A 12.ª Sessão do Conselho de Estado (Protocolos com o
PAIGC e a FRELIMO)
Em 29 de
Agosto de 1974, realizou-se a 12.ª Sessão do Conselho de Estado (CE) que tratou
primeiro da aceitação do Protocolo do Acordo entre Portugal e o PAIGC – o qual, antes de ser assinado pelo Presidente
da República deveria, em conformidade com o disposto na artigo 3.º da Lei n.º
7/74, de 27 de Julho, ser posto à consideração do CE – e, depois, na segunda parte da sessão, da
aceitação do “documento” que delineava «o
processo de descolonização e a transferência de poderes a efectuar para a
FRELIMO em Moçambique, segundo um contrato [sic]
que viria a ser discutido e assinado em
Lusaca a 5 [sic] de Setembro»
(“documento” de Dar-es-Salam, de 15 e 16 de Agosto). Estiveram presentes 20
conselheiros (faltou o Vice-Almirante Rosa Coutinho, ausente em Angola)[1].
Trata-se
de uma reunião histórica, essencial para a compreensão do alcance dos acordos
de descolonização celebrados com o PAIGC e a FRELIMO e do papel desempenhado na
descolonização portuguesa pelo Presidente Spínola, pelo CE e pelos principais
negociadores (sobretudo, Mário Soares, Almeida Santos e Melo Antunes) – que tem
passado despercebida nas memórias dos conselheiros presentes e dos agentes da
descolonização portuguesa e sido ignorada pelos historiadores, pois só
recentemente foi conhecida a respectiva acta.
O
Protocolo do Acordo entre Portugal e o PAIGC (bem como o Anexo a regular a
continuação da retracção do dispositivo militar português, a saída progressiva
das forças armadas e algumas obrigações portuguesas) fora assinado em 26 de
Agosto. Era o resultado do sucesso das conversações entre os representantes do
Governo português e do PAIGC que – iniciadas em Londres, a 25 de Maio – estavam
suspensas em consequência do completo fracasso das (primeiras) reuniões de
Argel, em 13 e 14 de Junho. Todavia, a nova conjuntura política e, sobretudo, a
aprovação da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, o discurso de Spínola sobre a
respectiva promulgação, a visita do Secretário-Geral da ONU com a correlativa Comunicação do Governo português, no
princípio de Agosto, e a iminência da admissão da Guiné-Bissau na ONU tinham
favorecido o reatamento das negociações, em que, aliás, Portugal tinha grande
interesse e pressa. Por isso, o Governo português propôs, através do embaixador
em Londres, um encontro preliminar urgente e secreto ao mais alto nível, em
Argel. A delegação portuguesa (Mário Soares, Almeida Santos e Manuel Monge)
partiu via Paris e o essencial do Protocolo
de Acordo foi conseguido nas reuniões de 8 e 9 de Agosto. Precedido de um
curto Preâmbulo, consta de nove artigos e, além da retirada das forças
portuguesas, continha essencialmente dois reconhecimentos e uma garantia: a)- o
Estado português reconheceria de jure
a República da Guiné-Bissau; b)- o Governo português reconhecia o direito do
povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência; c)- o Governo português
garantia ao PAIGC um lugar destacado no exercício deste direito, a realizar por
via eleitoral[2].
Logo
no início da referida sessão de 29 de Agosto do CE, depois da leitura deste
protocolo e do seu anexo, Spínola «considerou afirmativamente a sua aceitação»
pois que nele se salvaguardava «o prestígio e a ética das Forças Armadas», acrescentando
«estar esperançado de que a forma como foram conduzidas as negociações tenha ou
possa vir a ter influência no quadro geral do desbloqueamento em África no
sentido de se conseguirem facilidades para as conversações respeitantes aos
outros territórios». Finalmente, salientou que o protocolo sob apreciação fora
«fruto de muito labor e de muitas discussões conduzidas pelos responsáveis e
muitas vezes por ele fundamentalmente orientadas».
