Em
Janeiro de 1954, de passagem por Lisboa na companhia do seu terceiro marido,
Bowden Broadwater, a jornalista e escritora Mary McCarthy (1912-1989) escreveu à sua grande
amiga Hannah Arendt. A carta, publicada no livro Between Friends: The Correspondence of Hannah Arendt and Mary McCarthy,
1949-1975, Nova Iorque, 1995, pode ser consultada aqui, na
versão original. Espera-se publicar em breve um outro texto de Mary McCarthy
escrito em Lisboa, também numa tradução algo «livre» e sem especiais pretensões de rigor.
Lisboa, Rua Castilho, o nevão de 1954, aqui
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Pensão
Bela Vista
9
Rua Ataíde
Lisboa,
Portugal Janeiro (?) 1954
Querida
Hannah,
Por
aqui neva em catadupa, dizem que pela primeira vez em dez ou cem anos, não consegui
perceber bem. Eis então uma tarde que pode ser passada a escrever cartas; os
outros dias, depois de almoço, foram dedicados a palmilhar a cidade. Visitámos
a maioria das igrejas, Alfama, o Jardim Botânico – que é encantador e julgo ser
uma das glórias nacionais –, a biblioteca americana, a biblioteca inglesa,
lojas, hotéis, cafés. Na primeira noite fomos ao Rossio e tentámos descobrir o
café em que tu e o Heinrich [Blücher] estiveram, mas não creio que o tenhamos
encontrado.
Estamos
alojados numa pensão onde, ao que parece, somos os únicos hóspedes, ainda que
refiram existirem mais clientes. A antiga proprietária, cujo nome nos foi
recomendado por Leonid [Berman], o pintor, enlouqueceu há alguns anos, e a
pensão tem nova gerência. Receio ser um navio prestes a afundar-se, mas temos
dois quartos, um dos quais muito amplo, com uma varanda e uma vista maravilhosa
sobre o porto. A nova gerente é Mlle. Carole, de trinta e muitos anos, com um
eterno cigarro nos lábios, vestida com um bolero vermelho e uma camisa inglesa
com os botões apertados até ao pescoço. Aparenta uma certa graça melancólica de
Marlene Dietrich, pelo que, segundo me parece, deve estar à beira da ruína. É
meio francesa, meio sueca, com uma maman francesa
gorda, vestida de preto, com um ar de decadência resignada. Continuam a ouvir a
rádio de França e falam quatro línguas: alemão, francês, inglês e português. Desprezam
os portugueses, isto é, todo e qualquer auxílio vindo de fora. Quando a
cozinheira portuguesa cozinha, a comida é medíocre, quanto a Madame cozinha, é
boa; quando é a Maman a cozinhar, é soberba. Como todas as pessoas quando se
encontram desesperadas, parece elas que conseguem ler-nos os pensamentos. Sabem
exactamente quando vamos querer experimentar um novo prato. Aí, a Maman vai
para a cozinha e, nessa noite, o jantar é digno de La Pérouse. Mas o ambiente
geral é de credores a rondarem, fim de festa, confusão, fusíveis a estourar. Em
suma, acho o sítio muito simpático e consegui aplacar o Bowden na sua ideia de dar
uma volta por outras pensões. A localização é óptima, no alto da cidade, acima e
a oeste do Chiado. Como é óbvio, pelos padrões portugueses estamos a ser
explorados, mas consolamo-nos com o facto de nos bastar exprimir um desejo e
toda a casa entrar de imediato em acção. Isto acontece, bem sei, porque somos
americanos. E, para esta gente, os americanos são uma espécie de divindades
primitivas, gente com desejos imprevistos e bizarros mas que têm de ser
satisfeitos e, se possível, antecipados. Nutrem as mais estranhas ideias – receosas,
esperançosas – daquilo que desejamos, como ofertas ou suplementos de conforto. De
momento, temos um aquecedor a gás no quarto, mas o rapaz continua a trazer-nos
também um aquecedor eléctrico, mesmo sendo o único que existe na casa inteira e
de não precisarmos dele.
