sábado, 18 de junho de 2016






impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 14 - LESTER YOUNG

 


Fotografia de Herman Leonard

 

 

Se os reis têm coroa, os presidentes podem envergar um pork pie hat. Era essa peça de indumentária o sinal distintivo de Lester Young, “The Prez” como carinhosamente o tratava Billie Holiday. Em contrapartida foi Young quem a crismou como Lady Day, pois o outro sinal distintivo do saxofonista era tratar toda a gente por “Lady”, fosse homem ou mulher.
Nos anos 30, um dos grandes destinos do jazz era Kansas City. Foi assim que em 1933 Lester Young, atormentado pela barbárie racista do seu Mississippi natal, desembarcou na vibrante KC de saxofone e clarinete debaixo do braço. Tinha 24 anos, mas apesar da suficiente tarimba suficiente para não ser um principiante ainda procurava a sua voz. Não demorou muito para que Count Basie desse por ele e menos demorou Lester Young a elevar-se à posição de solista maior da orquestra mais swingante da América.
O saxofone tenor como instrumento solista estava então a ser “inventado”, digamos assim, por Coleman Hawkins. Young ouviu, admirou e em vez de emular fez o contraponto: onde “Hawk” era agressivo e impetuoso, sobrepondo-se naturalmente à orquestra, “Prez” propunha um som enternecedor, quase nostálgico, emergindo por cima do coletivo como se fosse uma revelação. Este estilo era, afinal, e como não podia deixar de ser, uma extensão da sua personalidade reservada e notoriamente sensível. Lester abordava o saxofone com secura, sem alacridade, de uma forma que não sendo despachada nem simplista, era objetiva: ia direito ao assunto sem tergiversar. Os sons que extraía do saxofone tenor eram tão próximos do alto que o seu rival e colega Herschel Evans um dia lhe perguntou porque não trocava de instrumento; apontando a testa com o indicador, Lester Young respondeu: “Há coisas que se passam aqui, não é só nas tripas”. Mais tarde, olhando retrospetivamente, se Coleman Hawkins foi o padrinho do be bop, terá sido Lester Young quem estimulou o cool jazz californiano – na década de 30 ambos eram as torres dominantes do saxofone.
Foi então na orquestra de Count Basie e à volta dela que Lester Young viveu a sua melhor inspiração. Kansas City era uma base, não um lar; como todas as bandas da época a de Count Basie tinha geometria variável e passava muito tempo em digressão pelas salas de concerto e salões de baile da América. Assim, Lester Young não se confinou a ela, entrando e saindo com “licença sem vencimento”. Num desses intervalos, em 1937, conheceu Billie Holiday para sempre. Foi a reunião de duas almas mortificadas pelas maldades do mundo em que cada uma encontra na outra uma tábua de salvação ou, pelo menos, um motivo para acreditar que valia a pena seguir em frente. Tão profunda foi a comunhão pessoal entre ambos, além de musical, que à morte de Lester em Março de 59, ela sucumbiu 3 meses mais tarde.
Entretanto as orquestrações de Basie iam sendo cada vez mais buriladas e difíceis de assimilar com a mesma rapidez por todos os músicos. Pelo que em 1940 Lester Young cansou-se de despender tanto tempo em ensaios e afastou-se de vez.
A incorporação no exército em 1944 quebrou a vida de Lester Young como um cristal. Esta horrenda experiência, sofrida a maior parte do tempo na prisão por posse de narcóticos, tocou-lhe profundamente o ânimo e fê-lo render-se à melancolia e à sensação de alívio que o álcool lhe parecia dar. E mais encolhido ficou perante os novos sons do be bop que entretanto tomavam conta da cena do jazz.
Nos anos subsequentes à tropa Lester Young foi alternando momentos de maturidade com outros apenas repetitivos. O certo é que estes, sorrateiramente, foram dominando aqueles, e sobre tudo se derramou a queimadura do bourbon.
 
 

 
Kansas City Sax
1938-1945 (2003)
Jasmin Records JASMCD 2600
Lester Young (clarinete, saxofone tenor); Sylvia Sims (voz); Eddie Durham (guitarra, trombone); Freddie Green (guitarra); Lucky Thompson (saxofone tenor); Buck Clayton (trompete); Dicky Wells (trombone); Count Basie, Joe Bushkin, Sammy Benskin (piano); Jo Jones, Shadow Wilson (bateria).
 
 
O melhor Lester é, portanto, o anterior a 44. E este encontra-se em estado de superior refinamento nas pequenas formações que Young e alguns parceiros da orquestra de Count Basie gravaram sob a designação de Kansas City Six, primeiro e Seven, depois. É música em mangas de camisa, à margem das poses formais da orquestra, na qual todos avultam o seu génio. As sessões, gravadas em Nova Iorque, foram cinco, dispersas entre 28 de Setembro de 1938 e Maio de 1945. Num dos primeiros temas, “Way Down Yonder in New Orleans” Lester Young exibe uma vitalidade quase ingénua, que embora não pise o risco do swing mais formal, estava cheia de promessas de alegria. Noutros temas, como “Lester Leaps In” (sessão de véspera de Natal de 1939), é-nos oferecido um clássico instantâneo; noutros ainda, caso de “Destination KC” de 1944, o saxofonista dá terreno aos camaradas e entra a pique desenvolvendo um punhado de frases sintéticas e resolutas sem dar azo a especulações.
Isto costuma ter o nome de estado de graça e é este o Lester Young que havemos de recordar para sempre.
 
 
José Navarro de Andrade





 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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