto de muito labor e de muitas discussões conduzidas pelos responsáveis e muitas vezes por ele fundamentalmente orientadas».
Seguiram-se as intervenções dos conselheiros. O general Costa Gomes, membro por inerência, começou por referir ter sido «relativamente fácil a arrancada para este acordo graças aos inúmeros contactos que foram realizados nos quais o bom ‘entendimento português’ terá tido papel predominante», congratulou-se por as Forças Armadas saírem «efectivamente honradas do processo», desenvolveu os aspectos referentes à retirada das forças e do material bem como quanto ao futuro apoio técnico a prestar em termos de cooperação e concluiu exarando o seu «apreço pelo árduo trabalho desenvolvido pelas equipas em conjunto com o sr. Presidente da República». Nenhum outro membro da JSN se pronunciou.
Falaram cinco dos sete membros designados por Spínola. Rui Luís Gomes, Henrique de Barros, Azeredo Perdigão e Almeida Bruno manifestaram, genericamente, satisfação pela celebração do acordo e felicitaram Spínola e a equipa que o ajudou. Freitas do Amaral considerou que o projecto era «equilibrado», embora pessoalmente tivesse preferido uma consulta popular, solicitando que, como declaração de voto, ficasse exarado que o seu voto favorável deveria «entender-se em função das circunstâncias especiais do caso da Guiné e sem prejuízo dos princípios gerais expressos na declaração de voto que apresent[ara] propósito da aprovação da Lei 7/74». Pelos sete representantes das forças armadas (MFA) interveio o Tenente Coronel Charais vincando «a sua enorme satisfação pela forma como decorreu o processo, dirigindo, portanto, felicitações ao sr. Presidente da República, a todos os membros do governo e aos seus camaradas» pelo «brilhante final» que tiveram as conversações no sentido de «uma descolonização honrosa da Guiné».
(Spínola considerou então os documentos em condições de ratificação. O Acordo de Argel seria publicado no Diário da República de 30 de Agosto e, conforme previsto, Portugal reconheceu de jure a República da Guiné-Bissau a 10 de Setembro de 1974).
O CE passou, nesta mesma sessão de 29 de Agosto (que se iniciara às 17h15 e terminou às 20h), a apreciar o texto a que na segunda reunião de Dar-es-Salam haviam chegado as delegações portuguesa e da FRELIMO. 
Recorde-se que, após a publicação da Lei n.º 7/74, uma delegação portuguesa – composta por Melo Antunes (Ministro sem Pasta) e Almeida e Costa (representante do MFA de Moçambique) – e uma delegação da FRELIMO, dirigida por Samora Machel, em reunião secreta realizada em Dar-es-Salam entre 30/7 e 2/8/1974, tinham elaborado um documento sobre as linhas mestras do acordo a negociar. As questões centrais envolviam o período de transição (4 ou 5 anos na proposta portuguesa, nove meses segundo FRELIMO), o eventual “protocolo secreto” quanto ao reconhecimento da FRELIMO (pretendido por Spínola), a composição do governo de transição e a data da independência (que a FRELIMO exigia para 25 de Janeiro de 1975)[3]. No resumo de Óscar Monteiro, principal negociador da FRELIMO, este “memorando de entendimento” consagrou o seguinte: princípio da independência, reconhecimento da FRELIMO, processo de transição, garantia de não discriminação, política de amizade[4]. Note-se que Spínola, Melo Antunes, Almeida Santos e Mário Soares haveriam de apresentar diversas versões e interpretações quer deste primeiro encontro de Dar-es-Salam quer da subsequente segunda ronda[5].   
