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A polémica em torno da
afirmação de José Rodrigues dos Santos de que a imprensa fez eco – “as origens
do fascismo estão no marxismo” (Público,
30-5-16) -, a propósito do seu mais recente romance, animou um pouco o debate
público nacional. Manteve-se relativamente civilizado, o que não é muito comum
na nossa tradição cultural. Alguma coisa boa resultou (serviu para
esclarecimento de alguns conceitos políticos e uns quantos factos históricos), muito
embora, no final de contas, o que a JRS parece ter importado terá sido apenas defender
essa sua afirmação inicial. Ora ela é precisamente a razão da polémica, como procurarei
explicar com a serenidade permitida pela distância geográfica. A minha pergunta
é: depois dos dados apresentados por todos os intervenientes, será mesmo que a
afirmação se pode manter?
Primeiro que tudo,
nunca vi uma afirmação semelhante em nenhum livro de história ou teoria
política, pelo menos dos autores que me habituei a respeitar. Então, a resposta
parece-me clara: só mesmo se tomarmos esses termos em sentido nada rigoroso,
tipo conversa de café, superficial e inconsequente, e, mesmo assim, só aplicada
ao fascismo italiano. Por exemplo, a hermenêutica literária, que hoje
escalpeliza muitos textos tradicionais apodando-os de machistas e racistas,
teve origem na hermenêutica bíblica levada a cabo sobretudo pelos biblistas
alemães do século XIX. Mas daí poderemos concluir o quê? Apenas que se trata de
uma ligação histórica contingente totalmente alheia aos precursores da referida
tradição hermenêutica. Numa sequência de eventos e influências díspares ao
longo dos tempos, um evento ou conjunto deles acaba desencadeando uma série de
outros em variadíssimas direcções por uma relação de sucessão, acabando o
evento inicial por ter muito pouco a ver com o ponto de chegada.
A questão da afirmação de José Rodrigues
dos Santos emerge quando a leitura dela estabelece implicitamente uma mais
estreita relação entre os dois termos: o fascismo faz parte da essência do marxismo.
O problema, pois, está nesse possível sentido implícito na frase. O autor dela
pode sempre reclamar não ter sido sua intenção estabelecer tão íntimo nexo, no
entanto, muitos leitores poderão sempre responder: Mas foi nesse contexto que a
entendi. E não sairemos daqui nunca mais. Seria preciso fazer-se uma sondagem
aos leitores perguntando-lhes: O que
significou para si essa afirmação de JRS?
Por mim, entendi-a como
querendo insinuar ser o fascismo uma consequência do marxismo, essa consequência
implicando que o fascismo está lá no embrião teórico do próprio marxismo.
Se essa leitura é legítima (eu
honestamente, repito, li assim), então há que averiguar. Impõe-se, portanto, uma
análise de conceitos e de movimentos políticos. Ela aliás foi feita – e muito
bem - por alguns dos intervenientes cujos textos chegaram até mim (António
Araújo e Francisco Louçã, Público, 30
e 31-5-16)
Mas queria acrescentar
algo: identifico na frase de JRS uma falácia clássica (o termo tem o sentido
técnico rigoroso de erro lógico) cujo nome ainda hoje circula pelo menos entre
historiadores, cientistas sociais e até mesmo advogados (nos tribunais).
Chama-se post hoc, propter hoc
(depois disso, logo por causa disso). Uma sequência de eventos pode constituir
apenas uma sucessão contingente sem o evento inicial ter qualquer relação de
causa-efeito com a conclusão. O marxismo, ao passar por uma série de situações
históricas, acabou nalgumas variantes que nada tinham a ver com as concepções
do seu criador, Karl Marx. Isso aconteceu e acontece constantemente na história
em todas as áreas. Um exemplo simples? A Inquisição. Não será necessário contar
aqui as suas origens e desenvolvimento. E todavia, seguindo a lógica subjacente
à afirmação de JRS, podemos criar uma situação paralela afirmando: a Inquisição
tem origem no cristianismo.
Compreende-se que, se
alguém tivesse feito tal afirmação, inúmeros cristãos e não-cristãos chamariam
a contas o seu autor. Ele viria
defender-se explicando como historicamente as relações de sucessão ocorreram.
Um pensante clássico, preocupado com o rigor lógico, porém, apontar-lhe-ia
logo: falácia do post hoc propter hoc.
A leitura benévola, porém, seria: Deixa andar, a frase é tão genérica que não
vale a pena perder tempo com ela. Contudo, muita gente se incomodaria se ela
fosse proferida por alguém com impacto entre os seus ouvintes.
(Um parênteses: a
afirmação de JRS, lida no sentido rigoroso, incorre noutra falha lógica
tradicionalmente apodada de sorites. De um termo passa-se para outro por
qualquer relação semântica, terminando-se com uma conclusão estapafúrdia. O
humor serve-se dessa técnica. Veja-se, por exemplo, aquela do filósofo acotovelando
acidentalmente um transeúnte que reage: Tem
Graça! O filósofo prossegue rua abaixo pensando consigo: Tem
graça? Graça do Senhor, Senhor dos Passos… Paços do Conselho… Concelho
de Ministros… Ministro da Guerra… Guerra Junqueiro…. Junqueiro… Junqueira de
Alcântara… Alcântara do Mar… Do mar à serra… Serra da Estrela… Estrelas tem o
céu… O céu é azul… Azul, tinta de escrever… Escrever para França… De França vêm
os bebés… Os bebés mamam… Mamas tem a vaca… A vaca tem cornos… Filho da mãe!
Chamou-me corno!)
