A instabilidade das imagens em Short Movies, de Gonçalo M. Tavares
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O título Short Movies, de Gonçalo M. Tavares, indica a estratégia ficcional: as narrativas estão construídas como se narrassem curtas-metragens ficcionais ou a experiência do espectador delas. Deste modo, o projecto confronta duas formas de expressão cultural contrastadas: a do audiovisual e a da escrita. De um lado, imagens e sons; do outro, palavras escritas.
Esta análise pretende tão-somente verificar como o autor criou textos verbais que pretendem expor experiências audiovisuais. Dada a relação complexa entre a escrita e a imagem, trata-se de uma tentativa interessante e rara. Estas notas não tomam em conta o contexto (o autor, a sua obra anterior), nem a teoria da literatura, limitando-se a procurar os processos estilísticos utilizados por Gonçalo M. Tavares ao criar em textos literários um universo relacionado com o audiovisual. Na análise, utilizo algumas contagens de elementos presentes nos textos, esperando que o meu leitor aceite que procurei o rigor nos números.
O título do livro, em inglês, remete para um género próprio do cinema, a curta-metragem. Um ou outro texto refere ou sugere a criação televisiva. Deste modo, o livro apresenta ficções a partir do audiovisual em geral. O título do livro sugere ao leitor que os textos correspondem a curtas-metragens, ou à visão dessas curtas-metragens, embora nada indique que a narrativa corresponda ou a uma parte ou à totalidade da curta-metragem inventada no texto. Na verdade, nada há que indique que se trata de curta-metragens, pois o que temos nas mãos é um livro de estórias, de pequenas estórias, cuja apropriação de processos cinematográficos transforma nos “pequenos filmes” do título. O processo cria um distanciamento, pois há um intermediário inesperado entre o narrador e o leitor: um suposto filme ou vídeo. Em vez de escrever “Um monte de destroços, múltiplas casas completamente desfeitas”, o autor escreve “Vemos um monte de destroços”, etc., sobrepondo à intermediação literária perante a realidade narrada a intermediação de um ecrã.
O livro é formado por 69 textos ficcionais curtos ou muito curtos: trinta ocupam uma página, 38 passam para a página seguinte e apenas um ocupa três páginas. Alguns dos textos foram antes publicados na imprensa (Gonçalo M. Tavares, Short Movies, Lisboa, Caminho, 2011, 152 p.). Com a devida vénia, aqui reproduzo uma das mais curtas “curtas-metragens”, para permitir ao leitor destas notas uma melhor compreensão da análise que se segue:
A Máscara (p.93)
O homem com uma máscara de cão. Ao seu lado, uma bailarina de sete anos. A menina faz as suas habilidades.
Estamos numa sala de balé. Vemos o espelho e no espelho vê-se a sala toda. Está vazia. Apenas um homem com a máscara de cão e a menina de sete anos que faz os gestos de balé, acompanhando, com rigor, a música. A cada pausa, a máscara de cão bate palmas. Deve ser o pai da menina, pensamos. É uma exibição da menina e o pai vai batendo palmas, pensamos.
Mas, de qualquer maneira, porquê aquilo?
Um dos processos de ligação de todos os textos do livro à experiência audiovisual é o uso pelo autor/narrador do presente do indicativos, de modo a assemelhar o texto à vivência do espectador audiovisual, do estar a acontecer numa tela neste momento, agora. A presentificação da narrativa contrasta com o modo passado, mais frequente na ficção.
A abertura de muitos dos textos omite o verbo, como no caso acima. Eis mais dois exemplos: “Uma bomba de gasolina, de noite.” (p.55); “Imagens antigas da corrida ao ouro.” (p.107). Este processo visa acentuar a pressa de descrever o que se está a ver na tela, isto é, visa transparecer pela escrita a experiência do espectador quando vive o filme ou o vídeo. Dado que no audiovisual a dimensão tempo se sobrepõe à dimensão espaço na relação do espectador com a experiência que se lhe apresenta, Tavares adoptou um estilo rápido, directo, enxuto, e caracterizado pelo presente. A omissão do verbo acentua a vivência do presente.
