sexta-feira, 22 de julho de 2016

Na ONU.

 

Na ONU, em 2 de Novembro de 1973: um reconhecimento especial
 
1.     A iniciativa
A abertura da XXVIII sessão da Assembleia Geral da ONU, em Setembro de 1973, foi marcada por dois acontecimentos importantes: a admissão dos Estados alemães (RFA e RDA) e a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau.
         Quanto a esta última, em 5 de Outubro, culminando a ofensiva que marcara as primeiras reuniões, o representante da Nigéria transmitiu ao Presidente do Conselho de Segurança uma série de documentos relativos à declaração de independência e, em 22 de Outubro, cinquenta e oito Estados requereram a inscrição na ordem do dia, como “questão  urgente e importante”, dum ponto intitulado "Ocupação ilegal pela forças militares portuguesas de certos sectores da República da Guiné-Bissau e actos de agressão cometidos por elas contra o povo da República"[1].         Em suma, na parte decisória deste projecto, a Assembleia Geral felicitava-se «pelo recente acesso à independência do povo da Guiné-Bissau, ao criar o Estado soberano que é a República da Guiné-Bissau», condenava «energicamente» a política portuguesa e, além de chamar a atenção do Conselho de Segurança «sobre a situação crítica criada pela presença ilegal de Portugal», exigia que o Governo português se abstivesse «imediatamente de qualquer nova violação da soberania e da integridade territorial da República da Guiné-Bissau e de todos os actos de agressão contra o povo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, retirando imediatamente as suas forças armadas destes territórios».
 
2.     O debate geral
A questão foi discutida nas reuniões plenárias realizadas entre 26 de Outubro e 2 de Novembro de 1973. O número de oradores inscritos para o debate geral foi elevadíssimo: cinquenta e uma intervenções.
A grande maioria saudou a proclamação da independência e solicitou efectivas medidas de apoio por parte da ONU. Alguns recordaram as propostas prévias de negociações, sustentaram que a Guiné-Bissau revelava os necessários atributos de um território nacional, destacaram alguns traços do texto da Proclamação de Independência e da própria Constituição Política do novo Estado. Outros recordaram as conclusões da Missão Especial que, no ano anterior, visitara as regiões libertadas e enfatizaram o elevado número de reconhecimentos da novel República. Todos apontaram para a ilegalidade da presença portuguesa, para o termo inevitável do colonialismo e apelaram a Portugal para retirar imediatamente das colónias. Alguns criticaram a cumplicidade do apoio militar, económico e político da NATO.
O embaixador António Patrício interveio, pela delegação portuguesa, na reunião vespertina de 31 de Outubro. Invocando Lauterpacht, sustentou que a Guiné-Bissau era um Estado fantasma, que não preenchia minimamente qualquer dos requisitos impostos pelo direito internacional clássico para o reconhecimento – por exemplo, o PAIGC, não obstante o invocado controlo territorial, tivera de proclamar a independência debaixo das árvores, numa floresta e fizera-o quase na clandestinidade, como mostrava a ausência de jornalistas senegaleses e o facto de a Proclamação só ter sido anunciada dois dias depois. Recordou a afirmação de Marcelo Caetano, de 26 de Outubro, de que a declaração de independência não era mera manobra de propaganda, por os seus adeptos visarem um pretexto jurídico para acréscimo do apoio diplomático e militar e aplicação do regime internacional sobre a guerra. À ANP que proclamara a independência, contrapôs as eleições realizadas para a Assembleia Legislativa em Março e o papel dos Congressos do Povo, os quais demonstrariam insofismável apoio à presença portuguesa. Negou o controlo territorial invocado pelo PAIGC e, a concluir, afirmou que Portugal, ainda mais num momento de inequívoca «crise de confiança» mundial face à ONU, recusava «participar neste processo de desintegração do direito internacional» e rejeitava «imediata e absolutamente esta tentativa de inversão dos valores que regem as relações entre países que estão convencidos da supremacia do direito sobre o uso da força».   
 