Regressemos, todavia,
aos conceitos e à história. Muito embora JRS lembre que “nem os académicos se entendem sobre todas estas
definições e catalogações” (Expresso,
4-6-16), isso não implica que não valerá a pena tentarmos fazer alguma luz
conceptual sobre os termos em causa nesta polémica. Resumirei ao máximo
procurando ser tão rigoroso quanto possível.
Socialismo não
é sinónimo de marxismo. O socialismo precedeu Marx. Era fundamentalmente uma
doutrina política com base numa ética que valorizava acima de tudo a justiça
social. O marxismo incorporou o socialismo numa doutrina muitíssimo mais
abrangente. O marxismo é uma metafísica materialista, com uma lógica (a dialéctica
– daí o materialismo dialéctico), uma epistemologia (a ciência
empírico-positivista), uma filosofia da história (a luta de classes), inspirada
numa teoria económica anti-capitalista, com uma teoria política sobre a tomada
do poder (a revolução e a ditadura do proletariado), para a instauração de uma
nova ética: a socialista. Bastará lembrarmo-nos do socialista francês Proudhon,
autor do famoso A Filosofia da Pobreza,
e da resposta que Marx lhe deu no seu A
Pobreza da Filosofia. Quer dizer, Marx achava que o socialismo formulado por
Proudhon era de uma grande pobreza filosófica. A sua doutrina (Marx não se
intitulava marxista) instaurava uma nova maneira de propor o socialismo,
fazendo-o brotar de um complexo e genial sistema que tornava o advento do
socialismo algo inevitável.
Portanto, na
lógica de JRS, poderíamos perfeitamente dizer, e aliás com mais rigor: o
fascismo tem origem no socialismo.
Só que é mais
do que sabido que o socialismo francês anterior a Marx, por exemplo, tem um
fundo profundamente cristão. Portanto, poderíamos ainda alterar a frase e irmos
bem mais longe: o fascismo tem origem no cristianismo.
Ficaríamos
mais elucidados? Claro que não. Quem conhece bem a história do pensamento
político ocidental conhece também toda a sequência de contingências.
O que achei
deveras curioso foi o facto de ter figurado neste debate uma figura como
Georges Sorel, que caíra inteiramente (ou quase) no olvido. O nacionalismo de
Sorel é que veio inspirar uma série de desenvolvimentos de teóricos a ponto de
líderes políticos acabarem por desistir por completo do marxismo, fazendo casar
apenas o socialismo com o nacionalismo. E tudo isso sem nenhuma causalidade
directa, apenas porque as visões do mundo se foram, por inúmeras razões,
alterando.
Vai para três
décadas, venho chamando a atenção para a importância de Sorel (no Réflexions sur la Violence, 1908) a fim
de se entender a obra Mensagem, de
Fernando Pessoa. Não propriamente por causa do nacionalismo, pois não era essa
a grande novidade da proposta de Sorel, mas por causa do seu conceito de mito.
Os marxistas tinham deixado de acreditar na possibilidade da revolução e Sorel
veio explicar-lhes o falhanço: os povos não se movem por ideias abstractas, mas
sim por mitos. Todavia, têm de ser mitos que lhes toquem fundo, que tenham algo
a ver com a sua ‘alma nacional’ (na altura um conceito muito em voga). Foi
assim que o nacionalismo, conceito obviamente já existente há muito, se
espalhou entre os marxistas (e não só), para acabar sendo removido e dele
recuperando-se apenas a faceta do socialismo. Hitler, por sinal, nada tem de
marxista; é simplesmente um nacional-socialista.
Expliquei
também (passe a auto-publicidade, os interessados terão tudo isso num volume
meu recente: Pessoa, Portugal e o Futuro,
Gradiva, 2014) que Pessoa conhecia Sorel e agarrou-lhe a ideia: para os
portugueses ressurgirem do marasmo em que estavam, precisavam de um mito
nacional e, no nosso caso, não era sequer necessário inventar um, pois já tínhamos
o sebastianismo. Era só fazê-lo renascer e integrá-lo numa nova proposta
colectiva, um novo ideário para o país.
Voltando ao
modelo de associação conceptual de JRS, também aqui poderíamos dizer: Mensagem, de Pessoa, tem origem no
marxismo soreliano. E, no entanto, trata-se apenas de uma importação de
elementos por via puramente contingente.
Assim, no meio
das simplificações todas atrás elaboradas, mas que procurei fossem estabelecidas
com rigor histórico e conceptual, pergunto-me:
se a frase de JRS fosse tomada à letra e, portanto, como simples resumo
de uma associação contingente – o marxismo também desembocou no fascismo –,
teria provocado toda esta polémica? Creio que não. Até porque nunca teria surgido
em título nos jornais. Porque foi entendida como implicando muito mais do que
de modo algo inocente afirma é que ela provocou tanta celeuma. E é exactamente
por tal motivo que também, a esta distância, me senti impulsionado a vir tentar
destrinçar alguns conceitos. Não para defender o marxismo. Nunca fui marxista,
muito embora inclua Marx como leitura obrigatória no programa de uma disciplina
que lecciono há 35 anos, por achar fundamental para se entender o debate
teórico sobre valores éticos. Porque acho possível fazer alguma luz e, mais do
que isso, por julgar deveras importante que se a busque. Daí atrever-me a
entrar nesta liça. Fosse a afirmação de José Rodrigues dos Santos um mero
truísmo, não valeria a pena debatê-la. Mas também não teria valido a pena ele
afirmá-la em caixa alta nos jornais e vir depois defendê-la.
Onésimo Teotónio Almeida
(publicado originalmente no JL - Jornal de Letras Artes e Ideias, de 22-VI-2016, aqui reproduzido com permissão do autor. Obrigado, Onésimo, um abraço!)
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