Na ONU, em 2 de Novembro de 1973: um
reconhecimento especial
1.
A iniciativa
A abertura da XXVIII sessão da Assembleia
Geral da ONU, em Setembro de 1973, foi marcada por dois acontecimentos
importantes: a admissão dos Estados alemães (RFA e RDA) e a declaração
unilateral de independência da Guiné-Bissau.
Quanto
a esta última, em 5 de Outubro, culminando a ofensiva que marcara as primeiras
reuniões, o representante da Nigéria transmitiu ao Presidente do Conselho de
Segurança uma série de documentos relativos à declaração de independência e, em
22 de Outubro, cinquenta e oito Estados requereram a inscrição na ordem do dia,
como “questão urgente e importante”, dum
ponto intitulado "Ocupação ilegal pela forças militares portuguesas de
certos sectores da República da Guiné-Bissau e actos de agressão cometidos por
elas contra o povo da República"[1]. Em suma, na parte decisória deste
projecto, a Assembleia Geral felicitava-se «pelo recente acesso à independência
do povo da Guiné-Bissau, ao criar o Estado soberano que é a República da
Guiné-Bissau», condenava «energicamente» a política portuguesa e, além de
chamar a atenção do Conselho de Segurança «sobre a situação crítica criada pela
presença ilegal de Portugal», exigia que o Governo português se abstivesse «imediatamente
de qualquer nova violação da soberania e da integridade territorial da
República da Guiné-Bissau e de todos os actos de agressão contra o povo da
Guiné-Bissau e de Cabo Verde, retirando imediatamente as suas forças armadas
destes territórios».
2.
O debate geral
A questão foi discutida nas reuniões plenárias
realizadas entre 26 de Outubro e 2 de Novembro de 1973. O número de oradores
inscritos para o debate geral foi elevadíssimo: cinquenta e uma intervenções.
A grande maioria saudou a proclamação da
independência e solicitou efectivas medidas de apoio por parte da ONU. Alguns
recordaram as propostas prévias de negociações, sustentaram que a Guiné-Bissau
revelava os necessários atributos de um território nacional, destacaram alguns
traços do texto da Proclamação de Independência e da própria Constituição
Política do novo Estado. Outros recordaram as conclusões da Missão Especial
que, no ano anterior, visitara as regiões libertadas e enfatizaram o elevado
número de reconhecimentos da novel República. Todos apontaram para a
ilegalidade da presença portuguesa, para o termo inevitável do colonialismo e
apelaram a Portugal para retirar imediatamente das colónias. Alguns criticaram
a cumplicidade do apoio militar, económico e político da NATO.
O embaixador António Patrício interveio, pela
delegação portuguesa, na reunião vespertina de 31 de Outubro. Invocando
Lauterpacht, sustentou que a Guiné-Bissau era um Estado fantasma, que não
preenchia minimamente qualquer dos requisitos impostos pelo direito
internacional clássico para o reconhecimento – por exemplo, o PAIGC, não
obstante o invocado controlo territorial, tivera de proclamar a independência
debaixo das árvores, numa floresta e fizera-o quase na clandestinidade, como
mostrava a ausência de jornalistas senegaleses e o facto de a Proclamação só
ter sido anunciada dois dias depois. Recordou a afirmação de Marcelo Caetano,
de 26 de Outubro, de que a declaração de independência não era mera manobra de
propaganda, por os seus adeptos visarem um pretexto jurídico para acréscimo do
apoio diplomático e militar e
aplicação do regime internacional sobre a guerra. À ANP que proclamara a
independência, contrapôs as eleições realizadas para a Assembleia Legislativa
em Março e o papel dos Congressos do Povo, os quais demonstrariam insofismável
apoio à presença portuguesa. Negou o controlo territorial invocado pelo PAIGC
e, a concluir, afirmou que Portugal, ainda mais num momento de inequívoca
«crise de confiança» mundial face à ONU, recusava «participar neste processo de
desintegração do direito internacional» e rejeitava «imediata e absolutamente
esta tentativa de inversão dos valores que regem as relações entre países que
estão convencidos da supremacia do direito sobre o uso da força».
