domingo, 9 de dezembro de 2012

A última ceia.

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Nos estados norte-americanos onde se aplica a pena de morte – não sei se em todos –, é norma, legal ou costumeira, conceder-se ao condenado o direito de escolher o menu da sua última refeição. É um privilégio pérfido permitir que alguém que irá morrer dentro de instantes se despeça da Terra ingerindo alimentos que de nada lhe irão valer. Não sei porque fazem isto. Talvez se trate de um qualquer arcaísmo bárbaro, como a própria pena irrevisível que dali a horas ou minutos irá ser aplicada. Estranhamente, a derradeira refeição dos condenados assemelha-se à Última Ceia dos Evangelhos: aquilo que comem, como Cristo na Ceia, não tem qualquer valor do ponto de vista nutricional ou alimentar, não serve para dar ao corpo energia, vitalidade, calor, seja lá o que for. Passado pouco tempo, aquela carne que se alimentou deixará de ser carne, carne viva. Esta é, provavelmente, a única refeição do mundo que se destina à mais pura satisfação dos sentidos e do pecaminoso instinto da gula. Em todas as outras coisas que comemos, mesmo que por mero deleite de gourmandise, há algo que sobra e que resta, que se incorpora nas vísceras e que traz qualquer algo, bom ou mau, ao físico que permanece vivo. Aqui, não. Nada do que se come terá qualquer utilidade. Dos relatos das execuções, é impressionante a enorme quantidade de comida que os condenados geralmente deglutem. É certo que os americanos ingerem, em média, quantidades de comida que nos confundem a nós, europeus. Haverá alguma relação entre obesidade obscena, a pulsão da junk food e a pena capital? Será esta a típica american way of death?
O fotógrafo neozelandês Henry Hargreaves, com estúdio em Brooklyn, NYC, decidiu fazer reconstituições daquilo que os condenados à morte comem. Não sei se isto é «arte» no sentido convencional do termo (aliás, nem sei o que é sequer o «sentido convencional» da arte...). Em todo o caso, creio que se pode afirmar, com alguma segurança, que existe uma tendência, cada vez mais marcada no mundo das artes (e no da fotografia, em particular), para se desenvolverem «projectos». Antigamente, os fotógrafos faziam fotografias; hoje desenvolvem «projectos». Elliott Erwitt, Cartier-Bresson, Robert Frank e tantos outros captavam imagens. Havia diversidade de géneros e de estilos, como é óbvio, dedicando-se uns ao retrato, outros à paisagem, uns ao fotojornalismo e à guerra, outros à moda e ao conforto do estúdio. Agora, cada vez mais, a massificação dos fotógrafos obriga a que cada um se singularize e distinga. Mesmo o facto de o planeta inteiro estar ao alcance da mão faz com que aquilo que nos poderia fascinar em imagens de um Cartier-Bresson, por exemplo, esteja ao acesso de qualquer jovem, amador ou profissional, que consiga meter o equipamento necessário no saco para uma viagem low cost. A Internet e toda a recomposição do modo de exposição do trabalho de cada um também aumentaram a tendência para criar e desenvolver «projectos». Trata-se de uma pura constatação, sem quaisquer laivos nostálgicos. Uns vão à Bósnia em busca de exumações de cadáveres, outros concentram-se durante dois ou três anos numa ideia qualquer. Depois, expõem o seu trabalho e ficam conhecidos como «aquele que fotografou as casas dos pedófilos», «o tipo que fez as crianças dos orfanatos romenos». Aqui, Henry Hargreaves reconstituiu as refeições dos condenados à morte. O que é preciso é uma ideia, uma ideia com impacto, e depois reproduzir o leit-motiv, algo que tem muita influência dos blogues, da Net, etc. O projecto de Hargreaves, como muitos dos «projectos» contemporâneos, só vale pela originalidade da ideia-base. Neste caso, colocar a imagem de um prato, de um tabuleiro com a comida solicitada pelo condenado, e, como legenda, alguns sinais identificadores: o nome, a idade, o Estado, os crimes cometidos, a forma da execução e, logo abaixo, uma sumária descrição do cardápio. É perturbador, sem dúvida. Porque terão querido comer aquilo e não outra coisa? Ou coisa nenhuma, como aconteceu com Angel Diaz, na última das imagens mostradas?
Isto trouxe-me à memória uma imagem que me acompanha há anos. É muito conhecida: a execução na cadeira eléctrica de Ruth Snyder (que matou o marido à sétima tentativa...), na prisão de Sing Sing, em 1928. A história desta imagem é também conhecida: o fotógrafo Tom Howard (1893-1961) captou aquela que então foi chamada «a mais famosa fotografia tablóide da década» graças a um dispositivo engenhoso, que prendeu e escondeu no tornozelo e fez accionar no momento certo. Esta é talvez das imagens a que melhor se aplica a ideia de «instante decisivo», tanto mais que o engenho só permitia a Howard tirar uma fotografia. A máquina adquiriu tal fama que está hoje em exposição aqui, no National Museum of American History, do Smithsonian. Isto, note-se, apesar de as autoridades terem tentado, sem sucesso, acusar criminalmente o repórter e o jornal para que trabalhava, o New York Daily News, que no dia seguinte à execução fazia manchete com a terrífica fotografia, encimada pelo cabeçalho, em letras garrafais: «DEAD!»  Durante muitos anos, exigia-se às pessoas que assistiam às execuções que levantassem os braços no «instante decisivo», para que nenhuma repetisse o acto de Howard.

 

Tom Howard, montando o seu dispositivo fotográfico


 
 
A execução de Ruth Snyder, captada por Tom Howard
 
Não sei porquê, talvez pela posição sentada, talvez pelo movimento, talvez pelas evocações sombrias, associo a fotografia de Howard a alguns quadros de Bacon, nomeadamente a Study after Velázquez’s Portrait of Pope Innocent X (1953) e às muitas «variações» que Bacon fez em seu redor.
 
 
Francis Bacon, Study after Velázquez’s Portrait of Pope Innocent X (1953)
 
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Já agora, e para concluir, às vezes pergunto-me se não haverá alguma desmesura e alguma húbris neste tratamento da violência, da morte, uma inconsequente busca insana – e pouco sana – do que é «diferente» no pior sentido. Estas palavras, assim ditas, parecem demasiado cândidas. Mas se olharmos para o trabalho de Hargreaves, e se olharmos reflectindo um pouco, talvez concluamos que aquilo não é nada. Como não é nada o «projecto» de Richard Barnes, um fotógrafo de que já falei no Malomil, e de que gosto, que andou a fotografar a cabana onde se tinha refugia Ted Kaczynski, o Unabomber. É até possível comprar kit's  para fazer construções em cartão da cabana do Unabomber. Também é nada, ou menos ainda, um outro «projecto», que adquire contornos quase obscenos: Buildings of Disaster, da Boym Partners. Réplicas macabras, ao jeito de brinquedos infantis ou objectos de design, de edifícios que foram alvo de conspirações, catástrofes, atentados, etc.



Theodore Kaczynski



Richard Barnes, série «Unabomber»
 






 
 
 
Da série «Buildings of Disaster»
 





Não digo isto por respeito a convenções estéticas ou por uma tentativa de condenação moral. Acho é tudo demasiado «fácil» e «previsível» na exposição do grotesco. Trata-se de uma banalização do mal que raia a idiotia. A arte ocidental sempre lidou com o grotesco – e, a propósito, há uma exposição fabulosa em Málaga, no Museo Picasso, que aborda o tema, El Factor Grotesco. Em comparação, isto não é nada, é patético de tão pateta. O mesmo acontece, aliás, com este texto.
 
 
António Araújo
 

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