Os documentos Veiga Simão e Almeida Santos
Decorreram
da aprovação da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, e da Comunicação do Governo Português à ONU, de 4 de Agosto, dois
documentos fundamentais para compreender o fracasso da estratégia spinolista
para a descolonização, elaborados por dois dos seus mais importantes mentores:
Almeida Santos e Veiga Simão. A ambos, em reunião no Buçaco – convocada a
propósito da sua eventual deslocação (não consumada) à ONU – Spínola acabara de
convidar para fazerem parte do novo governo que tencionava formar e de que
Almeida Santos seria Primeiro-Ministro[1].
Na opinião
de Spínola, depois da recém-concluída visita do Secretário-Geral da ONU, Kurt Waldheim,
«impunha-se proceder a uma imediata e adequada articulação dos sectores
intervenientes na descolonização, a fim de controlar o desenvolvimento do
processo» e instituir «uma política de co-responsabilização à escala
internacional»[2]. Para
tal, promoveu a criação de uma Comissão
Nacional de Descolonização e de um Gabinete de Estudos cuja intervenção mais significativa foi a
preparação e apreciação do trabalho programático elaborado por Veiga
Simão para servir «de base a uma estratégia de cooperação com as Nações Unidas»[3]. Os
referidos órgãos foram criados por despacho do Presidente da República de 5 de
Agosto, com funções consultivas e de coordenação dos trabalhos de planeamento e
execução do processo de descolonização, colaborando, dizia, «na
responsabilidade singular que nesta hora histórica recai sobre o presidente da
República»[4]. Era
composta também pelo Primeiro-Ministro, Chefe de Estado-Maior-General das
Forças Armadas, Ministros da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e da Coordenação
Interterritorial e pelo embaixador de Portugal na ONU. Os seus objectivos eram
evidentes: permitir a Spínola coordenar todo o processo de descolonização[5] e
«criar responsabilidades aos Movimentos de Libertação não só perante as
autoridades portuguesas como, também, perante entidades internacionais idóneas
que, co-responsabilizando-se no processo, serviriam de forças moderadoras aos
sectores extremistas»[6]. A
própria designação traduzia o afastamento da via federalista[7].
Foi a esta Comissão de Descolonização (a qual não
passará de uma mera e efémera comissão ad hoc, antecedente daquela, com
o mesmo nome e semelhantes funções, criada em finais de Dezembro de 1974) que
Spínola submeteu, imediatamente, a aprovação do programa elaborado por Veiga
Simão. Este, já representante de Portugal na ONU, era defensor de uma solução
negociada a nível internacional, com o apoio dos Estados Unidos e de alguns
países europeus e, naquela qualidade, «sabia que havia acordo para que Angola
fosse descolonizada em quatro anos e Moçambique em três»[8].
Tal programa
fora formulado num documento intitulado A Descolonização e as Nações Unidas [9]. Nele se fazia,
primeiro, uma análise global da história recente do estatuto da descolonização
e das sucessivas posições portuguesas para, de seguida, preparar um
envolvimento activo da ONU na descolonização, mediante a adopção por Portugal
de uma política que obedeceria às seguintes linhas mestras:
a) Reconhecimento da independência da Guiné-Bissau
estruturado num acordo de garantias supervisado pelas Nações Unidas;
b)
Reconhecimento do direito à autodeterminação e independência dos povos dos
respectivos territórios;
c)
Estabelecimento de um Programa por fases para cada território que inclua:
- a formação de
governos autónomos com a participação dos movimentos de libertação;
- a elaboração
de uma lei eleitoral baseada no conceito de um homem/um voto;
- a elaboração
de constituições políticas a serem submetidas a sufrágio universal, directo e
secreto, ou a serem aprovadas por uma assembleia constituinte, as quais definir[iam]
a natureza das relações com Portugal.
Este esquema deveria ser homologado pela ONU e
desenrolar-se-ia em função de um certo número de «acções» sugeridas por Veiga
Simão:
i) os
intervenientes activos seriam o governo português, a ONU e os movimentos de
libertação, e o governo português estaria sempre na charneira das negociações
bilaterais (Portugal/ONU, Portugal/movimentos de libertação);
ii) a ONU interviria efectivamente em todo o
processo, nomeadamente através da «criação de Comités especiais com a
participação do governo central português, do governo local e dos
representantes das Nações Unidas» e, ainda, através do «envolvimento das
agências económicas, financeiras e sociais»;
iii) as negociações bilaterais entre o governo
português e o(s) movimento(s) de libertação de cada território seriam
conjugadas «com um estatuto de participação das Nações Unidas, de modo a
responsabilizar as entidades perante a opinião pública mundial», e assegurar
uma descolonização «sem traumatismos humanos e sociais», consensual,
independente dos blocos político-militares e propiciadora de desenvolvimento
económico e social;
iv) simultaneamente, deveria verificar-se a
«aprovação e desenvolvimento de um 'plano de assistência a Portugal' com a
participação acentuada dos Estados Unidos e das nações ocidentais, em ordem a
conciliar a democracia em Portugal e a evitar crises económicas e financeiras
visíveis».
Esta “estratégia” de Veiga Simão e Spínola
tinha como ponto central o envolvimento activo da ONU na descolonização
portuguesa, configurava a Guiné-Bissau como uma excepção e, quanto às demais
colónias, distinguia várias fases e vias para o exercício do direito à
autodeterminação e independência. Na opinião de Spínola, só fracassou porque
«infelizmente não obtive na Comissão de Descolonização um apoio imediato e
decisivo a este projecto»[10]. Veiga
Simão diz mais: o seu programa foi «rejeitado pelos militares no Comité da
Descolonização, que o Spínola criou por minha indicação. E foi rejeitado,
porque não queriam ter realmente qualquer superintendência no processo»[11].
Acrescenta Almeida Santos que a Comissão de Descolonização «pôs-se à margem» do
processo de descolonização mas nela foi discutido, a título consultivo, «o
documento que o Melo Antunes tinha pré-negociado com a Frelimo»[12].
Todavia, o
referido Parecer elaborado por Veiga Simão ainda foi exposto no essencial da
sua intervenção durante a reunião do Conselho de Segurança relativa à admissão
da República da Guiné-Bissau, em 12 de Agosto. A recomendação do Conselho de
Segurança sobre a admissão da República da Guiné-Bissau na ONU fora apreciada
(e aprovada) logo depois de ter sido redigido e aceite, em Argel, o essencial
do Protocolo do Acordo entre o
Governo português e o PAIGC. Especialmente convidado, Veiga Simão – que acabara
de chegar de Lisboa, onde esperara pelo regresso de Argel da delegação portuguesa
– falou a terminar. Era a primeira intervenção pública portuguesa na ONU após o
“25 de Abril”. Além de se ter referido ao significado do “25 de Abril” – que
«restituiu a democracia e a liberdade a vinte e cinco milhões de pessoas» –
Veiga Simão recordou que Portugal reconhecera o direito à autodeterminação e
independência dos territórios ultramarinos: «Isto quer dizer que o Governo
português deu início ao processo de descolonização, aceitando, desde logo, o
direito à independência política dos territórios sob administração portuguesa,
em termos e datas a decidir por acordo mútuo». Acrescentou que, como «penhor de
autenticidade democrática», Portugal aceitaria ainda a presença de observadores
das Nações Unidas em qualquer processo eleitoral que viesse a realizar-se
naqueles territórios. Reafirmando as obrigações de Portugal perante a Carta,
sublinhou que a Comunicação
portuguesa à ONU não deixava dúvidas, pelo que iria ser transferida a
administração da República da Guiné-Bissau, acelerada a descolonização das
ilhas de Cabo Verde, em estreita colaboração com os órgãos competentes das
Nações Unidas, e iniciadas negociações formais com os movimentos de libertação
dos outros territórios.
Quanto à questão pendente, Veiga Simão
passava a ler integralmente a Mensagem
do Governo português que resumia o essencial do acordo a que haviam chegado as
delegações do Governo português e do PAIGC e apadrinhava a admissão da
República da Guiné-Bissau na ONU. Esta intervenção especial do representante
português no Conselho de Segurança prenunciava ainda, no âmbito das relações
entre o Governo português e a comunidade internacional, o termo do longo
litígio entre Portugal e a ONU pela radical mudança da posição portuguesa. Mas,
ao contrário da estratégia que Veiga Simão formulara para Spínola, não serviu
para uma intervenção efectiva da ONU nas subsequentes fases da descolonização
portuguesa.
O segundo documento em causa é de outro teor mas teve
também um desenvolvimento reservado e era, essencialmente, uma análise
política. Por razões desconhecidas, só recentemente veio a público e a sua
autoria nunca foi reconhecida.
A apreciação de
um documento emanado do Ministério da Coordenação Territorial intitulado
“Esboço de uma linha de actuação política para os territórios ultramarinos”
(não assinado nem datado, mas na escrita inconfundível de Almeida Santos),
inicialmente prevista na ordem do dia da sessão do Conselho de Estado de 14 de
Agosto, apenas se pôde realizar na sessão de 23 de Agosto e sobre ele só
interveio desenvolvidamente o Conselheiro Freitas do Amaral[13].
Este também chamado “Programa de Acção
do Ministério da Coordenação Interterritorial” ou “Documento Almeida Santos”
desenvolve-se em 14 pontos ou temas, de extensão, actualidade e relevância
variadas. Interessam-nos particularmente os três pontos iniciais[14].