Tal documento foi, em 13 de Agosto, discutido na reunião da Comissão Nacional de Descolonização, realizada em Belém, presidida por Spínola e em que também participaram Costa Gomes, Veiga Simão, Mário Soares e Almeida Santos. Não se levantaram objecções relevantes, apesar do seu teor ter “surpreendido”, por “marginalizados”, Mário Soares e Almeida Santos[6]. Segundo este último, «o Presidente Spínola não teve, em relação ao documento exibido, reacção compatível com a indignação com que o refere no […] seu livro»[7] . No dia seguinte, partiu para Dar-es-Salam a delegação portuguesa, incluindo Mário Soares e Almeida Santos. Nesta segunda ronda em Dar-es-Salam, realizada a “céu aberto”, a delegação portuguesa procurava formalizar um conjunto de objectivos específicos, na sequência da referida sessão da Comissão Nacional de Descolonização, e Almeida Santos foi «dando forma jurídica ao acordo, à medida que se chega a entendimento sobre cada questão concreta»[8]. Na opinião de Vítor Crespo, também membro da delegação portuguesa, a FRELIMO considerava então «extremamente perigoso confiar no tempo e em Portugal…»[9]. Do lado português, já era evidente que o essencial do poder político estava no MFA e que Melo Antunes era o ministro e membro do MFA incumbido de se ocupar prioritariamente da questão da descolonização de Moçambique (e, depois, de Angola)[10].
Foi sobre o texto, acordado em Dar-es-Salam a 15 e 16 de Agosto, que iria pronunciar-se o CE, na sessão de 29 de Agosto, nos termos do artigo 3.º da Lei n.º 3/74, isto é, para ser ouvida a sua opinião, condição prévia à celebração do Acordo de Descolonização (o “Acordo de Lusaca”, assinado a 7 de Setembro). Decidido, na primeira parte da reunião, o caso da Guiné, era a vez de Moçambique.
A intervenção inicial coube a Spínola e assentou nos seguintes tópicos: (i) considerava o processo e o documento «mais doloroso» do que o Acordo de Argel; (ii) tinha que «reconhecer um desvio à pureza dos princípios» constantes do Programa do MFA; (iii) todavia «também neste caso, as circunstâncias impunham este mesmo processo e consequentemente a assinatura do seu projecto», como de seguida Costa Gomes se encarregaria de explicitar; (iv) considerava que a FRELIMO iria ter «uma posição de privilégio baseada na forma como irá tomar parte do Governo daquele território» e, concluindo, (v) destacou «a acção desenvolvida para que se chegasse a este projecto pelos srs. Ministros Mário Soares e Almeida Santos».
De seguida, Costa Gomes explicitou «a deterioração que estavam sofrendo os aspectos militares, económicos e sociais em toda a província», em vista da qual concluía impor-se «uma decisão sem mais delongas pelo que considerava de aceitar o projecto apresentado no qual, aliás, se satisfaziam as nossas necessidades, não havendo neste momento muitas outras opções a considerar».
Finda esta intervenção procedeu-se à leitura do projecto. De seguida, pronunciaram-se alguns conselheiros. Almeida Bruno mostrou-se preocupado com «os vectores ideológicos da FRELIMO» mas – considerando satisfatórias as explicações apresentadas por Vítor Crespo – deu a sua adesão. Rui Luís Gomes manifestou total acordo. Freitas do Amaral «deu também o seu acordo relembrando uma vez mais a declaração já exarada aquando da apreciação do documento anterior a este e mostrando vontade de que fosse feita uma certa pressão pela opção democrática do regime». Isabel Magalhães Collaço sustentou que a salvaguarda da opção democrática «poderia mais resultar de toda uma forma de dar expressão conveniente ao projecto que iria ser assinado».
Tendo verificado «uma aprovação geral por parte dos outros conselheiros», Spínola considerou estarem reunidas as condições para proceder à assinatura do documento em causa, ou seja, do Acordo (de descolonização) entre o Estado português e a FRELIMO. Celebrado em Lusaca a 7 de Setembro por Samora Machel (representante da FRELIMO) e pelos oito membros da delegação do Estado português, o “acordo conducente à independência de Moçambique”, depois da sua aprovação pelo Presidente da República, foi publicado no 2.º suplemento ao Diário do Governo, de 9 de Setembro de 1974.
 