3. A
votação
Terminado o debate geral, a reunião matinal de
2 de Novembro abriu com as intervenções dos representantes que pretendiam
explicar o voto antes do acto de votação.
A Argentina anunciou que votaria a favor,
porque a moção apresentava a questão sob uma nova óptica e permitiria que as
Nações Unidas tomassem medidas adequadas à sua complexidade, mas ressalvou que
o seu voto afirmativo não significava o reconhecimento de Estado. A Grécia
(dita "dos Coronéis") ia votar contra porque o método e a via
adoptados poderiam «criar precedentes perigosos». O Chile (da recém-instalada Junta Militar de Pinochet)
abstinha-se porque distinguia dois aspectos diferentes, a criação de um novo
Estado soberano e a condenação do colonialismo.
O Reino Unido ia votar contra. Rejeitava
liminarmente as acusações sobre o envolvimento da NATO: «a pertença de Portugal
à NATO é uma coisa. A sua política colonial é outra. Nada fazemos para apoiar a
política colonial portuguesa. Pelo contrário, como demonstrámos frequentemente,
dissociamo-nos dessa política». Apesar de tudo, a delegação britânica
continuava a considerar a Guiné-Bissau um território não autónomo e tinha de
votar contra o projecto de resolução «pela simples razão que se funda em
hipóteses irreais e que as correspondentes propostas são, por isso, não
fundamentadas e inaceitáveis». Estava, porém, a pagar um preço «muito alto»
para continuar a apoiar Marcelo Caetano e a ter o que o Foreign Office via como «má companhia»[2].
A
abstenção da Bélgica, apesar da «grande abertura de espírito» na questão do reconhecimento da Guiné-Bissau,
resultava de julgar que o território não reunia todos os atributos da soberania
e independência e, consequentemente, não respondia aos critérios admitidos pela
prática tradicional. O delegado sueco interveio em nome dos cinco países
nórdicos, cuja solidariedade concreta ao PAIGC era bem conhecida e iriam
abster-se porque o projecto de resolução continha «elementos que prejudicariam
a questão das nossas relações com a República que acaba de ser proclamada». Finalmente,
o Canadá e a Austrália abstinham-se pelos mesmos motivos: as questões
decorrentes do projecto levantavam «enormes dificuldades», assemelhando-se a um
reconhecimento colectivo do novo Estado.
A votação da resolução 3061 (XXVIII)
realizou-se por chamada nominal, iniciada, à sorte, pelas Maldivas. Foi aprovada
por 93 votos a favor, 30 abstenções e 7 contra (Portugal, África do Sul,
Espanha, Reino Unido, EUA, Brasil e Grécia).
Em declarações de voto, Holanda, Irlanda,
França, RFA e Nova Zelândia reafirmaram o seu apoio ao exercício do direito à
autodeterminação e independência do povo da Guiné-Bissau, lamentaram não ter
sido possível chegar a consenso sobre outro tipo de resolução, observaram que
um voto afirmativo poderia implicar um reconhecimento de facto e reafirmaram, cada qual por seu lado, que manteriam
contactos para proceder ao reconhecimento logo que possível, segundo as normas
do direito internacional.
Por sua vez, os Estados Unidos declararam
acompanhar de muito perto os acontecimentos e não observarem nada que os
convencesse que a declaração de independência era justificada; estavam
conscientes de que os revolucionários «ocupam e pretendem administrar certos
sectores dentro do território e ao longo das suas fronteiras»; todavia,
Portugal continuava a controlar os centros populacionais, a maioria das regiões
rurais e a administração do território. O Governo norte-americano reafirmava,
ademais, que só a negociação entre as partes interessadas, no quadro da
resolução 322 do Conselho de Segurança, permitiria «pôr um termo à luta
sangrenta no território».