Seguiram-se
as intervenções dos conselheiros. O general Costa Gomes, membro por inerência,
começou por referir ter sido «relativamente fácil a arrancada para este acordo
graças aos inúmeros contactos que foram realizados nos quais o bom
‘entendimento português’ terá tido papel predominante», congratulou-se por as
Forças Armadas saírem «efectivamente honradas do processo», desenvolveu os
aspectos referentes à retirada das forças e do material bem como quanto ao
futuro apoio técnico a prestar em termos de cooperação e concluiu exarando o
seu «apreço pelo árduo trabalho desenvolvido pelas equipas em conjunto com o
sr. Presidente da República». Nenhum outro membro da JSN se pronunciou.
Falaram
cinco dos sete membros designados por Spínola. Rui Luís Gomes, Henrique de
Barros, Azeredo Perdigão e Almeida Bruno manifestaram, genericamente,
satisfação pela celebração do acordo e felicitaram Spínola e a equipa que o
ajudou. Freitas do Amaral considerou que o projecto era «equilibrado», embora
pessoalmente tivesse preferido uma consulta popular, solicitando que, como
declaração de voto, ficasse exarado que o seu voto favorável deveria
«entender-se em função das circunstâncias especiais do caso da Guiné e sem
prejuízo dos princípios gerais expressos na declaração de voto que apresent[ara]
propósito da aprovação da Lei 7/74». Pelos sete representantes das forças armadas
(MFA) interveio o Tenente Coronel Charais vincando «a sua enorme satisfação
pela forma como decorreu o processo, dirigindo, portanto, felicitações ao sr.
Presidente da República, a todos os membros do governo e aos seus camaradas»
pelo «brilhante final» que tiveram as conversações no sentido de «uma
descolonização honrosa da Guiné».
(Spínola
considerou então os documentos em condições de ratificação. O Acordo de Argel
seria publicado no Diário da República
de 30 de Agosto e, conforme previsto, Portugal reconheceu de jure a República da Guiné-Bissau a 10 de Setembro de 1974).
O
CE passou, nesta mesma sessão de 29 de Agosto (que se iniciara às 17h15 e
terminou às 20h), a apreciar o texto a que na segunda reunião de Dar-es-Salam
haviam chegado as delegações portuguesa e da FRELIMO.
Recorde-se
que, após a publicação da Lei n.º 7/74, uma delegação portuguesa – composta por
Melo Antunes (Ministro sem Pasta) e Almeida e Costa (representante do MFA de
Moçambique) – e uma delegação da FRELIMO, dirigida por Samora Machel, em
reunião secreta realizada em Dar-es-Salam entre 30/7 e 2/8/1974, tinham elaborado
um documento sobre as linhas mestras do acordo a negociar. As questões centrais
envolviam o período de transição (4 ou 5 anos na proposta portuguesa, nove
meses segundo FRELIMO), o eventual “protocolo secreto” quanto ao reconhecimento
da FRELIMO (pretendido por Spínola), a composição do governo de transição e a
data da independência (que a FRELIMO exigia para 25 de Janeiro de 1975)[3].
No resumo de Óscar Monteiro, principal negociador da FRELIMO, este “memorando
de entendimento” consagrou o seguinte: princípio da independência,
reconhecimento da FRELIMO, processo de transição, garantia de não
discriminação, política de amizade[4].
Note-se que Spínola, Melo Antunes, Almeida Santos e Mário Soares haveriam de
apresentar diversas versões e interpretações quer deste primeiro encontro de
Dar-es-Salam quer da subsequente segunda ronda[5].
Tal
documento foi, em 13 de Agosto, discutido na reunião da Comissão Nacional de
Descolonização, realizada em Belém, presidida por Spínola e em que também participaram
Costa Gomes, Veiga Simão, Mário Soares e Almeida Santos. Não se levantaram
objecções relevantes, apesar do seu teor ter “surpreendido”, por
“marginalizados”, Mário Soares e Almeida Santos[6].
