Publicado
no ano do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, temos finalmente uma
biografia escrita por um investigador português que é simultaneamente um livro
de história, de política e de direito, em torno de um líder revolucionário
africano que criou o PAIGC, que deu voz aos movimentos nacionalistas africanos
de língua portuguesa nos areópagos internacionais, admirado pelo seu pensamento
original, pelos seus dotes diplomáticos e como estratega militar. O seu nome
está associado à construção de duas nações, à renovação do pensamento
revolucionário à escala mundial e ao determinante contributo que deu à queda da
ditadura e à descolonização portuguesa: Amílcar Cabral e o Fim do Império,
por António Duarte Silva, Temas e Debates, 2024.
Devo
fazer uma declaração de interesse: o autor honra-me com a sua amizade desde
longa data, fui sentindo, pelos anos fora, como esta escrita lhe ia pulsando da
investigação, credora de um olhar completamente distinto de outras obras de
cariz biográfico. Posso afirmar, sem a mínima hesitação, que se trata de uma
investigação memorável, tem uma moldura biográfica tão distinta que põe esta
obra ao nível dos ensaios biográficos que resistem aos caprichos do tempo. O
autor tem um currículo firmado, de grande qualidade científica, que
inevitavelmente o catapultou para este exercício que comporta uma conclusão que
certamente assombrará muitos leitores: ao delinear um modelo praticamente
idêntico numa colónia em guerra fazer uma consulta popular que culminaria numa
declaração unilateral de independência, nunca Cabral imaginou que tal processo
iria, a breve trecho, escancarar as portas à descolonização portuguesa. Como o
próprio autor declara: “Concluo que a declaração unilateral de independência do
Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, como ato e prova da
soberania e da autodeterminação interna e externa, foi, pelo seu êxito e
impacto no fim do colonialismo português e apesar de formalmente posterior ao
seu assassinato, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral.”
É
um longo itinerário discursivo onde cabem as primeiras reuniões dos movimentos
unitários contra o colonialismo português, a reunião de Bissau em setembro de
1959, os primeiros opúsculos e memorandos, como o PAI/PAIGC se foi afirmando à
escala internacional, a preparação da luta e os apoios à formação de quadros,
os primeiros relacionamentos com a ONU, a consolidação do pensamento ideológico
(a constituição da vanguarda, o papel da pequena burguesia e da massa
camponesa); a convulsão no Sul da Guiné, a partir do segundo semestre de 1966,
a Operação Tridente, o Congresso de Cassacá, o crescimento imparável da
guerrilha, os assentamentos em território colonial, o apoio cubano, Schulz,
Spínola; a formulação de Cabral de que a luta de libertação nacional é um
processo cultural, libertador, um regresso à identidade; as preocupações de
Cabral em estabelecer pontes para a organização de um quadro jurídico que
levasse à aceitação internacional, uma gestação que preludia a decisão de tomar
a iniciativa de fazer uma declaração unilateral de independência; o
reconhecimento de Spínola de que não se podia ganhar militarmente a guerra e a
proposta de medidas que os órgãos de soberania recusaram; a ofensiva
político-diplomática culmina em 1972 com a visita da missão especial da ONU, em
Abril, a eleição da Assembleia Nacional Popular, a última tentativa de Spínola
de negociar um entendimento, recusa de Marcello Caetano; e chegamos ao
assassinato do líder revolucionário e o autor observa: “O PAIGC ficou sem
cabeça, pois não havia ninguém capaz de o substituir, especialmente na
discussão de ideias, na definição de grandes objetivos e na diplomacia. Morto,
Cabral deixava pronto o processo de independência da Guiné-Bissau, um programa
mínimo conseguido, um programa maior para aplicar e uma unidade orgânica com
Cabo Verde por concluir.”
O
autor disseca os antecedentes de declarações unilaterais de independência e
como Cabral foi preparando uma recetiva atmosfera internacional. Em 1972, obtém
apoio soviético para deter uma arma que leve a guerra a um patamar mais elevado
– os mísseis terra-ar, que farão destruições a partir de março de 1973, e
deixaram as forças portuguesas em polvorosa. Numa reunião de chefias em 8 de
junho com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, tomou-se a decisão de
retrair o dispositivo português, o objetivo era consolidar um reduto que
pudesse garantir uma solução política. “Em reunião com Costa Gomes e os
ministros da Defesa, do Ultramar e da Marinha, Marcello Caetano pôs a hipótese
de preparação a retirada progressiva das tropas, para não prolongar um sacrifício
inútil, designando um oficial-general para liquidar a nossa presença, ao que
Costa Gomes terá retorquido ser possível a defesa militar enquanto não
aparecesse a aviação.”
E
temos o legado de Cabral: o II Congresso do PAIGC (julho de 1973), a cerimónia
no Boé, em 24 de setembro, a proclamação da Constituição, a decisiva resolução
3061 da ONU, de 3 de novembro, a admissão da Organização da Unidade Africana,
também em novembro; o acordo de Argel, a 26 de agosto de 1974; as iniciativas
para a descolonização e independência de Cabo Verde, e a assunção da nova
república; e o caminho para o desastre da unidade Guiné-Cabo Verde, a
governação de Cabral, o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a cisão
partidária. “O Estado da Guiné-Bissau nasceu frágil e rapidamente entrou em
colapso. Bissau tornou-se uma cidade-Estado e devorou a luta de libertação
nacional. A revisão constitucional de 1980, destinada a consolidar a unidade
Guiné-Cabo Verde, trouxe o fim do regime. No início da década de 1990, ambas as
Repúblicas transitaram para a democracia representativa e pluralista. Em 1998,
uma rebelião militar originou uma guerra civil e a Guiné-Bissau derivou para
Estado-falhado. Sob a tutela das FARP, o PAIGC manteve-se no poder. Assumira-se
sucessivamente como um partido político autónomo, binacional e clandestino, um
movimento de libertação nacional, um Partido-Estado, a força dirigente da
sociedade, um partido nacional, o partido único e um partido político
democrático. Embora com sobreposição destas diferentes naturezas, estatutos e
funções, ainda sobrevive; não passa de uma mescla, dotada de uma sigla
antiquada, equívoca e desgastada. Em Cabo Verde foi substituído por um partido
herdeiro e novo, o PAICV.
Com
Amílcar Cabral, seu ideólogo e líder, o PAIGC ficará na história como o
movimento de libertação nacional que alcançou a independência associada da
Guiné-Bissau e de Cabo Verde que contribuiu decisivamente para o fim do império
colonial português. Política, diplomática e juridicamente, o momento
transcendente foi a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, o
maior feito revolucionário de Amílcar Cabral, fundado do PAI primordial e PAI
das Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e Cabo Verde, pelas quais deu a vida.”
De leitura obrigatória, documento da maior exigência para a consolidação das relações luso-guineenses, devia ficar nas mãos de todos os investigadores de estudos africanos em Portugal e na Guiné-Bissau, e ser alvo de estudo continuo dos estabelecimentos escolares da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Tenho sérias dúvidas que esta abordagem venha a ser ultrapassada nas próximas décadas.
Mário Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário