segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Agosto quente e a Lei de Descolonização (II)

 


 
 
 
Os documentos Veiga Simão e Almeida Santos
 
Decorreram da aprovação da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, e da Comunicação do Governo Português à ONU, de 4 de Agosto, dois documentos fundamentais para compreender o fracasso da estratégia spinolista para a descolonização, elaborados por dois dos seus mais importantes mentores: Almeida Santos e Veiga Simão. A ambos, em reunião no Buçaco – convocada a propósito da sua eventual deslocação (não consumada) à ONU – Spínola acabara de convidar para fazerem parte do novo governo que tencionava formar e de que Almeida Santos seria Primeiro-Ministro[1].
Na opinião de Spínola, depois da recém-concluída visita do Secretário-Geral da ONU, Kurt Waldheim, «impunha-se proceder a uma imediata e adequada articulação dos sectores intervenientes na descolonização, a fim de controlar o desenvolvimento do processo» e instituir «uma política de co-responsabilização à escala internacional»[2]. Para tal, promoveu a criação de uma Comissão Nacional de Descolonização e de um Gabinete de Estudos cuja intervenção mais significativa foi a preparação e apreciação do trabalho programático elaborado por Veiga Simão para servir «de base a uma estratégia de cooperação com as Nações Unidas»[3]. Os referidos órgãos foram criados por despacho do Presidente da República de 5 de Agosto, com funções consultivas e de coordenação dos trabalhos de planeamento e execução do processo de descolonização, colaborando, dizia, «na responsabilidade singular que nesta hora histórica recai sobre o presidente da República»[4]. Era composta também pelo Primeiro-Ministro, Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, Ministros da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e da Coordenação Interterritorial e pelo embaixador de Portugal na ONU. Os seus objectivos eram evidentes: permitir a Spínola coordenar todo o processo de descolonização[5] e «criar responsabilidades aos Movimentos de Libertação não só perante as autoridades portuguesas como, também, perante entidades internacionais idóneas que, co-responsabilizando-se no processo, serviriam de forças moderadoras aos sectores extremistas»[6]. A própria designação traduzia o afastamento da via federalista[7].
 
 
 
 
 