Segundo este último, «o Presidente Spínola não teve, em relação ao documento
exibido, reacção compatível com a indignação com que o refere no […] seu livro»[7]
. No dia seguinte, partiu para Dar-es-Salam a delegação portuguesa, incluindo
Mário Soares e Almeida Santos. Nesta segunda ronda em Dar-es-Salam, realizada a
“céu aberto”, a delegação portuguesa procurava formalizar um conjunto de
objectivos específicos, na sequência da referida sessão da Comissão Nacional de
Descolonização, e Almeida Santos foi «dando forma jurídica ao acordo, à medida
que se chega a entendimento sobre cada questão concreta»[8].
Na opinião de Vítor Crespo, também membro da delegação portuguesa, a FRELIMO
considerava então «extremamente perigoso confiar no tempo e em Portugal…»[9].
Do lado português, já era evidente que o essencial do poder político estava no
MFA e que Melo Antunes era o ministro e membro do MFA incumbido de se ocupar
prioritariamente da questão da descolonização de Moçambique (e, depois, de
Angola)[10].
Foi
sobre o texto, acordado em Dar-es-Salam a 15 e 16 de Agosto, que iria
pronunciar-se o CE, na sessão de 29 de Agosto, nos termos do artigo 3.º da Lei
n.º 3/74, isto é, para ser ouvida a sua opinião, condição prévia à celebração
do Acordo de Descolonização (o “Acordo de Lusaca”, assinado a 7 de Setembro). Decidido,
na primeira parte da reunião, o caso da Guiné, era a vez de Moçambique.
A
intervenção inicial coube a Spínola e assentou nos seguintes tópicos: (i) considerava
o processo e o documento «mais doloroso» do que o Acordo de Argel; (ii) tinha
que «reconhecer um desvio à pureza dos princípios» constantes do Programa do
MFA; (iii) todavia «também neste caso, as circunstâncias impunham este mesmo
processo e consequentemente a assinatura do seu projecto», como de seguida
Costa Gomes se encarregaria de explicitar; (iv) considerava que a FRELIMO iria
ter «uma posição de privilégio baseada na forma como irá tomar parte do Governo
daquele território» e, concluindo, (v) destacou «a acção desenvolvida para que
se chegasse a este projecto pelos srs. Ministros Mário Soares e Almeida
Santos».
De
seguida, Costa Gomes explicitou «a deterioração que estavam sofrendo os aspectos
militares, económicos e sociais em toda a província», em vista da qual concluía
impor-se «uma decisão sem mais delongas pelo que considerava de aceitar o
projecto apresentado no qual, aliás, se satisfaziam as nossas necessidades, não
havendo neste momento muitas outras opções a considerar».
Finda
esta intervenção procedeu-se à leitura do projecto. De seguida, pronunciaram-se
alguns conselheiros. Almeida Bruno mostrou-se preocupado com «os vectores
ideológicos da FRELIMO» mas – considerando satisfatórias as explicações
apresentadas por Vítor Crespo – deu a sua adesão. Rui Luís Gomes manifestou
total acordo. Freitas do Amaral «deu também o seu acordo relembrando uma vez
mais a declaração já exarada aquando da apreciação do documento anterior a este
e mostrando vontade de que fosse feita uma certa pressão pela opção democrática
do regime». Isabel Magalhães Collaço sustentou que a salvaguarda da opção
democrática «poderia mais resultar de toda uma forma de dar expressão
conveniente ao projecto que iria ser assinado».
Tendo
verificado «uma aprovação geral por parte dos outros conselheiros», Spínola
considerou estarem reunidas as condições para proceder à assinatura do
documento em causa, ou seja, do Acordo (de descolonização) entre o Estado
português e a FRELIMO. Celebrado em Lusaca a 7 de Setembro por Samora Machel
(representante da FRELIMO) e pelos oito membros da delegação do Estado
português, o “acordo conducente à independência de Moçambique”, depois da sua
aprovação pelo Presidente da República, foi publicado no 2.º suplemento ao Diário do Governo, de 9 de Setembro de
1974.