3.     A votação
Terminado o debate geral, a reunião matinal de 2 de Novembro abriu com as intervenções dos representantes que pretendiam explicar o voto antes do acto de votação.
A Argentina anunciou que votaria a favor, porque a moção apresentava a questão sob uma nova óptica e permitiria que as Nações Unidas tomassem medidas adequadas à sua complexidade, mas ressalvou que o seu voto afirmativo não significava o reconhecimento de Estado. A Grécia (dita "dos Coronéis") ia votar contra porque o método e a via adoptados poderiam «criar precedentes perigosos». O Chile (da recém-instalada Junta Militar de Pinochet) abstinha-se porque distinguia dois aspectos diferentes, a criação de um novo Estado soberano e a condenação do colonialismo.
O Reino Unido ia votar contra. Rejeitava liminarmente as acusações sobre o envolvimento da NATO: «a pertença de Portugal à NATO é uma coisa. A sua política colonial é outra. Nada fazemos para apoiar a política colonial portuguesa. Pelo contrário, como demonstrámos frequentemente, dissociamo-nos dessa política». Apesar de tudo, a delegação britânica continuava a considerar a Guiné-Bissau um território não autónomo e tinha de votar contra o projecto de resolução «pela simples razão que se funda em hipóteses irreais e que as correspondentes propostas são, por isso, não fundamentadas e inaceitáveis». Estava, porém, a pagar um preço «muito alto» para continuar a apoiar Marcelo Caetano e a ter o que o Foreign Office via como «má companhia»[2].
 A abstenção da Bélgica, apesar da «grande abertura de espírito» na questão do reconhecimento da Guiné-Bissau, resultava de julgar que o território não reunia todos os atributos da soberania e independência e, consequentemente, não respondia aos critérios admitidos pela prática tradicional. O delegado sueco interveio em nome dos cinco países nórdicos, cuja solidariedade concreta ao PAIGC era bem conhecida e iriam abster-se porque o projecto de resolução continha «elementos que prejudicariam a questão das nossas relações com a República que acaba de ser proclamada». Finalmente, o Canadá e a Austrália abstinham-se pelos mesmos motivos: as questões decorrentes do projecto levantavam «enormes dificuldades», assemelhando-se a um reconhecimento colectivo do novo Estado.
A votação da resolução 3061 (XXVIII) realizou-se por chamada nominal, iniciada, à sorte, pelas Maldivas. Foi aprovada por 93 votos a favor, 30 abstenções e 7 contra (Portugal, África do Sul, Espanha, Reino Unido, EUA, Brasil e Grécia).
Em declarações de voto, Holanda, Irlanda, França, RFA e Nova Zelândia reafirmaram o seu apoio ao exercício do direito à autodeterminação e independência do povo da Guiné-Bissau, lamentaram não ter sido possível chegar a consenso sobre outro tipo de resolução, observaram que um voto afirmativo poderia implicar um reconhecimento de facto e reafirmaram, cada qual por seu lado, que manteriam contactos para proceder ao reconhecimento logo que possível, segundo as normas do direito internacional.
Por sua vez, os Estados Unidos declararam acompanhar de muito perto os acontecimentos e não observarem nada que os convencesse que a declaração de independência era justificada; estavam conscientes de que os revolucionários «ocupam e pretendem administrar certos sectores dentro do território e ao longo das suas fronteiras»; todavia, Portugal continuava a controlar os centros populacionais, a maioria das regiões rurais e a administração do território. O Governo norte-americano reafirmava, ademais, que só a negociação entre as partes interessadas, no quadro da resolução 322 do Conselho de Segurança, permitiria «pôr um termo à luta sangrenta no território».
 
4.     A doutrina
         Esta resolução 3061 (XXVIII foi uma espécie de míssil (de papel) contra Portugal e exprimiu o clímax de uma recente série de acções da ONU sobre a situação na Guiné-Bissau[3]. Marcou um limite-máximo na história da descolonização, pois procedia ao reconhecimento (de um movimento de libertação) de um Estado (independente) enquanto este lutava ainda pela independência e qualificava a potência administrante de país agressor.
Vários jus-internacionalistas falam, a propósito, de reconhecimento (colectivo) de Estado. Embora sem aprofundar, Truyol y Serra afirma-o duas vezes[4]. Verdross considera o reconhecimento da República da Guiné-Bissau como o «mais notável» caso de reconhecimento (não prematuro) por alguns Estados e «inclusivamente pela Assembleia Geral da ONU, em 2 de Novembro de 1973, enquanto duravam as hostilidades com Portugal»[5]. Paulette Pierson-Mathy fala de um reconhecimento «quase universal» e conclui que a resolução 3061 implicava, para os Estados que a apoiaram, o reconhecimento solene e colectivo da independência[6]. Também em comentário, Paul Tavernier conclui que, mesmo não tendo a nova República solicitado de imediato a sua admissão na ONU, a aprovação da "Ordem do dia" da Assembleia Geral e da respectiva resolução, «já implicava, parece, o reconhecimento pelas Nações Unidas do novo Estado»[7]. Para Charles Zorgbibe, o caso saía do quadro estrito da antecipação, pois não só o reconhecimento provinha pela primeira vez da Assembleia Geral da ONU como, sobretudo, analisadas as diversas etapas preparatórias da sua declaração de independência, a República da Guiné-Bissau constituía um caso-limite[8]. No resumo de outro especialista, parece indiscutível que, embora posterior a elevado número de reconhecimentos, esta “certificação” da independência por parte da ONU – não obstante as reclamações da “potência administrante”, que, aliás, nem sequer aceitava tal estatuto – contribuiu substancialmente para o reconhecimento da «existência separada» do Estado da Guiné-Bissau[9].
 