A vivência do presente é acentuada pelo uso frequente do advérbio de tempo agora nas descrições. Este advérbio é fundamental na comunicação radiofónica e televisiva para acentuar o directo e o ao vivo. O autor de Short Movies poderia prescindir do advérbio, dado que o verbo no presente já indicava essa qualidade, mas, tal como a comunicação audiovisual, quis acentuar, por vezes com o mesmo excesso desse tipo de comunicação. Em alguns pequenos textos, agora surge repetidamente. Em diversos contos aparece associado a uma forma do verbo ver, em especial “agora vemos”, sublinhando a passagem do tempo presente e a substituição da descrição anterior por uma nova descrição, dando conta da montagem de “planos” ou “cenas”. A percepção passada ao leitor de que “estamos sempre a ver” (p.149) alguma coisa a passar à frente é constante ao longo do livro.
Os textos começam no presente, mas têm referências ao passado, muitas vezes incertas, dado que o narrador-espectador não as “viu” nem as “vê”, apenas vê o presente da narrativa “cinematográfica”, “vê” aquilo que acontece agora no “ecrã”. O tempo futuro corresponde nos textos a uma suposição do narrador a respeito do que acontecerá depois das “imagens vistas”; não faz parte do “filme” descrito, mas do texto a seu respeito. Transmite uma instabilidade da posição do espectador que acrescenta a sua interpretação sobre uma não revelada continuação da narrativa.
Duarte Amaral Netto, Vendas Novas, 2009 |
Na quase totalidade dos textos o sujeito narrador é plural. Diz: “seria bom vermos”, “agora vemos”, “pensamos”, “não percebemos”, etc. Este procedimento estilístico associa o leitor à condição do narrador, isto é, à condição de espectador: “nós vemos” significa que o leitor e o narrador partilham a mesma condição de espectadores fictícios da ficção do autor. Serve o processo também para colocar o narrador junto de alguém que assiste com ele a alguma coisa num ecrã. Além disso, o plural considera uma pluralidade de espectadores do texto, implicando o leitor. Essa intenção atinge o auge precisamente no final do último fragmento, quando o autor se dirige directamente ao leitor que esteve como que a seu lado ao longo do livro: “E tu, por exemplo, se estivesses na mesma situação”, acrescentando depois “Eu sim, digo, eu respondo que sim” (p.152). Ao escrever quatro dezenas de vezes “nós vemos” o autor solicita a imaginação visual do leitor. Diz-lhe que vê o texto. E que o faz colectivamente, como se o leitor individual fosse não só um espectador dos textos, mas um espectador entre um colectivo de espectadores, como acontece na experiência audiovisual partilhada do cinema e da televisão.
A curta-metragem permite, quando utilizada como pretexto de escrita, sugerir uma criação fragmentária de curta-narrativa ou micro-narrativa. O fragmento, ou segmento autónomo ou autonomamente apresentado e visto, é hoje uma entidade fundamental do audiovisual. A televisão é concebida quase integralmente como uma sucessão de fragmentos; o YouTube, o sítio que com maior êxito consagra o vídeo na Internet, é uma galeria fragmentária; e o próprio género de que o autor faz neste livro uma espécie de pastiche, a curta-metragem, é um género em crescimento pelo apelo do modo fragmentário junto da audiência. O autor optou claramente pelo fragmento narrativo, focando-se em momentos tornados significativos pela atenção que lhes é dada.
Porque sugere o título e os próprios textos mais fragmentos de cinema do que de televisão? Não terá de ser pelo facto de o cinema ter o estatuto artístico que normalmente não se reconhece à televisão. Parece-me que o autor não hesitaria um segundo em simular televisão se isso servisse os seus objectivos. Mas recordemos que a televisão é, ontologicamente, uma palradora. A televisão está sempre a falar, mesmo quando não é necessário. Tal deve-se a que a palavra é mais barata do que a imagem, se assim o posso dizer. Fazer vídeo com ênfase na imagem implica mais orçamento e mais esforço, não só da produção e realização, mas mais esforço do espectador, que deve substituir a visão desatenta ou parcial, pela visão atenta, como no cinema. Portanto, a totalidade dos géneros televisivos é enfaticamente faladora, como os talk shows, os daily shows, os noticiários, as telenovelas, os programas de humor, os concursos (muitos deles baseados em jogos ou conhecimento ou descoberta de palavras ou frases, ditados populares, etc.), etc. Mesmo os programas que, na sua origem, existem na ausência da palavra — como os desportos — são apalavrados pela televisão, através de comentários sobrepostos, já para não falar em todo os conteúdos parasitas do desporto, assentes quase exclusivamente no discurso verbal.