4.
A doutrina
Esta
resolução 3061 (XXVIII foi uma espécie de míssil (de papel) contra Portugal e
exprimiu o clímax de uma recente série de acções da ONU sobre a situação na Guiné-Bissau[3]. Marcou um
limite-máximo na história da descolonização, pois procedia ao reconhecimento
(de um movimento de libertação) de um Estado (independente) enquanto este
lutava ainda pela independência e qualificava a potência administrante de país
agressor.
Vários jus-internacionalistas falam, a
propósito, de reconhecimento (colectivo) de Estado. Embora sem aprofundar,
Truyol y Serra afirma-o duas vezes[4]. Verdross
considera o reconhecimento da República da Guiné-Bissau como o «mais notável» caso de reconhecimento (não prematuro)
por alguns Estados e «inclusivamente pela Assembleia Geral da ONU, em 2 de
Novembro de 1973, enquanto duravam as hostilidades com Portugal»[5]. Paulette
Pierson-Mathy fala de um reconhecimento «quase universal» e conclui que a resolução
3061 implicava, para os Estados que a apoiaram, o reconhecimento solene e
colectivo da independência[6]. Também em
comentário, Paul Tavernier conclui que, mesmo não tendo a nova República
solicitado de imediato a sua admissão na ONU, a aprovação da "Ordem do
dia" da Assembleia Geral e da respectiva resolução, «já implicava, parece,
o reconhecimento pelas Nações Unidas do novo Estado»[7].
Para Charles Zorgbibe, o caso saía do quadro estrito da antecipação, pois não
só o reconhecimento provinha pela primeira vez da Assembleia Geral da ONU como,
sobretudo, analisadas as diversas etapas preparatórias da sua declaração de
independência, a República da Guiné-Bissau constituía um caso-limite[8]. No resumo
de outro especialista, parece indiscutível que, embora posterior a elevado
número de reconhecimentos, esta “certificação” da independência por parte da
ONU – não obstante as reclamações da “potência administrante”, que, aliás, nem
sequer aceitava tal estatuto – contribuiu substancialmente para o
reconhecimento da «existência separada» do Estado da Guiné-Bissau[9].
5.
Entre a solidão e o desespero
A
proclamação criara um dilema para os aliados de Portugal na NATO[10]. O
litígio entre Portugal e a ONU agudizou-se e a tentativa de détente africana que a diplomacia
marcelista ensaiara «parecia ter os seus dias contados»[11].
Acentuando a clara «degradação da imagem de
Portugal na ONU»[12], a
subsequente resolução 3067, de 16 de Novembro, convidou a República da
Guiné-Bissau (em vez do PAIGC, com o inerente estatuto de
"observador") a participar na III Conferência das Nações Unidas sobre
o Direito do Mar, e, em 17 de Dezembro, a Assembleia Geral aprovou os poderes
da delegação de Portugal apenas «tal como ele existe no interior das suas
fronteiras na Europa», sublinhando expressamente que esses poderes não se
estendiam aos «territórios sob dominação portuguesa de Angola e de Moçambique»
nem à Guiné-Bissau «que é um Estado independente».
A
proclamação da República da Guiné-Bissau fora o primeiro passo (e a chave) da
desintegração do Portugal colonial. Marcelo Caetano ficara refém da “teoria dos
dominós”[13], e esta
passava a abranger uma nova perspectiva, que não havia sido considerada
autonomamente: a eventualidade de sucessivas declarações unilaterais de
independência por todas as partes – pois, à última hora, conspirativamente, a
parte portuguesa também se iria envolver nesta via quanto a Angola e Moçambique[14].
Quer dizer, a separação dos territórios coloniais do Estado
metropolitano podia ter-se transformado em desmembramento. Todavia o
reconhecimento de jure da República
da Guiné-Bissau pela parte portuguesa abriu a via à independência rápida e
geral, mediante acordo com os movimentos de libertação
nacional.