5.     Entre a solidão e o desespero
         A proclamação criara um dilema para os aliados de Portugal na NATO[10]. O litígio entre Portugal e a ONU agudizou-se e a tentativa de détente africana que a diplomacia marcelista ensaiara «parecia ter os seus dias contados»[11].
 Acentuando a clara «degradação da imagem de Portugal na ONU»[12], a subsequente resolução 3067, de 16 de Novembro, convidou a República da Guiné-Bissau (em vez do PAIGC, com o inerente estatuto de "observador") a participar na III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, e, em 17 de Dezembro, a Assembleia Geral aprovou os poderes da delegação de Portugal apenas «tal como ele existe no interior das suas fronteiras na Europa», sublinhando expressamente que esses poderes não se estendiam aos «territórios sob dominação portuguesa de Angola e de Moçambique» nem à Guiné-Bissau «que é um Estado independente».
         A proclamação da República da Guiné-Bissau fora o primeiro passo (e a chave) da desintegração do Portugal colonial. Marcelo Caetano ficara refém da “teoria dos dominós”[13], e esta passava a abranger uma nova perspectiva, que não havia sido considerada autonomamente: a eventualidade de sucessivas declarações unilaterais de independência por todas as partes – pois, à última hora, conspirativamente, a parte portuguesa também se iria envolver nesta via quanto a Angola e Moçambique[14].
Quer dizer, a separação dos territórios coloniais do Estado metropolitano podia ter-se transformado em desmembramento. Todavia o reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau pela parte portuguesa abriu a via à independência rápida e geral, mediante acordo com os movimentos de libertação nacional.
 
António Duarte Silva
 




[1] Sobre todo este processo, Nações Unidas – Assembleia Geral – A/PV. 2157, de 20/10/73 até A/PV. 2163, de 2/11/73, e um resumo in Yearbook of the United Nations – 1973 – Vol. 27, Office of Public Information, Nova Iorque, pp. 143/147.
[2] Norrie MacQueen, “Marcelismo, Africa and the United Nations [With particular reference to the British response to the PAIGC´s Declaration of Independence for Guinea-Bissau]”, in Manuela Franco (coord.), Portugal, os Estados Unidos e a África Austral; Lisboa, Fundação Luso-Americana/IPRI, 2006, pp. 115/ 116, e Pedro Aires de Oliveira, “Live and Let Live: Britain and Portugal´s Imperial Endgame”, in Portuguese Studies, Vol. 29, n.º 2, 2013, p. 203.
[3] Bunyan Briant e alii, “Recognition of Guinea(Bissau)”, in Harvard International Law Journal; Cambridge, Mass., Vol. 15, verão de 1974, pp. 482 e segs., especialmente p. 495.
[4] Antonio Truyol y Serra, “Théorie du Droit International”,in Recueil des Cours de l’Académie de Droit International Public. Tomo 173, Vol. IV, 1981, p. 341, e La sociedad internacional, Madrid, Alianza Editorial, p. 187, nota 1.
[5] Alfred Verdross, Derecho Internacional Publico, tradução da 3.ª edição alemã, Madrid, 1982, p. 231, nota 16b.
[6] Paulette Pierson-Mathy, La naissance de l’Etat par la guerre de libération nationale: le cas de la Guinée-Bissau, UNESCO, 1980, pp. 84/85.
[7] Paul Tavernier, “L’Année des Nations Unies (20 Décembre 1972 – 18 Décembre 1973) – Questions Juridiques”, in Annuaire Français de Droit International, Vol. XIX, 1973, p. 628.
[8] Charles Zorgbibe, A guerra civil, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1977, p. 154.
[9] John Dugard, Recognition and the United Nations, Cambridge, Grotius Publications Limitede, 1987, p. 74.
[10] Norrie MacQueen,  “Related Decolonization and the UN Politics against the Backdrop of the Cold War: Portugal, Britain and the Guinea Bissau’s Proclamation of Independence”, in Journal of Cold War Studies, 8, n.º 4, 2006, pp. 29 e segs..
[11] Pedro Aires de Oliveira, “A Política Externa do Marcelismo: A Questão Africana”, in Fernando Martins (ed.), Diplomacia & Guerra, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 241 e 259.
[12] Mário António Fernandes de Oliveira (dir.), A Descolonização Portuguesa – Aproximação a um estudo, I Volume, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, 1979, p. 198.
[13] Pedro Aires de Oliveira, ibidem, pp. 263/265.
[14] Por exemplo, Norrie MacQueen, “Portugal’s First Domino: ‘Pluricontinentalism’ and Colonial War in Guinea-Bissau, 1963-1974”, in Contemporory European History, 8, 2 (1999), p. 227.

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