quarta-feira, 23 de maio de 2012

Os helicópteros de Steinstücken.

.
.
.
A saída de Steinstücken, 1964


Steinstücken integrava administrativamente Berlim desde o século XIX, mas ficou separado do território da cidade por não mais de 100 metros. Era o suficiente para se tornar um enclave. Aquando da definição dos territórios administrados pelos Aliados, ficara a pertencer à parte ocidental da cidade. Um enclave no território da República Democrática Alemã (RDA). Umas centenas de metros quadrados de terreno, com algumas casas e seiscentos residentes. Em 1952, forças russas chegaram a ocupar o enclave durante cinco dias, mas os americanos retaliaram contra interesses soviéticos em Berlim ocidental e o Exército Vermelho retirou.
Desde então, Steinstücken estava em paz e os seus residentes, mas só estes, beneficiavam de livre passagem pelo território da RDA para aceder a Berlim. Na prática, na fase que se iniciou em 1961, foram os únicos cidadãos ocidentais que podiam entrar e sair livremente de um território pertencente ao bloco soviético.
De facto, em Agosto de 1961 a edificação do Muro de Berlim dividiu as duas partes da cidade, mas não se estendeu a Steinstücken. Seria ridículo murar um território tão ínfimo para, fazendo jus à explicação das autoridades leste-alemãs, impedir os seus habitantes de penetrar na RDA para espiar.
Os residentes no enclave passaram a ter de se identificar sempre que se deslocassem para Berlim e de regresso a casa. Sendo residentes, não tinham de apresentar qualquer autorização. Já os próprios funcionários públicos berlinenses que quisessem ir a Steinstücken tinham de obter autorizações que só eram concedidas com muita dificuldade pelas autoridades da RDA.
Entretanto, aqueles que queriam fugir da RDA passaram a deparar com o Muro e com Vopos armados até aos dentes e com ordens para atirar a matar. Um desses fugitivos, impedido de entrar em Berlim ocidental e alvo de perseguição, teve a clarividência de se abrigar em Steinstücken. Para o recuperar, os agentes da Volkspolizei  ameaçaram entrar no enclave. A possibilidade de Vopos invadirem um território sob administração americana alarmou muita gente.
Gerou-se um impasse: a polícia leste-alemã fazia tenção de entrar, mas não se atrevia; o comando militar norte-americano, pelo seu lado, não arriscava transportar para Berlim o refugiado.
O líder da RDA, Walter Ulbricht, tinha decidido erigir o Muro para neutralizar a cidade. Mas, para afirmar a sua autoridade, quis fazer mais: a partir de 21 de Setembro, a polícia leste-alemã começara a controlar todos os veículos americanos que circulassem pela via aberta que lhes permitia chegar a Berlim ocidental. Todos os militares americanos tinham direito a passar. Assim, para aumentar a pressão, os Vopos começaram a mandar parar os veículos claramente identificados como pertencendo às forças armadas norte-americanas. Faziam sair os soldados não fardados e recusavam-se a deixá-los prosseguir. Por vezes interrogavam-nos ou mantinham-nos detidos durante horas.
Um dos principais objectivos da liderança leste-alemã era minar a confiança dos berlinenses, que podiam ver a forma como os seus protectores americanos eram tratados. À passividade durante a construção do Muro, à impotência perante os fugitivos que eram baleados e agonizavam junto ao Muro, juntava-se agora a humilhação das forças ocidentais. No momento em que a União Soviética queria negociar com Kennedy um tratado que, entre outras coisas, definisse o destino de Berlim como cidade livre, sem vínculos ao Ocidente, o moral dos berlinenses encontrava-se no ponto mais baixo.
Em Steinstücken, o impasse prosseguia. A hesitação americana tinha a ver, justamente, com a questão da entrada em Berlim: se os Vopos mandassem parar o veículo militar, iriam identificar todos os que nele se encontrassem sem farda. Identificariam o refugiado e, sendo um cidadão da RDA, teriam direito a detê-lo e a levá-lo consigo. Mas a humilhação para o Ocidente - e, sobretudo, para os Estados Unidos - seria insuportável. Por outro lado, impedir a intervenção dos Vopos seria ilegal. Pior, poderia levar a uma escalada entre as forças norte-americanas e russas no único lugar onde elas estavam frente-a-frente, sem nada a separá-las: Berlim.
.

John Kennedy e Lucius Clay, 15 de Setembro de 1961.
Quatro dias antes de o general chegar a Berlim.

.
O general Lucius Clay tinha chegado a Berlim dias antes, a 19 de Setembro. O Presidente Kennedy tinha-o escolhido como seu representante pessoal. Era um sinal: Clay tinha sido o governador da zona americana e fora o principal responsável pelo abandono do Plano Morgenthau. A criação da República Federal Alemã em 1949 fora, desde 1945, o seu objectivo. E os berlinenses adoravam-no como o seu salvador: fora ele quem organizara a ponte aérea que permitira suportar o bloqueio decidido por Estaline em 1948. Se o ditador fizera do bloqueio um teste à determinação ocidental, a resposta então dada fora concludente.
Agora, face à ameaça soviética, o general Clay era visto como um «falcão». A escolha de Kennedy pretendia ser mais do que um aviso sério ao Kremlin. Na verdade, Clay era o americano que mais de perto trabalhara com os russos. Negociara com eles vezes sem fim. Sabia como eles pensavam. E compreendera que a principal ameaça não vinha de Moscovo, mas de Berlim Leste.
O general Lucius Clay aproveitou o caso de Steinbrücken para mostrar que tinha regressado a Berlim e que as coisas iam mudar. Perante a agressividade dos Vopos e a hesitação do comando militar americano, decidiu agir ele próprio. Ordenou que um helicóptero fosse colocado à sua disposição «para uso pessoal». Acompanhado apenas por um assessor civil, levantou voo e deu instruções ao piloto para aterrar em Steinbrücken. Permaneceu aí menos de uma hora e regressou a Berlim ocidental. Com o refugiado.
Os guardas leste-alemães ergueram as armas quando o helicóptero passou por cima deles, numa pretensa demonstração de força. Mas não se atreveram a disparar.
Mal chegou ao seu gabinete, Clay comunicou ao Presidente o que fizera. Sabendo que a maior parte dos conselheiros de Kennedy criticaria a sua acção, considerando-a provocatória, terminou afirmando: «Não receio uma escalada.»


Chegada de helicópteros a Steinstücken, aqui

-
-
Berlim pudera resistir ao bloqueio porque era suficientemente grande para ter três aeroportos. Agora, Clay demonstrara que um helicóptero podia aterrar em qualquer parte e que ninguém seria deixado para trás. Na primeira ocasião em que Lucius Clay apareceu em público, os berlinenses aplaudiram-no e vitoriaram-no: os americanos não nos abandonarão.

José Luís Moura Jacinto
.
.
.
.
Pás de hélice, erguidas em Steinstücken.
Memória dos dias dos helicópteros.


Nos tempos do Muro, engenheiros americanos construíram
um helicóptero num parque infantil em Steinstücken.
Ainda hoje existe (aqui)

Sem comentários:

Enviar um comentário