segunda-feira, 9 de abril de 2012

Günter Grass e a Mossad.

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Günter Grass, Nachtlicher Markt, 1998





Günter Grass nunca se contentou em ser apenas escritor. Gosta de ser tomado como voz da “consciência nacional” alemã. É neste estatuto que publicou no Süddeutsche Zeitung um panfleto sob a forma de poema – “O que deve ser dito”. A mensagem, escrita com “a idade e a minha última tinta”, soa como um testamento intelectual e político: os alemães, já suficientemente estigmatizados, não devem aceitar ser cúmplices de outro “crime previsível”. Qual? A “aniquilação do povo iraniano” por um ataque atómico israelita. “Por que só agora digo (...) que o poderio atómico de Israel ameaça a já frágil paz mundial? Porque é preciso dizer o que amanhã poderá ser demasiado tarde. (...) Não me calarei mais, porque estou farto da hipocrisia do Ocidente” perante Israel.
Numa primeira leitura, o “poema” visa inflectir a política externa da Alemanha. Berlim fornece armas a Israel. Vai vender-lhe mais um submarino, por um terço do preço. A segunda leitura aponta para mais longe. Grass quer manifestamente remover um tabu. “O que deve ser dito”, anota a revista Der Spiegel, é a subtil evocação duma expressão muito próxima, usada na publicidade, que poderia ser livremente traduzida assim: “Não há lei que proíba dizer que...”
A Alemanha assumiu a culpa da Shoah (Holocausto) e por isso se sente obrigada ao silêncio perante Israel, enquanto Estado judaico. Quem o viola sujeita-se à acusação de anti-semitismo. Mas, neste caso, assumir a culpa e o silêncio seria tornar-se cúmplice “desse outro país” que, mantendo um arsenal nuclear, ameaça atacar “o povo iraniano, subjugado e levado a uma exaltação organizada por um fanfarrão [Ahmadinejad]”. Nada propõe de inédito, senão inspeccionar simultaneamente o arsenal israelita e o programa nuclear iraniano.
Grass sempre assumiu a culpa do Holocausto, mas – sublinha – manter o silêncio “tornar-nos-ia cúmplices de um crime previsível”, uma nova culpa a somar à antiga, que “não poderia ser remediada por nenhuma das desculpas habituais.”
As primeiras reacções relativizaram o caso. Será assim tão forte o “tabu israelita” dos alemães? Lembra Der Spiegel que criticar Israel não é um interdito social. Ainda recentemente Sigmar Gabriel, líder do Partido Social-Democrata, escreveu que tinha pessoalmente testemunhado a existência de um “apartheid” na Cisjordânia. Por outro lado, os judeus alemães não são cegos seguidores das opções israelitas. Ignatz Buber, presidente do Conselho Central Judaico da Alemanha, referiu-se a Israel como o Estado “deles”.
O editorialista Henryk Broder, alemão e judeu, assumiu a linha de ataque frontal, qualificando Grass de “arquétipo do erudito anti-semita”. “Ele sempre teve um problema com os judeus, mas nunca o tinha exprimido tão claramente como neste ‘poema’.” Porquê? “Porque é perseguido pela vergonha e pelo remorso” e não “encontrará paz” enquanto Israel existir.
Na mesma linha, comentou o Centro Wiesentahl, de Israel: “Como os ataques contra os judeus individualmente são politicamente incorrectos e inaceitáveis na República Federal, Israel é o alvo designado pelos anti-semitas alemães, que estão fartos do Holocausto e procuram apagar qualquer responsabilidade.”
O Estado de Israel utiliza o Holocausto como meio de dissuasão dos ataques à sua política palestiniana. Também o inverso é verdade: Israel é o sucedâneo “tolerável” para o anti-semitismo. É a zona cinzenta da ambiguidade.
A propósito do “poema” de Grass, observou o diplomata e escritor espanhol José Maria Ridao: “A sua descrição do Irão evoca de certa maneira a da Alemanha nazi, em que os alemães tal como poderia suceder aos iranianos – escreve Grass – acabaram como notas de pé de página”.
Se Grass tem um “problema com os judeus” associado ao “remorso”, ele terá raízes na sua história pessoal. Reconheceu, nas suas memórias, Descascando a Cebola (2007), a sua juventude nazi. “Por mais que remexa a folhagem das minhas recordações, nada encontro que me possa ser favorável. A dúvida não perturbou manifestamente os meus anos de infância.”
Nascido em 1927, foi seduzido pela propaganda nazi, admirou os feitos militares alemães, passou pelas Juventude Hitleriana, alistou-se no exército e acabou incorporado num ramo auxiliar das Waffen-SS – embora numas Waffen-SS mais antigas e distintas das do emblema da caveira. “O que aceitei com estúpido orgulho na minha juventude, queria, depois da guerra, escondê-lo aos meus próprios olhos porque a vergonha voltava incessantemente.” Ainda hoje, escreveu, “subsiste este resíduo que nunca foi liquidado e que correntemente se designa por ‘co-responsabilidade’”.
Nenhum jovem alemão da época era obrigado a ser lúcido e, muito menos, resistente ou herói. Alguns foram heróis, como os estudantes de Munique da “Rosa Branca”, fuzilados em 1943. São muito poucos. Grass foi um alemão “como os outros”. O problema não é a culpa, é a sua denegação. A culpa escondida envenena e transforma em azedume a derrota – que foi terrível. É, então, fácil saltar de patamar. O “poema” não será tanto um ataque à política israelita – uma banalidade para a estatura intelectual que ele próprio se atribui – mas um apelo à abolição do “grande interdito” alemão relativamente aos judeus.
A mais subtil resposta a Grass foi dada pelo historiador israelita Tom Segev: “O poema de Grass é mais patético do que anti-semita.” Escrever “o que deve ser dito” é o primeiro erro: “Não tem de ser dito porque já foi dito por muitos outros, a começar por israelitas.”
Os argumentos invocados em Israel – por intelectuais, jornalistas, políticos, ex-chefes militares e dos serviços secretos – avaliam a inteligência, a possibilidade e os resultados de um ataque militar ao Irão (obviamente não atómico). Constituem um debate “a nível estratégico, operacional e moral; os comentários de Grass não são nada.”
A campanha de denúncia de um ataque ao Irão foi lançada em Outubro pelo jornalista Nahum Barnea, no diário Yedioth Ahronoth. Meir Dagan, que dirigiu a Mossad até 2010, rompeu o “proverbial voto de sigilo”, declarando ter o dever de falar “antes que a catástrofe aconteça” – e porque raras pessoas conhecem como ele o dossier iraniano.
“Se Dagan publicasse poemas nos jornais, as pessoas diriam que tinha perdido o juízo”, prossegue Segev no diário Ha’aretz. “O mesmo se deveria dizer quando Grass se mete em questões de estratégia nuclear; não por estar errado – poderá não estar – mas porque não está mais informado do que o consumidor médio de notícias.” A comparação entre o Irão e Israel não é sequer exacta: não foi Israel quem ameaçou “varrer o outro do mapa”.
“[Grass] cai no moralismo hipócrita e angustia-se por não ter antes condenado a capacidade nuclear israelita. Mas isto deve ser creditado, há muitos anos atrás, ao [cientista nuclear israelita] Mordechai Vanunu. (...) Fica a impressão de que procura desviar a onda de chque da sua confissão sobre o seu serviço nas Waffen SS.”
Enfim: “Ele diz que escreveu o poema com as suas últimas gotas de tinta. Esperemos que lhe tenha sobrado alguma para outro belo romance.”


