terça-feira, 3 de abril de 2012

Vingança e Direito (2).


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Brasil, golpe de 1964



2.     A paz na contenda?

Poderá a contenda conter em si mesma um elemento de disciplinador e neutralizante da vingança? Segundo os defensores da teoria da paz na contenda, há que responder afirmativamente a esta questão.

A paz, aqui, não está directamente relacionada com a fried de Wilda e dos seus seguidores, centrando-se mais numa tese veiculada por alguns antropólogos, na segunda metade do século XX, segundo os quais a contenda, ao contrário do que era defendido até então por grande parte dos historiadores, não era totalmente anárquica ou exterior a qualquer espécie de legalidade.

A teoria da paz dos germanistas do século XIX correspondeu a uma visão romantizada dos costumes dos povos germânicos, anteriores ao seu contacto com Roma e com o cristianismo. Mais do que narrativa, esta tese tinha um inegável conteúdo ideológico onde importava realçar a peculiaridade e especialidade dos germani, descritos por estes autores como um povo extremamente ordenado, pacífico e cumpridor das suas normas, cuja organização política e jurídica, de notável complexidade, remontaria aos tempos anteriores ao contacto com o poder de Roma e com a mensagem pacifista do cristianismo[22]. Numa perspectiva diferente, a teoria da paz na contenda, inicialmente formulada por Max Gluckman no artigo The Peace in The Feud, publicado na revista Past and Present em 1955, defende que a contenda não corresponderia a um esquema de vingança desorganizado e independente de normas, e que, pelo contrário, funcionava de acordo com as suas próprias regras e almejava, em última análise, o restabelecimento da paz, aqui tomada no seu sentido mais imediato de clima social oposto à violência e à hostilidade[23].  

Partindo dos exemplos fornecidos pelo estudo de Edward Evans Pritchard sobre os comportamentos e costumes das tribos Nuer, da zona Este de África, carentes de instituições governamentais, Max Gluckman procura retirar conclusões susceptíveis de serem aplicadas também aos períodos da história da Europa em que a contenda funcionou como a principal forma de lidar com as ofensas[24].




Eliot Elisofon, Stork Man (tribo Nuer), 1947






Conforme o relato de Gluckman, entre os Nuer o laço mais importante era, sem dúvida, o parentesco agnatício. O grupo daqui resultante, formado com base em descendentes varões de um ascendente varão comum, detinha e pastoreava o seu gado em conjunto e, em conjunto, reagia às ofensas que contra um dos seus membros eram cometidas por outros grupos[25]. Este era o primeiro e mais imediato grupo de vingança.

Contudo, este elemento sanguíneo poderia não ser a única base de formação dos grupos de vingança. Por um lado, os membros destes grupos agnatícios nem sempre viviam em conjunto, podendo até residir em várias comunidades, em conjunto com membros de outros grupos de parentesco[26]. Por outro lado, as regras matrimoniais em vigor entre os Nuer proibiam o casamento de um homem com uma mulher do mesmo clã ou com uma mulher com a qual pudesse ser estabelecido um laço numa linhagem até seis gerações[27]. A somar a isto, as pequenas comunidades locais desempenhavam um papel central na vida dos Nuer podendo resultar também daí a modelação dos grupos de vingança[28].

Face a este quadro, os grupos de vingança poderiam ser compostos não apenas com base em laços sanguíneos mas, também, em laços matrimoniais ou em laços de amizade, de proximidade e de solidariedade. Desta forma, as situações de contenda quase sempre dariam origem a conflitos de interesse, colocando parentes, vizinhos e amigos, isto é, pessoas que por uma ou outra razão poderiam fazer parte do mesmo grupo de vingança, uns contra os outros[29].

Estabelecendo um certo paralelismo entre esta situação e a vivida pelos anglo-saxões no período medieval, Gluckman argumenta que, ao contrário da ideia sustentada por alguns historiadores de que o cometimento de um delito daria necessariamente origem à contenda e à vingança privada, o mais certo era a ameaça de contenda ser, em muitos casos, suficientemente forte como para afastar as partes da vingança privada em favor de um entendimento estabelecido com base na arbitragem e na compensação, pelo que, em termos abstractos, a contenda, ou a ameaça desta, tanto desempenharia uma função vingança, como uma função pacificadora[30]. Paul Hyams, no seu artigo Feud and the State in Late Anglo-Saxon England, parece defender uma tese semelhante:

Yet Old English society never did quite dissolve into chaos (...). Scholars have sought the answer in some variant of the antropologists’ peace-in-the-feud model. Feud could, in this view, function as an instrument of positive social control. Fear of the violent retaliation feud requires could serve to deter men from homicides and other violent acts, or at least give them and their friends pause for thought.[31]

Em certo sentido, podemos conviver pacificamente com esta tese. Por um lado, muitos dos historiadores que colocaram ênfase no elemento beligerante da contenda sustentaram a sua opinião em fontes que, por razões mais literárias que históricas, já por si enfatizavam esse elemento da contenda, como as sagas germânicas ou o poema épico Beowulf[32], não sendo possível extrapolar que a contenda tivesse no quotidiano destes povos o mesmo conteúdo que nestas fontes literárias. Por outro lado, a intensidade da contenda terá dependido, em muito, da força e do poder dos indivíduos e dos grupos em confronto, bem como dos grupos sociais a que estes pertencessem[33]. Neste sentido, é de supor que muitas vezes a pacificação pela arbitragem e pela compensação fossem preferíveis.

Contudo, é possível esboçar alguns argumentos contra este modelo da paz na contenda, pelo menos na forma como ela é apresentada por Max Gluckman. Como o próprio autor reconhece, nos casos em que os conflitos entre os vários laços unem os envolvidos na contenda não sejam tão intensos, é de crer que o elemento de vingança da contenda se possa sobrepor ao elemento pacificador[34]. E mesmo admitindo a existência de algumas regras que disciplinassem a contenda, é de crer que estas fossem, por razões de temperamento, força ou de estatuto dos intervenientes, quebradas ou excedidas e quando isso acontecesse, certamente não haveria paz[35]. Há também que ter presente, como adverte Trevor Dean, que a pacificação produzida pelo receio da contenda poderá ter funcionado como um instrumento de opressão e de humilhação dos grupos mais fracos e com menor estatuto por parte dos grupos mais fortes e de estatuto superior[36].

Apesar das objecções, esta teoria marca um importante ponto a propósito da contenda: mesmo tendo em conta a violência e a duração que é imaginável que a contenda pudesse acarretar e mesmo praticando o pessimismo antropológico mais extremo, o instinto mais natural do homem, a sua própria conservação e o receio da violência, conduzem-no, em última instância, ao desejo da paz e ao abandono da “mísera condição de guerra”, como diria Hobbes. Quando estes esquemas vingança privada começaram a ser combatidos pelos poderes públicos, quando as autoridades públicas começaram a centrar em si o direito de punir, o que, na Europa, só aconteceu de forma mais evidente em plena Idade Média, já os esquemas de contenda e vingança privada vigoravam desde os tempos mais remotos, sendo de suspeitar que deveriam conter alguma jurisdicidade, não sendo puras manifestações de violência e anarquia.






Eric Drooker, X-Ray Crowd


(Continua)

 


David Teles Pereira


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