O primeiro prevenia, sinteticamente,
contra as dificuldades de uma programação rígida.
O segundo tratava da «colocação do
problema político-constitucional». Destacam-se as seguintes proposições: i) a
Lei n.º 7/74 assegurara aos territórios ultramarinos o direito a serem
independentes mas não os obrigava a tal (assim, nos casos de Macau e Timor,
talvez S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde e até, «segundo certo tipo de gradação»,
relativamente a Angola); ii) agora sem incertezas nem ambiguidades, era ao
Presidente da República que cabia a definição da forma de exercício desse
direito e o Governo tinha de estar preparado para, sempre que consultado,
dar-lhe o seu parecer; iii) eram previsíveis «reacções localizadas das minorias
europeias de Angola e Moçambique» e o seu «estilo de comportamento» teria
«particular relevo».
O terceiro ponto continha um breve
resumo das perspectivas políticas de cada território. Os cenários eram
múltiplos e variavam conforme as colónias. A Guiné-Bissau era caso arrumado,
dentro de quinze dias. Em Cabo Verde estava muito arreigada a cultura
portuguesa e talvez fosse melhor internacionalizar o problema. Em Moçambique, a
FRELIMO era, praticamente, o único movimento de libertação e o referendo parecia
inviável mas a paz era urgente. Em Angola, a multiplicidade de movimentos de
libertação e de facções hostis «a um tempo retarda e dificulta o problema»:
havia sérios riscos de guerra civil e devia-se procurar um «clima mais propício
a uma ligação a Portugal de tipo comunitário». S. Tomé e Príncipe representava
um «pesado encargo financeiro», tinha algum interesse estratégico; por uma
questão de prestígio admitia-se uma ligação a Portugal, mas a solução «mais
promissora» seria a ligação a Angola. Quanto a Timor dever-se-ia «estimular a
tese da ligação a Portugal». Macau era «um caso especialíssimo» que se deveria
«abordar com todas as cautelas».
Mas estes cenários começaram a ser
abalados ou contrariados quando na sessão seguinte, de 29 de Agosto, o Conselho
de Estado, por unanimidade, aprovou o Protocolo do Acordo assinado com a
delegação do PAIGC a 26 do mesmo mês em Argel, e, também, o texto acertado com
a FRELIMO em Dar-es-Salam, em meados de Agosto, que se iria converter no Acordo
de Lusaca de 7 de Setembro.
Em consequência, ao contrário das
intenções e pretensões de Spínola, Veiga Simão e Almeida Santos, a execução da
Lei n.º 7/74 iria seguir por um só caminho e o plano de Spínola ficou restringido
à tentativa de “salvar” Angola – pretensão com que, aliás, ditou «a sua
sentença como Presidente da República»[15].
António Duarte Silva
[1] Depoimento de
António de Spínola a José Pedro Castanheira (entrevista), “Costa Gomes evitou a
guerra civil”, in Expresso-Revista,
de 30 de Abril de 1994, p. 35.
[4]
O despacho respectivo, não publicado no Diário da República, apenas se
encontra transcrito apud António de Spínola, op. cit., pp.
446-449.
[7] Norrie
MacQueen, A Descolonização da África
Portuguesa, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1998, p. 121.
[8] Depoimento de
Veiga Simão a José Manuel Fernandes e São José Almeida (entrevista), “Aprendi a
viver com o granito, não dobro”, in Público
(Domingo), de 16 de Novembro de
2011, p. 54.
[9] Cfr. “Síntese
do trabalho programático ‘A descolonização e as Nações Unidas’, elaborado pelo
Prof. Veiga Simão”, apud António de Spínola, op. cit., pp. 429/430. Para a elaboração do Programa em causa,
Veiga Simão contou com a colaboração do embaixador José Fragoso – cfr.
Depoimento de Veiga Simão, cit., in loc.
cit., p. 56. Não se conhece a versão integral.
[11] Depoimento de
Veiga Simão in José Manuel Fernandes e São José Almeida (entrevista), “Aprendi
a viver com o granito, não dobro”, cit., p. 56.
[12] Almeida Santos
(entrevista a São José Almeida)), “Quem mandou no processo de descolonização
foi o MFA”, in Público, de 10/5/2004,
p. 11.
[13] Cfr. Maria José
Tíscar Santiago, O 25 de Abril e o
Conselho de Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012,
pp. 358 e 363 e segs., em especial, pp. 367/368.
[15] Almeida Santos
(entrevista por São José Almeida), “Quem mandou no processo de descolonização
foi o MFA”, cit., p. 11.
Sem comentários:
Enviar um comentário