Foi a esta Comissão de Descolonização (a qual não passará de uma mera e efémera comissão ad hoc, antecedente daquela, com o mesmo nome e semelhantes funções, criada em finais de Dezembro de 1974) que Spínola submeteu, imediatamente, a aprovação do programa elaborado por Veiga Simão. Este, já representante de Portugal na ONU, era defensor de uma solução negociada a nível internacional, com o apoio dos Estados Unidos e de alguns países europeus e, naquela qualidade, «sabia que havia acordo para que Angola fosse descolonizada em quatro anos e Moçambique em três»[8].
Tal programa fora formulado num documento intitulado A Descolonização e as Nações Unidas [9]. Nele se fazia, primeiro, uma análise global da história recente do estatuto da descolonização e das sucessivas posições portuguesas para, de seguida, preparar um envolvimento activo da ONU na descolonização, mediante a adopção por Portugal de uma política que obedeceria às seguintes linhas mestras:
a) Reconhecimento da independência da Guiné-Bissau estruturado num acordo de garantias supervisado pelas Nações Unidas;
 b) Reconhecimento do direito à autodeterminação e independência dos povos dos respectivos territórios;
 c) Estabelecimento de um Programa por fases para cada território que inclua:
 - a formação de governos autónomos com a participação dos movimentos de libertação;
  - a elaboração de uma lei eleitoral baseada no conceito de um homem/um voto;
 - a elaboração de constituições políticas a serem submetidas a sufrágio universal, directo e secreto, ou a serem aprovadas por uma assembleia constituinte, as quais definir[iam] a natureza das relações com Portugal.
 Este esquema deveria ser homologado pela ONU e desenrolar-se-ia em função de um certo número de «acções» sugeridas por Veiga Simão:
 i) os intervenientes activos seriam o governo português, a ONU e os movimentos de libertação, e o governo português estaria sempre na charneira das negociações bilaterais (Portugal/ONU, Portugal/movimentos de libertação);
 ii) a ONU interviria efectivamente em todo o processo, nomeadamente através da «criação de Comités especiais com a participação do governo central português, do governo local e dos representantes das Nações Unidas» e, ainda, através do «envolvimento das agências económicas, financeiras e sociais»;
 iii) as negociações bilaterais entre o governo português e o(s) movimento(s) de libertação de cada território seriam conjugadas «com um estatuto de participação das Nações Unidas, de modo a responsabilizar as entidades perante a opinião pública mundial», e assegurar uma descolonização «sem traumatismos humanos e sociais», consensual, independente dos blocos político-militares e propiciadora de desenvolvimento económico e social;
 iv) simultaneamente, deveria verificar-se a «aprovação e desenvolvimento de um 'plano de assistência a Portugal' com a participação acentuada dos Estados Unidos e das nações ocidentais, em ordem a conciliar a democracia em Portugal e a evitar crises económicas e financeiras visíveis».
 Esta “estratégia” de Veiga Simão e Spínola tinha como ponto central o envolvimento activo da ONU na descolonização portuguesa, configurava a Guiné-Bissau como uma excepção e, quanto às demais colónias, distinguia várias fases e vias para o exercício do direito à autodeterminação e independência. Na opinião de Spínola, só fracassou porque «infelizmente não obtive na Comissão de Descolonização um apoio imediato e decisivo a este projecto»[10]. Veiga Simão diz mais: o seu programa foi «rejeitado pelos militares no Comité da Descolonização, que o Spínola criou por minha indicação. E foi rejeitado, porque não queriam ter realmente qualquer superintendência no processo»[11]. Acrescenta Almeida Santos que a Comissão de Descolonização «pôs-se à margem» do processo de descolonização mas nela foi discutido, a título consultivo, «o documento que o Melo Antunes tinha pré-negociado com a Frelimo»[12].
Todavia, o referido Parecer elaborado por Veiga Simão ainda foi exposto no essencial da sua intervenção durante a reunião do Conselho de Segurança relativa à admissão da República da Guiné-Bissau, em 12 de Agosto. A recomendação do Conselho de Segurança sobre a admissão da República da Guiné-Bissau na ONU fora apreciada (e aprovada) logo depois de ter sido redigido e aceite, em Argel, o essencial do Protocolo do Acordo entre o Governo português e o PAIGC. Especialmente convidado, Veiga Simão – que acabara de chegar de Lisboa, onde esperara pelo regresso de Argel da delegação portuguesa – falou a terminar. Era a primeira intervenção pública portuguesa na ONU após o “25 de Abril”. Além de se ter referido ao significado do “25 de Abril” – que «restituiu a democracia e a liberdade a vinte e cinco milhões de pessoas» – Veiga Simão recordou que Portugal reconhecera o direito à autodeterminação e independência dos territórios ultramarinos: «Isto quer dizer que o Governo português deu início ao processo de descolonização, aceitando, desde logo, o direito à independência política dos territórios sob administração portuguesa, em termos e datas a decidir por acordo mútuo». Acrescentou que, como «penhor de autenticidade democrática», Portugal aceitaria ainda a presença de observadores das Nações Unidas em qualquer processo eleitoral que viesse a realizar-se naqueles territórios. Reafirmando as obrigações de Portugal perante a Carta, sublinhou que a Comunicação portuguesa à ONU não deixava dúvidas, pelo que iria ser transferida a administração da República da Guiné-Bissau, acelerada a descolonização das ilhas de Cabo Verde, em estreita colaboração com os órgãos competentes das Nações Unidas, e iniciadas negociações formais com os movimentos de libertação dos outros territórios.
         Quanto à questão pendente, Veiga Simão passava a ler integralmente a Mensagem do Governo português que resumia o essencial do acordo a que haviam chegado as delegações do Governo português e do PAIGC e apadrinhava a admissão da República da Guiné-Bissau na ONU. Esta intervenção especial do representante português no Conselho de Segurança prenunciava ainda, no âmbito das relações entre o Governo português e a comunidade internacional, o termo do longo litígio entre Portugal e a ONU pela radical mudança da posição portuguesa. Mas, ao contrário da estratégia que Veiga Simão formulara para Spínola, não serviu para uma intervenção efectiva da ONU nas subsequentes fases da descolonização portuguesa.
O segundo documento em causa é de outro teor mas teve também um desenvolvimento reservado e era, essencialmente, uma análise política. Por razões desconhecidas, só recentemente veio a público e a sua autoria nunca foi reconhecida.
 A apreciação de um documento emanado do Ministério da Coordenação Territorial intitulado “Esboço de uma linha de actuação política para os territórios ultramarinos” (não assinado nem datado, mas na escrita inconfundível de Almeida Santos), inicialmente prevista na ordem do dia da sessão do Conselho de Estado de 14 de Agosto, apenas se pôde realizar na sessão de 23 de Agosto e sobre ele só interveio desenvolvidamente o Conselheiro Freitas do Amaral[13].
         Este também chamado “Programa de Acção do Ministério da Coordenação Interterritorial” ou “Documento Almeida Santos” desenvolve-se em 14 pontos ou temas, de extensão, actualidade e relevância variadas. Interessam-nos particularmente os três pontos iniciais[14].
         O primeiro prevenia, sinteticamente, contra as dificuldades de uma programação rígida.
         O segundo tratava da «colocação do problema político-constitucional». Destacam-se as seguintes proposições: i) a Lei n.º 7/74 assegurara aos territórios ultramarinos o direito a serem independentes mas não os obrigava a tal (assim, nos casos de Macau e Timor, talvez S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde e até, «segundo certo tipo de gradação», relativamente a Angola); ii) agora sem incertezas nem ambiguidades, era ao Presidente da República que cabia a definição da forma de exercício desse direito e o Governo tinha de estar preparado para, sempre que consultado, dar-lhe o seu parecer; iii) eram previsíveis «reacções localizadas das minorias europeias de Angola e Moçambique» e o seu «estilo de comportamento» teria «particular relevo».
         O terceiro ponto continha um breve resumo das perspectivas políticas de cada território. Os cenários eram múltiplos e variavam conforme as colónias. A Guiné-Bissau era caso arrumado, dentro de quinze dias. Em Cabo Verde estava muito arreigada a cultura portuguesa e talvez fosse melhor internacionalizar o problema. Em Moçambique, a FRELIMO era, praticamente, o único movimento de libertação e o referendo parecia inviável mas a paz era urgente. Em Angola, a multiplicidade de movimentos de libertação e de facções hostis «a um tempo retarda e dificulta o problema»: havia sérios riscos de guerra civil e devia-se procurar um «clima mais propício a uma ligação a Portugal de tipo comunitário». S. Tomé e Príncipe representava um «pesado encargo financeiro», tinha algum interesse estratégico; por uma questão de prestígio admitia-se uma ligação a Portugal, mas a solução «mais promissora» seria a ligação a Angola. Quanto a Timor dever-se-ia «estimular a tese da ligação a Portugal». Macau era «um caso especialíssimo» que se deveria «abordar com todas as cautelas».
         Mas estes cenários começaram a ser abalados ou contrariados quando na sessão seguinte, de 29 de Agosto, o Conselho de Estado, por unanimidade, aprovou o Protocolo do Acordo assinado com a delegação do PAIGC a 26 do mesmo mês em Argel, e, também, o texto acertado com a FRELIMO em Dar-es-Salam, em meados de Agosto, que se iria converter no Acordo de Lusaca de 7 de Setembro.
         Em consequência, ao contrário das intenções e pretensões de Spínola, Veiga Simão e Almeida Santos, a execução da Lei n.º 7/74 iria seguir por um só caminho e o plano de Spínola ficou restringido à tentativa de “salvar” Angola – pretensão com que, aliás, ditou «a sua sentença como Presidente da República»[15].
 