António
Duarte Silva
[1] Sobre todo este processo, Nações Unidas – Assembleia Geral – A/PV. 2157, de 20/10/73 até A/PV. 2163, de 2/11/73, e um resumo in Yearbook of the United Nations – 1973 –
Vol. 27, Office of Public Information, Nova Iorque, pp. 143/147.
[2] Norrie MacQueen, “Marcelismo, Africa and the United
Nations [With particular reference to the British response to the PAIGC´s
Declaration of Independence for Guinea-Bissau]”, in Manuela Franco (coord.), Portugal, os Estados Unidos e a África
Austral; Lisboa, Fundação Luso-Americana/IPRI, 2006, pp. 115/ 116, e Pedro
Aires de Oliveira, “Live and Let Live: Britain and Portugal´s Imperial Endgame”,
in Portuguese Studies, Vol. 29, n.º
2, 2013, p. 203.
[3] Bunyan Briant e alii,
“Recognition of Guinea(Bissau)”, in Harvard
International Law Journal; Cambridge, Mass., Vol. 15, verão de 1974, pp.
482 e segs., especialmente p. 495.
[4] Antonio Truyol y Serra, “Théorie du Droit
International”,in Recueil des Cours de
l’Académie de Droit International Public. Tomo 173, Vol. IV, 1981, p. 341,
e La sociedad internacional, Madrid,
Alianza Editorial, p. 187, nota 1.
[5] Alfred Verdross, Derecho
Internacional Publico, tradução da 3.ª edição alemã, Madrid, 1982, p. 231,
nota 16b.
[6] Paulette Pierson-Mathy, La naissance de l’Etat par la guerre de libération nationale: le cas de
la Guinée-Bissau, UNESCO, 1980, pp. 84/85.
[7] Paul Tavernier, “L’Année des Nations Unies (20 Décembre
1972 – 18 Décembre 1973) – Questions Juridiques”, in Annuaire Français de Droit International, Vol. XIX, 1973, p. 628.
[8] Charles Zorgbibe, A
guerra civil, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1977, p. 154.
[9] John Dugard, Recognition
and the United Nations, Cambridge, Grotius Publications Limitede, 1987, p.
74.
[10] Norrie MacQueen,
“Related Decolonization and the UN Politics against the Backdrop of the
Cold War: Portugal, Britain and the Guinea Bissau’s Proclamation of
Independence”, in Journal of Cold War
Studies, 8, n.º 4, 2006, pp. 29 e segs..
[11] Pedro Aires de Oliveira, “A Política Externa do
Marcelismo: A Questão Africana”, in Fernando Martins (ed.), Diplomacia & Guerra, Lisboa, Edições
Colibri, 2001, pp. 241 e 259.
[12] Mário António Fernandes de Oliveira (dir.), A Descolonização Portuguesa – Aproximação a
um estudo, I Volume, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, 1979, p.
198.
[13] Pedro Aires de Oliveira, ibidem, pp. 263/265.
[14] Por exemplo, Norrie MacQueen, “Portugal’s First
Domino: ‘Pluricontinentalism’ and Colonial War in Guinea-Bissau, 1963-1974”, in
Contemporory European History, 8, 2
(1999), p. 227.
Very happy on this occasion because it was given a useful info thanks .
ResponderEliminarKenali Gejala Penyakit Jantung Dan Pencegahannya
Obat Alami Untuk Pembengkakan Prostat
Obat Tumor Payudara Paling Ampuh
Obat Lambung Perih Tradisional
Cara Mengobati Divertikular Secara Alami
Apa Obat Herbal Radang Kandung Empedu Terbaik
Obat Tulang Keropos Secara Alami
Obat Mata Miopi Terbaik
Cara Mengobati Oligospermia Agar Bisa Sembuh Secara Alami
Ketahui Bahaya Infeksi Paru-Paru Pada Anak
Cara Alami Mengobati Kanker Hati Tanpa Operasi