Lisboa com neve. A Baixa, 1954
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Ainda
não sei quanto tempo aqui vamos ficar. Dizem que o Algarve, no Sul, onde eventualmente
planeamos ir, encontra-se coberto de neve por completo, ainda que as mimosas
supostamente estejam floridas. Disse-te que a New Yorker me pediu que
escrevesse uma carta sobre Portugal? Ontem encontrei-me com o nosso adido de
imprensa, que me pareceu muito competente, e até falava de Platão. Para mim, o
fenómeno mais marcante que aqui encontrei foi a americanização. Interesses
comerciais americanos, a Ford, a Buick, a International Telephone, a TWA estão
em grande actividade; há milhares de carros novinhos na rua e as montras exibem
rádios, frigoríficos, panelas de pressão, berços de bebés, muitos deles fabricados
na América. Aquilo que de mais estranho podemos ver na Rua Garrett, a principal
rua de compras, são caixas de bolachas Ritz nas montras, envoltas em veludo
vermelho como se fossem objectos sagrados; uma outra montra ostenta rebuçados
Tootsie Rolls. Há uma espécie de pathos
infantil ou primitivo em tudo isto, uma vez que os doces e os bolos portugueses
são maravilhosos, como te deves lembrar. Por todo o lado, nos subúrbios, e até
no centro da cidade, florescem projectos habitacionais que, devo dizê-lo, são
melhores do que os nossos.
Ainda
nada sei sobre a situação política, Economicamente, é um país singular, com uma
estranha mistura de prosperidade e de pobreza. As classes médias da cidade
parecem ter alguma riqueza, mas não consigo perceber de onde ela vem. As casas
de chá e os cafés estão cheios de mulheres e de homens bem vestidos, que na América
tomaríamos por gente de negócios, secretárias ou vendedores. Todos os jovens da
classe média parecem americanos, como se copiassem os gestos e as expressões
que vêem nos filmes – apenas a aristocracia e os pobres aparentam ser aquilo
que eu chamaria portugueses, algo muito diferente do que acontece em Itália ou
em França. Em contrapartida, os produtos cá fabricados que se vêem nas montras,
mesmo nas melhores lojas, são de péssima qualidade – refiro-me a sapatos,
malas, vestidos, camisas para homem. Tudo tem um aspecto igual ao que
encontramos nos fundos dos armazéns Gimbels ou nos saldos de terceira categoria.
Parece não existir verdadeiro artesanato, só aquela tralha típica das festas
dos agricultores, tudo muito inautêntico, o tipo de coisas que se compram nas
lojas de estrada para levar como recordações. Nas ruas secundárias ou em Alfama
vê-se uma pobreza medieval, como em África, dirias tu, ou como a que
encontramos nas páginas de Os Miseráveis ou
de Nossa Senhora de Paris.
Bem,
tenho de terminar. Está a ficar escuro e a única coisa que não consigo
encontrar nesta pensão é uma boa luz para ler e escrever. Em breve mando-te um
relatório mais detalhado. Se tiveres um minuto, envia-me umas linhas para aqui,
Falamos ambos de ti a toda a hora. Pergunto-me onde ficaste em Lisboa; em que
zona?
Amanhã
irei encontrar-me com o número dois do Ministério da Propaganda. O outro
português que conheci é um dançarino de ballet, também recomendado pelo Leonid,
e que amanhã nos vai levar a Alfama para ouvirmos o fado.
Com
muito, muito carinho para ambos,
Mary
Delicioso.
ResponderEliminarObrigada, António, por nos trazer esta pérola.
ResponderEliminarMaria Teresa Mónica
Que maravilha.
ResponderEliminar:-)
ResponderEliminarQue bela imagem de Lisboa... uns laivos de Princesa Rattazi :)
ResponderEliminarQuem seria o nº 2 do Ministério?
Tocante, inteligente, misterioso. Um retrato formidável de um tempo.
ResponderEliminarMuito obrigado, António.
Mais palavras para quê? Magnífico, e a deixar tantas linhas de reflexão. Bem haja António Araújo.
ResponderEliminarMaravilhoso. Obrigada.
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