O autor de Short Movies não tinha interesse em assemelhar as suas narrativas à verbalização excessiva da televisão, pois perderia, de algum modo, o controle do texto, entregando-a à “maneira de ser” televisiva. Os textos arriscavam-se a ser palavras sobre palavras. Só a visualidade do cinema permitiria ao autor ser em palavras o que o cinema é em imagens. A visualidade do cinema permite-lhe que não tenha de competir com as palavras associadas a imagens. O autor destas “curta-metragens” é o único dono da palavra.
Em consequência, Short Movies não tem uma única narrativa com discurso verbal directo das personagens e, portanto, não há qualquer diálogo. Uma personagem profere algumas palavras, quatro palavras: “Você tem de comer” (p. 140). Raramente sabemos que há palavras proferidas pelas personagens. Muito mais do que a indicação de que houve por parte delas alguma ocorrência de discurso verbal coerente, o que mais surge nas narrativas são gritos, risos ou outras formas de comunicação oral não-verbal. Apesar de só o narrador ser dono da palavra, de as personagens não falarem, estas curtas-metragens não são mudas, ou melro, não são silenciosas. O som está muito presente em alguns textos. Por exemplo: “é nessa altura que esse homem subitamente grita - e pede ajuda” (p.13); “escuta-se um enorme ruído; são aplausos, sim, mas o par parece estar com medo; não agradece” (p.20); “a velha mulher sorri, primeiro, depois ri, ri muito, não consegue parar de rir. Só a vemos a rir” (p. 15). Há gritos em quatro textos, e ruídos em pelo menos seis. Por exemplo: “ouvimos o ruído deles; ruído incerto que mostra …” (p.74). Os “sons”, no texto, acrescentam compreensão do narrado, mas não asseguram certezas definitivas, porque as personagens não se exprimem verbalmente.
Se alguma personagem diz alguma coisa, o autor impede-a de falar em discurso directo. Não chegamos a ouvir as personagens que falam. As palavras que dizem - o leitor nunca sabe quais ao certo - são compensadas por gestos, como em “A Louca” (21): “O fotógrafo diz que nem o melhor actor consegue ter a expressividade do rosto de uma louca. E por isso não pára. Mesmo quando a louca diz não com a cabeça, não com a boca e, por fim, não com o dedo.” Para os textos serem textos, serem palavras, os short movies não poderiam ter palavras senão as do autor/narrador.
Duarte Amaral Netto, Piscina de São Cosmado, 2009 |
Short Movies tem uma sugestão de televisão já quase no final quando menciona “A Equipa de Reportagem” (137-8). Mas a curta dimensão das estórias não pretende sugerir o zapping do espectador da televisão, pois isso assemelharia a sucessão de narrativas ao processo de mudança de canais e, portanto, a um media que o autor não quer invocar. A palavra filmes está no título do livro também para afastar essa possibilidade de leitura.
Como são estes textos fragmentos de “cinema”, como ocorre em palavras o carácter da imagem sem palavras?
Um dos elementos definidores da imagem é a instabilidade dos seus signos quanto ao significado. Os signos visuais não têm a precisão de significado dos signos verbais. Uma imagem às vezes vale por mim palavras, mas uma imagem precisa sempre de mil palavras para ser explicada. Por isso, as imagens são acompanhadas de títulos, legendas, textos. O cinema mudo não prescindiu da palavra, com os seus entretítulos. Na publicidade, a imagem precisa absolutamente da função de ancoragem dos significados pela palavra e prescinde absolutamente dessa função de ancoragem quando o publicitário quer sugerir mais, demais, ou mesmo quando quer mentir.