O
desenvolvimento da Lei da Descolonização durante Agosto de 1974 conduz a quatro
conclusões específicas:
1)-
a intervenção do CE foi «determinante»[11]
na descolonização portuguesa;
2)-
enquanto Presidente da República, Spínola assumiu um «papel central no avanço
para a descolonização»[12],
tendo sido «o presidente descolonizador português», e nesse papel só comparável
ao general De Gaulle em França, como pretendera[13];
3)-
a sessão de 29 de Agosto de 1974 do CE foi decisiva e marcou o princípio (e o
fim) da descolonização portuguesa;
4)-
o “programa de Agosto” para a descolonização, delineado por Spínola, Veiga
Simão e Almeida Santos, fracassou.
Podem-se
formular, também e pelo menos, duas conclusões genéricas:
a)-
com a aprovação dos protocolos dos Acordos de Argel, com o PAIGC, e de Lusaca,
com a FRELIMO, a resolução do problema africano passara a estar decididamente
nas mãos dos movimentos de libertação e do MFA[14];
b)- ficaram definidos os termos e os limites
da descolonização portuguesa, satisfazendo as três condições impostas pelos
movimentos de libertação: (i) reconhecimento do direito à independência de
todas as colónias africanas portuguesas; (ii) reconhecimento da sua própria
legitimidade; e (iii) exclusividade de representação política.
António Duarte Silva
[1] Apud Maria José
Tíscar Santiago, O 25 de Abril e o
Conselho de Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012,
pp. 337 a 383, a quem pertence também a primeira abordagem desta sessão – cfr. ibidem, pp. 163 e segs.
[2] António Duarte
Silva, “Guiné-Bissau: libertação total e reconhecimentos portugueses”, in
Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires de Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 anos de
descolonização portuguesa, Lisboa, Vega, 2015, pp. 109 e segs.
[3] Melo Antunes,
“A Descolonização portuguesa: mitos e realidades”, in João Medina (dir.), História de Portugal, Vol. XVIII,
Amadora, EDICLUBE, 2004, p. 357, e depoimento do Almirante Almeida e Costa in
Estudos Gerais da Arrábida, A
Descolonização Portuguesa – Painel dedicado a Moçambique (29 de Agosto de 1996),
ICS, Arquivo de História (AHS).
[5] Ver, em resumo,
Maria Inácia Rezola, Melo Antunes – Uma
biografia política, Lisboa, Âncora Editora, 2012, pp. 153/159.
[6] António de
Almeida Santos, Quase Memórias, 2.º
Volume, Cruz Quebrada, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2006, pp. 85/86.
[8] Melo Antunes, ”A Descolonização…”, cit., p.
359. Para as posições da FRELIMO, Óscar Monteiro, De todos…, cit., pp. 212/215.
[9] Depoimento do
almirante Vítor Crespo in Estudos Gerais da Arrábida, A Descolonização Portuguesa – Painel dedicado a Moçambique (29 de
Agosto de 1996), cit.
[14] Vítor Alves,
“Colonialismo e Descolonização” in Revista
Crítica de Ciências Sociais, n.º s 15/16/17, Maio de 1985, p. 563, Norrie
MacQueen, A Descolonização da África
Portuguesa, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1998, p. 111, Almeida Santos
(entrevista de São José Almeida), “Quem mandou no processo de descolonização
foi o MFA”, in Público, de 10/5/2004,
p. 11, e Bruno Cardoso Reis, “Visões das forças políticas sobre o fim do
império, dois planos em confronto e uma política exemplar de descolonização
(1974-1975)”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira
(org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de
Descolonização Portuguesa, cit., pp. 94 e segs..
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