segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A noite em que os anjos cantam.

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Em Dezembro de 1914, o papa Bento XV pediu aos contendores que aceitassem uma trégua: "Que as armas fiquem em silêncio, ao menos na noite em que os anjos cantam".
Os beligerantes rejeitaram o apelo, mas os combatentes não. Calcula-se que cerca de cem mil soldados estiveram, de alguma forma, envolvidos em cessações de combates e, mesmo, em confraternizações ao longo da frente.
E não é mito, houve mesmo jogos de algo parecido com futebol. Não era bem um jogo, conta um dos participantes: havia uma bola, cerca de cinquenta para cada lado e chutos para a frente - o célebre kick and rush. Basicamente, trata-se da tática de chutar a bola e correr o máximo que se possa que deu fama a muitas equipas inglesas de outros tempos. O jogo, se tal nome se pode dar ao acontecido, terá durado trinta minutos e não terá havido nem entradas a matar nem lesões sérias entre os participantes. Estavam-se a guardar para os dias seguintes.
Depois, chegaram ordens para por fim às celebrações e os oficiais impuseram-se. Houve, mais tarde, quem quisesse refazer o evento para refazer a história. A II Internacional nunca se recompôs do choque que teve quando assistiu ao entusiasmo, alimentado por um fortíssimo espírito nacionalista, com que os operários de todos os contendores seguiram para a batalha em agosto. Agora, era possível recuperar a ideia de que os soldados preservavam afinal a consciência operária e o correspondente internacionalismo proletário. Os malandros dos oficiais, pela brutalidade com que puseram fim à confraternização, ameaçando com penas fortíssimas, demonstrariam que os privilegiados é que tinham imposto aos seus homens, à força, uma atitude guerreira. Na verdade, há inúmeros relatos de participação nas confraternizações de oficiais, sendo certo que os estados maiores é que reagiram de forma dura, porque temiam que assim se pusesse em causa o esforço de guerra.
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Aquilo a que se assistiu nada tinha a ver com consciência de classe. Tinha apenas a ver com a natureza humana. Muitos anos depois, o cientista social Robert Axelrod – em The Evolution of Competition (1984) – serviu-se justamente deste exemplo para explicar como, nas situações mais inverosímeis, nascem formas de colaboração entre os homens. Por outras palavras, Axelrod põe em causa aquilo que Immanuel Kant designava por “sociabilidade insociável” dos homens, a inclinação para se agruparem convivendo a todo o tempo com a tendência para a dissolução da união. No grupo, onde o homem tem de viver, sentir-se-ia mais homem, mas no isolamento afirmaria a “propriedade insocial de querer dispor de tudo a seu gosto”. Afinal, cada homem aspiraria secretamente a viver com os outros como se vivesse sozinho.
Ora, se fosse, assim, a vida em comum seria altamente improvável. Contudo, nos momentos de necessidade, o homem revela o seu verdadeiro eu. E esse eu é um nós.  
É certo que há sempre quem o procure contrariar, e quem o faça da forma mais radical, pretendendo fundar-se num comunitarismo que, de tão arreigado, nega a natureza humana. Na peça do dramaturgo nazi Heinz Steguweit – Petermann schließt Frieden oder Das Gleichnis vom deutschen Opfer (Petermann faz a paz, ou a parábola do sacrifício alemão) –, conta-se a estória de um soldado alemão que avançou, confiando na contenção dos inimigos em tempo de advento, e colocou um pinheiro na terra de ninguém, decorando-o com luzes de Natal. Os espectadores alemães podiam ouvir os belos cânticos alusivos entoados pelos camaradas dos soldados. De súbito, há tiros e o soldado cai. Mais tarde, os camaradas encontram o seu corpo e notam, "com horror", que os snipers inimigos tinham feito de cada luz da árvore de Natal alvo dos seus tiros. Assim se manipulavam os sentimentos dos alemães em 1933.
Na verdade, pouco interessa o que se disse depois: na noite de Natal de 1914 os anjos cantaram.
 
José Luís Moura Jacinto

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