Ora, o que interessou ao autor foi precisamente a instabilidade de significados das imagens. O narrador, a que os leitores são associados como espectadores imaginários, está em situação de insegurança de compreensão na esmagadora maioria dos textos. Uma coisa é o que se vê/lê num fragmento, outra o que fica por se entender. É quase sempre certo o que se denota, o que se “vê”, o texto está seguro de o transmitir bem, mas é incerto o que conota, o que significa. O narrador apresenta uma ou mais hipóteses de explicação para o que se vê/lê nas primeiras frases da narrativa. Essas hipóteses são-no positivamente, não desfazem de imediato a instabilidade dos signos “visuais”.
Para transmitir essa instabilidade — e reforçar ao mesmo tempo o trompe l’oeil da leitura do texto enquanto visão da narrativa — o autor usa com enorme frequência “talvez” e outros vocábulos ou expressões transmissores de incerteza. A palavra talvez aparece 16 vezes. Por exemplo: “Aguarda qualquer coisa. Uma ordem, talvez.” (p. 31). Há três narrativas em que ocorre duas vezes, uma em que surge três. Como expressões alternativas significando incerteza do que se vê/lê, o autor usa formas verbais do verbo parecer (13 vezes parece, parecem, pareciam) e do verbo perceber (13 vezes percebe e percebemos). A incerteza perpassa ainda pelas expressões ou vocábulos como se (oito vezes), deve ser, deve ter, devem estar (cinco vezes), não sabemos (três), provavelmente, impossível saber ou ter a certeza (duas), e ainda não os reconhecemos, terá perdido, julgamos que, fica a sensação, etc.
Duarte Amaral Netto, 3 de Setembro de 2009 |
As “imagens” transmitem insegurança de significados ao observador. Pode mesmo acontecer que uma narrativa não faça sentido, apesar do que se viu: “Não faz sentido porque vimos …” (p.103). Só o pensamento do observador lhe pode dar a certeza do significado do que viu: “Depois ter-se-á passado isto (mas é impossível ter a certeza)”; “e toda a gente que está a ver a situação pensa (tem a certeza) que, no dia seguinte, a menina já não conseguirá rezar da mesma forma.” (pp.115).
Quando, em raras ocasiões, quer transmitir a ultrapassagem da incerteza das “imagens”, o autor reforça em diversas ocasiões a afirmação com um enfático “sim”: “E sim, é isso” (p.107); “Só aí se percebe que, sim, é uma arma verdadeira” (p.71).
Para sugerir ao leitor a sua cinematografia verbal, o autor recorre amiúde ao vocabulário da imagem e instrumentos da sua criação. Há referências constantes ao processo fílmico com o uso das palavras ou expressões plano, imagem, imagens, fotografia, imagem a cores, vídeo, câmara de filmar, perspectiva. A câmara é referida quatro vezes num dos textos (pp.105-6). É também verbalizada a descrição das cenas como se fossem planos de um filme. O primeiro “plano”, isto é, a primeira parte da cena descrita, é mais instável no significado, “obrigando” à passagem a um segundo “plano: “O plano abre-se. Vemos para quem ele está a fazer aquilo” (p.15).
A escolha de planos também serve para acentuar a incerteza dos significados. Ou o plano é demasiado aberto ou é demasiado fechado para permitir ao espectador dos textos entender a intriga das pequenas estórias. Por vezes, a insegurança do ver resulta do ponto de vista da “câmara”: onde ela está mostra isto e aquilo (“quando vistos daqui”, p.62), mas não permite entender bem as situações: “Não vemos o que eles vêem” (p.36). As “imagens” tornam-se um pouco mais compreensíveis quando a câmara opta por outro ponto de vista: “Depois a câmara de filmar afasta-se um pouco”; “Voltamos à menina e agora percebemos” (p.99).
Deste modo, a dimensão do plano visual descrito permite ao autor contrariar a própria intenção dela quando usada no cinema narrativo canónico: mostrar algo mais de perto, ou mais afastado, para chamar a atenção para um detalhe ou para um contexto no âmbito da narrativa. Aqui, a dimensão do plano é em geral um empecilho ao entendimento da cena descrita. O autor/narrador, dono da palavra que descreve, é quem possibilita ou impede ao espectador/leitor a possibilidade de se acercar de um significado para a cena.