 
 
 
O desenvolvimento da Lei da Descolonização durante Agosto de 1974 conduz a quatro conclusões específicas:
1)- a intervenção do CE foi «determinante»[11] na descolonização portuguesa;
2)- enquanto Presidente da República, Spínola assumiu um «papel central no avanço para a descolonização»[12], tendo sido «o presidente descolonizador português», e nesse papel só comparável ao general De Gaulle em França, como pretendera[13];
3)- a sessão de 29 de Agosto de 1974 do CE foi decisiva e marcou o princípio (e o fim) da descolonização portuguesa;
4)- o “programa de Agosto” para a descolonização, delineado por Spínola, Veiga Simão e Almeida Santos, fracassou.
Podem-se formular, também e pelo menos, duas conclusões genéricas:
a)- com a aprovação dos protocolos dos Acordos de Argel, com o PAIGC, e de Lusaca, com a FRELIMO, a resolução do problema africano passara a estar decididamente nas mãos dos movimentos de libertação e do MFA[14];
 b)- ficaram definidos os termos e os limites da descolonização portuguesa, satisfazendo as três condições impostas pelos movimentos de libertação: (i) reconhecimento do direito à independência de todas as colónias africanas portuguesas; (ii) reconhecimento da sua própria legitimidade; e (iii) exclusividade de representação política.
 
 
António Duarte Silva
     
 
   
 






[1] Apud Maria José Tíscar Santiago, O 25 de Abril e o Conselho de Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012, pp. 337 a 383, a quem pertence também a primeira abordagem desta sessão – cfr. ibidem, pp. 163 e segs.


[2] António Duarte Silva, “Guiné-Bissau: libertação total e reconhecimentos portugueses”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires de Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 anos de descolonização portuguesa, Lisboa, Vega, 2015, pp. 109 e segs.


[3] Melo Antunes, “A Descolonização portuguesa: mitos e realidades”, in João Medina (dir.), História de Portugal, Vol. XVIII, Amadora, EDICLUBE, 2004, p. 357, e depoimento do Almirante Almeida e Costa in Estudos Gerais da Arrábida, A Descolonização Portuguesa – Painel dedicado a Moçambique (29 de Agosto de 1996), ICS, Arquivo de História (AHS).


[4] Óscar Monteiro, De todos se faz um País, Lisboa, Campo da Comunicação, 2013, p. 212.


[5] Ver, em resumo, Maria Inácia Rezola, Melo Antunes – Uma biografia política, Lisboa, Âncora Editora, 2012, pp. 153/159.


[6] António de Almeida Santos, Quase Memórias, 2.º Volume, Cruz Quebrada, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2006, pp. 85/86.


[7] Idem, op. cit., 1.º Volume, p. 349.


[8]  Melo Antunes, ”A Descolonização…”, cit., p. 359. Para as posições da FRELIMO, Óscar Monteiro, De todos…, cit., pp. 212/215.


[9] Depoimento do almirante Vítor Crespo in Estudos Gerais da Arrábida, A Descolonização Portuguesa – Painel dedicado a Moçambique (29 de Agosto de 1996), cit.


[10] António de Almeida Santos, op. cit., p. 350.


[11] Maria José Tíscar Santiago, O 25 de Abril…, p. 218. 


[12] Marcelo Rebelo de Sousa, “Prefácio” in op. cit., p. 17.


[13] Maria José Tíscar Santiago, ibidem.


[14] Vítor Alves, “Colonialismo e Descolonização” in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º s 15/16/17, Maio de 1985, p. 563, Norrie MacQueen, A Descolonização da África Portuguesa, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1998, p. 111, Almeida Santos (entrevista de São José Almeida), “Quem mandou no processo de descolonização foi o MFA”, in Público, de 10/5/2004, p. 11, e Bruno Cardoso Reis, “Visões das forças políticas sobre o fim do império, dois planos em confronto e uma política exemplar de descolonização (1974-1975)”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de Descolonização Portuguesa, cit., pp. 94 e segs..

 

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