Num
evento chamado Trienal de Arquitectura, decidiu-se que "urge estancar a
sangria do centro histórico da cidade". Compreende-se: sangria é uma coisa
mais de praia do que de cidade e mancha a calçada portuguesa quando derrama, e
fica ali a fruta toda a apodrecer e inclusive as velhotas podem escorregar e
partir o fémur. Mas parece que a sangria que querem parar não é a bebida, é em
sentido figurado a desertificação. Bastava o mínimo de coerência e estudo, ou
até ir de vez em quanto ao tal centro histórico da cidade, para se perceber que
não há qualquer sangria do centro histórico motivada pelo turismo, ou pelos
estrangeiros que vêm para cá viver, ou pelo investimento imobiliário. O que há
é precisamente o contrário, um vislumbre de vida e de viço. Durante as décadas
e décadas em que Alfama perdia população, ninguém quis trocar o conforto de
Telheiras pela realidade de Alfama. Alfama estava "esquecida em cada dia
que passa", como na música Alfama dos Madredeus, de 1995; ou como cantava
Mariza em 2003, uma Alfama "fechada em seu desencanto/ Alfama cheira a
saudade/ Alfama não cheira a fado/ Cheira a povo, a solidão/ Cheira a silêncio
magoado/ Sabe a tristeza com pão".
E
agora que Alfama é mais visível, que está na moda, que aparece na imprensa
internacional, que tem franceses com bom aspecto a irem ao pão de manhã e
miúdas giras a estender roupa, e casas recuperadas em que apetece viver quando
se olha da rua lá para dentro, agora que finalmente os moradores de sempre
conseguem rentabilizar as suas casas ou parte delas, melhorar as suas vidas, do
que se lembram é de vir pedir a intervenção do Estado e do município para...
"estancar a sangria" através de uma espécie de contratos de
associação no sector imobiliário para as zonas premium da cidade.
A
Trienal (que por acaso começou em 2007 com o tema "Vazios urbanos",
em que alertava, então mais acertadamente, para o êxodo de certas zonas da
cidade) não é caso isolado neste awakening
repentino, este momento-Alfama de que se acometeu subitamente alguma da nossa
mais ilustre intelectualidade. A reacção é tão estapafúrdia que só pode
explicar-se pelo remorso de termos sido individualmente e como povo cúmplices
do que se fez aos centros históricos das nossas cidades: um conjunto de leis de
arrendamento urbano criminosas, uma política pública de incentivo à compra de
habitação própria mancomunada com o sistema bancário em detrimento do
arrendamento e da reabilitação, em conjunto com uma quantidade de factores
imateriais como a obsessão pelos dois lugares de garagem e arrecadação, uma
preferência pelas tipologias novas a estrear, a ditadura dos acabamentos, o
fetiche do elevador. A tudo isto se junta um sistema urbanístico de
licenciamento camarário assente em leis até há pouco desfasadas, prazos
pornográficos de licenciamento para a reconversão urbana e corrupção.
E
como lida com o remorso o movimento Alfama-aos-portugueses? Quer resolver um
problema no momento em que ele começa a desaparecer com aquilo que foram as
suas causas históricas (rendas controladas, hiper-regulação, distanciamento do
mercado). O mais aflitivo é uma incompreensão das dinâmicas urbanas, uma
ignorância sobre Lisboa, um desamor pela cidade travestido de messianismo olisiponense,
um paroquialismo pretensamente erudito, um cosmopolitismo que se ficou pelos
Erasmus em Barcelona.
Fica
a sensação de que até há pouco menos de um ano muitos daqueles que hoje
reclamam Alfama, a sua Alfama, achavam que Alfama se chamava Santos – e não
digo Santos como a antiga freguesia –, achavam que se chamava Santos como na
frase "esta noite vou com a malta do atelier ali aos Santos
[Populares]" – e eram incapazes de encontrar Alfama sem Google Maps numa
manhã de Fevereiro. Alfama é assim uma ideia construída em cima das memórias de
um Woodstock anual de sardinha onde se apanhava uma bebedeira de música pimba e
de povo, antes de se voltar por mais 364 dias ao eixo Telheiras-Marquês,
triangulando pelo Bairro Alto-Lux aos fins-de-semana.
Estrangeiros
em Alfama? Liberdade de circulação? Turistas? Visitantes? Sim, mas com regras,
não é assim virem à maluca renovar um prédio que os lisboetas deixaram entregue
ao mijo de gato e aos ninhos de pombos, com uma viúva encarcerada num fétido
quarto andar sem elevador e com uma escada angulosa onde a mortalha só cabe ao
alto.
N’A Vida de Brian, Stan quer ser uma
mulher e que lhe chamem Loretta porque quer ter bebés. Diz que é o direito de
qualquer homem ter bebés. Francis apoia-o, mesmo que um homem não possa ter
bebés, tem de ter o direito a ter bebés, e que vão lutar por isso – é simbólico
na sua luta contra a opressão. Aqui é igual, não importa que nunca tenham
querido viver em Alfama, não importa sequer que não queiram viver em Alfama,
nem importa tão-pouco que podem viver em Alfama – o que importa é que se aprove
uma lei que lhes dê o direito a poder viver em Alfama e que exclua outros desse
direito. Como, porquê, por quanto tempo, para quê, nada disso interessa, nem
interessa o que pensam disso os residentes do bairro, nem os senhorios do
bairro, nem os proprietários – é uma coisa contra a opressão. É o direito
fundamental à habitação, um direito democrático à habitação.
E
eu também quero. É inconstitucional que o imóvel em Alfama com a referência
D:120611244-178 da Re/Max Expo não
seja meu, ou pelo menos que eu não possa lá viver um a dois anos. Não é justo.
É que eu nasci em Lisboa, e Lisboa aos lisboetas. E apetece-me mesmo poder
viver em Alfama. Não importa que eu nunca tenha feito nada para viver em Alfama.
Não importa que o apartamento custe milhão e meio de euros e eu não os tenha.
Que culpa tenho eu? Não importa que haja quem dê esse dinheiro pela casa, quem
tenha investido naquele prédio, que haja proprietários. O que precisamos é de
políticos com coragem, que defendam a Constituição com maiúscula e o direito
fundamental à habitação, o meu direito fundamental à habitação. Àquela
habitação. É que vinha mesmo a calhar aqui para os oito. São cinco quartos e
uma sala, 337 metros quadrados de arquitecto. E vista rio frontal.
João Taborda da Gama
(publicado originalmente no Diário de Notícias; no Malomil com autorização
do João - obrigado, um abraço!)
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