Os planos formam uma sequência, a soma dos mais pequenos fragmentos, indicada em alguns casos por expressões como “agora vemos” ou “depois vemos”, no sentido de isto depois daquilo. Estas expressões ou outras com a mesma intenção ocorrem repetidamente em alguns textos. A apresentação sequencial dos planos, que no audiovisual narrativo canónico visa criar uma narrativa lógica, é usada nestes textos para criar instabilidade de significados, situações “ilógicas” nunca resolvidas. A montagem não resolve as interrogações do leitor/narrador/espectador acerca do que está a passar. “Mas não sabemos mais nada desta história” (p.49), diz um texto. Outro: “é isso que eu vejo” (p.67). E outro ainda: “é algo que não sei, só estou a ver” (63).
Outro processo cinematográfico (mas antes disso literário) que o autor torna consciente nos textos é o do ponto de vista e da sua mudança. O ponto de vista da narração é transmitido como o ponto de vista do “filme”, não o esperado na narrativa. A preposição adversativa no início desta micronarrativa indica de imediato uma instabilidade na interpretação da imagem: “Uma janela, mas vista de dentro de casa.” (p.53). O ponto de vista surge no título de “Visto de Helicóptero” (61-2), narrativa que termina com estas palavras: “o desespero e a tranquilidade parecem ser, aliás, a mesma coisa, quando vistos daqui.” O ponto de vista é referenciado, tornado consciente, mas o autor não chega a nomeá-lo por essa expressão. Diz apenas “o ponto”: “mesmo essa lengalenga não consegue conduzir a câmara até ao ponto mais importante - o ponto onde ficaríamos satisfeitos, onde encontraríamos o segundo sapato” (p.131-3).
Em qualquer caso, o ponto de vista é o de uma câmara, personagem que ocorre em alguns textos, como “A Equipa de Reportagem” (137-8) e principalmente “O Sapato” (131-3). Neste, a câmara decide procurar o sapato que falta à mulher: “ali vai o olhar da câmara”, “a câmara a fazer a boa acção de escuteiro passa pelos vários bancos da igreja”. A câmara liberta-se enquanto personagem, libertando, também o narrador do ponto de vista dela, pois passa a descrever a câmara em busca de alguma coisa: “Mas eis que ela, a câmara de filmar, não a mulher - sai esbaforida (...) como se finalmente se tivesse lembrado de algo determinante”. Quando encontra o que procurava “o processo está concluído”, isto é, o processo literário também chega ao fim. A duplicidade de pontos de vista - o do narrador e o da câmara de que ele se libertou - obrigam a uma duplicação do texto: é o maior, nas suas curtas três páginas.
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Duarte Amaral Netto, Feriados de Junho, Maria Luísa, 2010 |
Nenhum dos códigos técnicos e cinemáticos do audiovisual parece resolver a incapacidade das “imagens em movimento” de ganharem consistência narrativa no texto. No pequeno conto que reproduzi acima, as “imagens” (ou seja, as palavras que descrevem imagens) são bastante explicativas, mas o autor não quer que as entendamos ou que lhes possamos atribuir alguma lógica habitual, pois termina perguntando: “Mas, de qualquer maneira, porquê aquilo?”
Em resumo, o autor inverte o processo da adaptação do livro ao cinema: aqui, adapta um cinema (inventado) ao livro, em brincadeiras que desconstroem as técnicas da narrativa audiovisual. As técnicas da narrativa escrita dizem-nos que as imagens criam instabilidade de significados, mas é ela mesma que a cria, usando a desancoragem de significados das imagens como matéria para a escrita. Tudo são fragmentos e fragmentos dentro de fragmentos. Vê-se, mas não se entende e só se entende o que não se vê. Os “filmes” não incluem discurso verbal porque o único texto verbal possível é este, o que brinca com as imagens em movimento, abusado delas paracriar um universo alternativo, literário. Não há outro texto senão este. O único usufruto possível dos pequenos “filmes” é o da própria narrativa literária, isto é, o próprio texto das micro-narrativas. Ele é a única existência.
Eduardo Cintra Torres
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