Jorge Almeida Fernandes



Tradução francesa do poema de Günter Grasse, publicada no Le Monde:


Ce qui doit être dit

Pourquoi dois-je garder si longtemps le silence
Sur ce qui est manifeste et auquel on a eu recours
Dans des jeux de guerre, au terme de laquelle, nous survivants
finissons comme des notes de bas de page.
Sur ce prétendu droit d’attaque préventive
Qui pourrait anéantir le peuple iranien,
Soumis et conduit à la joie organisée
par un fanfaron,
Parce qu’on soupçonne dans sa juridiction
La fabrication d’une bombe atomique
Mais, pourquoi m’abstiendrais-je de citer
Cet autre pays où
Depuis des années – bien que tenu secret –
On possède l’arme nucléaire développée,
En dehors de tout contrôle, puisque
inaccessible à toute inspection?
Le silence unanime sur cette question
Auquel obéit mon propre silence
Je le ressens comme un mensonge pesant.
Et contrainte qui menace aussitôt de frapper
quiconque refuse de s’y plier;
De l’habituel verdict d’«Antisémitisme»
Maintenant, parce que mon pays,
Accablé et réprouvé maintes et maintes fois
Pour des crimes spécifiques
Sans aucun équivalent,
A nouveau et par routine, bien que
D’office considéré comme réparation,
Va livrer à Israël un autre sous-marin capable
de lancer des missiles destructeurs
sur l’endroit où personne n’a prouvée
L’existence d’une seule bombe,
Même si on voulait fournir comme preuve la crainte…
Je dis ce qui doit être dit
Pourquoi m’être-tu trop longtemps?
Parce que je croyais que mon origine
Marquée d’un stigmate indélébile,
m’interdisait d’attribuer ce fait, tout à fait évident.
Au pays d’Israël, auquel je suis lié
Et désire le rester,
Pourquoi ne le dis-je que maintenant,
Vieillissant et avec mon encre ultime;
Israël puissance atomique menace
La paix déjà fragile dans le monde?
Parce qu’il faut dire
ce qui doit être dit maintenant, car demain il sera trop tard,
Pourquoi – déjà suffisamment incriminés comme Allemands –
Prendrons-nous le risque de devenir complices d’un crime
Annoncé, ou notre part de culpabilité
Ne pourra disparaître
Par aucune des excuses habituelles?
J’avoue: je ne me tairai plus
Parce que j’en ai assez
De l’hypocrisie de l’Occident et on peut espérer
que beaucoup se libèrent aussi de leur silence, et exigent
de l’auteur de cette menace avérée qu’il renonce
A l’usage de la force, et insistent
Pour que ces deux pays acceptent
Le contrôle permanent et sans entraves
Par une instance internationale
De la puissance atomique israélienne
et des installations nucléaires iraniennes.
Alors seulement, nous pourrions aider tout le monde, Israéliens et Palestiniens,
Et tous les êtres humains qui dans cette région
Habitée par la folie
Vivent côte-à-côte dans l’inimité,
A se détester réciproquement,
Et nous aider enfin nous-mêmes aussi.
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Günter Grass


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