António Duarte Silva
 





[1] Depoimento de António de Spínola a José Pedro Castanheira (entrevista), “Costa Gomes evitou a guerra civil”, in Expresso-Revista, de 30 de Abril de 1994, p. 35.


[2]  Idem, País sem Rumo, Lisboa, SCIRE, 1978, p. 270.


[3] Ibidem.


[4] O despacho respectivo, não publicado no Diário da República, apenas se encontra transcrito apud António de Spínola, op. cit., pp. 446-449.


[5] Luís Nuno Rodrigues, Spínola – Biografia, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, p. 462.


[6] António de Spinola, País sem Rumo, cit., p. 270.


[7] Norrie MacQueen, A Descolonização da África Portuguesa, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1998, p. 121.


[8] Depoimento de Veiga Simão a José Manuel Fernandes e São José Almeida (entrevista), “Aprendi a viver com o granito, não dobro”, in Público (Domingo), de 16 de Novembro de 2011, p. 54. 


[9] Cfr. “Síntese do trabalho programático ‘A descolonização e as Nações Unidas’, elaborado pelo Prof. Veiga Simão”, apud António de Spínola, op. cit., pp. 429/430. Para a elaboração do Programa em causa, Veiga Simão contou com a colaboração do embaixador José Fragoso – cfr. Depoimento de Veiga Simão, cit., in loc. cit., p. 56. Não se conhece a versão integral.


[10] António de Spinola, País sem Rumo, cit., p. 271.


[11] Depoimento de Veiga Simão in José Manuel Fernandes e São José Almeida (entrevista), “Aprendi a viver com o granito, não dobro”, cit., p. 56.


[12] Almeida Santos (entrevista a São José Almeida)), “Quem mandou no processo de descolonização foi o MFA”, in Público, de 10/5/2004, p. 11.


[13] Cfr. Maria José Tíscar Santiago, O 25 de Abril e o Conselho de Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012, pp. 358 e 363 e segs., em especial, pp. 367/368.


[14] Apud ibidem, pp. 323 e segs.


[15] Almeida Santos (entrevista por São José Almeida), “Quem mandou no processo de descolonização foi o MFA”, cit., p. 11.
 

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