impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 14 - LESTER YOUNG
Fotografia de Herman Leonard
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Se
os reis têm coroa, os presidentes podem envergar um pork pie hat. Era essa peça de indumentária o sinal distintivo de
Lester Young, “The Prez” como carinhosamente o tratava Billie Holiday. Em
contrapartida foi Young quem a crismou como Lady Day, pois o outro sinal
distintivo do saxofonista era tratar toda a gente por “Lady”, fosse homem ou
mulher.
Nos
anos 30, um dos grandes destinos do jazz era Kansas City. Foi assim que em 1933
Lester Young, atormentado pela barbárie racista do seu Mississippi natal,
desembarcou na vibrante KC de saxofone e clarinete debaixo do braço. Tinha 24
anos, mas apesar da suficiente tarimba suficiente para não ser um principiante
ainda procurava a sua voz. Não demorou muito para que Count Basie desse por ele
e menos demorou Lester Young a elevar-se à posição de solista maior da
orquestra mais swingante da América.
O
saxofone tenor como instrumento solista estava então a ser “inventado”, digamos
assim, por Coleman Hawkins. Young ouviu, admirou e em vez de emular fez o
contraponto: onde “Hawk” era agressivo e impetuoso, sobrepondo-se naturalmente à
orquestra, “Prez” propunha um som enternecedor, quase nostálgico, emergindo por
cima do coletivo como se fosse uma revelação. Este estilo era, afinal, e como
não podia deixar de ser, uma extensão da sua personalidade reservada e
notoriamente sensível. Lester abordava o saxofone com secura, sem alacridade, de
uma forma que não sendo despachada nem simplista, era objetiva: ia direito ao
assunto sem tergiversar. Os sons que extraía do saxofone tenor eram tão
próximos do alto que o seu rival e colega Herschel Evans um dia lhe perguntou
porque não trocava de instrumento; apontando a testa com o indicador, Lester
Young respondeu: “Há coisas que se passam aqui, não é só nas tripas”. Mais
tarde, olhando retrospetivamente, se Coleman Hawkins foi o padrinho do be bop,
terá sido Lester Young quem estimulou o cool jazz californiano – na década de
30 ambos eram as torres dominantes do saxofone.
Foi
então na orquestra de Count Basie e à volta dela que Lester Young viveu a sua
melhor inspiração. Kansas City era uma base, não um lar; como todas as bandas da
época a de Count Basie tinha geometria variável e passava muito tempo em
digressão pelas salas de concerto e salões de baile da América. Assim, Lester
Young não se confinou a ela, entrando e saindo com “licença sem vencimento”. Num
desses intervalos, em 1937, conheceu Billie Holiday para sempre. Foi a reunião
de duas almas mortificadas pelas maldades do mundo em que cada uma encontra na
outra uma tábua de salvação ou, pelo menos, um motivo para acreditar que valia
a pena seguir em frente. Tão profunda foi a comunhão pessoal entre ambos, além
de musical, que à morte de Lester em Março de 59, ela sucumbiu 3 meses mais
tarde.
Entretanto as
orquestrações de Basie iam sendo cada vez mais buriladas e difíceis de
assimilar com a mesma rapidez por todos os músicos. Pelo que em 1940 Lester
Young cansou-se de despender tanto tempo em ensaios e afastou-se de vez.
A
incorporação no exército em 1944 quebrou a vida de Lester Young como um
cristal. Esta horrenda experiência, sofrida a maior parte do tempo na prisão
por posse de narcóticos, tocou-lhe profundamente o ânimo e fê-lo render-se à
melancolia e à sensação de alívio que o álcool lhe parecia dar. E mais
encolhido ficou perante os novos sons do be bop que entretanto tomavam conta da
cena do jazz.
Nos
anos subsequentes à tropa Lester Young foi alternando momentos de maturidade
com outros apenas repetitivos. O certo é que estes, sorrateiramente, foram dominando
aqueles, e sobre tudo se derramou a queimadura do bourbon.
Kansas
City Sax
1938-1945 (2003)
Jasmin Records
JASMCD 2600
Lester Young
(clarinete, saxofone tenor); Sylvia Sims (voz); Eddie Durham (guitarra,
trombone); Freddie Green (guitarra); Lucky Thompson (saxofone tenor); Buck
Clayton (trompete); Dicky Wells (trombone); Count Basie, Joe Bushkin, Sammy
Benskin (piano); Jo Jones, Shadow Wilson (bateria).
O
melhor Lester é, portanto, o anterior a 44. E este encontra-se em estado de superior
refinamento nas pequenas formações que Young e alguns parceiros da orquestra de
Count Basie gravaram sob a designação de Kansas City Six, primeiro e Seven,
depois. É música em mangas de camisa, à margem das poses formais da orquestra,
na qual todos avultam o seu génio. As sessões, gravadas em Nova Iorque, foram
cinco, dispersas entre 28 de Setembro de 1938 e Maio de 1945. Num dos primeiros
temas, “Way Down Yonder in New Orleans” Lester Young exibe uma vitalidade quase
ingénua, que embora não pise o risco do swing
mais formal, estava cheia de promessas de alegria. Noutros temas, como “Lester
Leaps In” (sessão de véspera de Natal de 1939), é-nos oferecido um clássico
instantâneo; noutros ainda, caso de “Destination KC” de 1944, o saxofonista dá
terreno aos camaradas e entra a pique desenvolvendo um punhado de frases
sintéticas e resolutas sem dar azo a especulações.
Isto
costuma ter o nome de estado de graça e é este o Lester Young que havemos de
recordar para sempre.
José Navarro de
Andrade
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