sábado, 23 de julho de 2016

Amália e Frank Sinatra, entre outras reminiscências.

 
 
 
 
         Como de costume, fui passar as férias de Natal a Portugal, normalmente com um mês de duração, férias que ocupava geralmente a fazer pesquisas literárias em bibliotecas e arquivos portugueses, a ler e a escrever.
         Conhecendo já bem a Amália Rodrigues, em virtude dos nossos frequentes encontros em casa do Dr. Adriano Seabra Veiga, primo direito do marido da Amália, o Eng. César Seabra, o Dr. Veiga  e a esposa dele, a Dona Rita, pediram-me que levasse um pequeno presente à Amália.
         Chegado a Portugal e alojado no meu condomínio do Estoril, telefonei para casa da Amália a perguntar quando podia passar por lá para a cumprimentar e para lhe entregar o presente de Natal mandado pelo primo do marido e pela D. Rita. Como a Amália só se levantava normalmente cerca da uma ou duas da tarde (as noites eram passadas, com frequência, em tertúlias intermináveis com os amigos que quisessem aparecer lá por casa), foi-me dito que podia ir por volta das duas da tarde.
         Quando cheguei, fui recebido pelo César, o qual me disse que a Amália ainda se encontrava no quarto, mas que já se tinha levantado. Que me sentasse e esperasse um momento, que a Amália já vinha. Passados uns instantes, apareceu a Amália, ainda vestida de robe caseiro. Como ela ainda não tinha tomado o pequeno-almoço, pediu-me que me sentasse à mesa com ela, para irmos conversando enquanto ela comia alguma coisa, por sinal uma refeição muito leve, que fazia de pequeno-almoço e de almoço. Como o César já tinha almoçado e eu também, fomos conversando todos enquanto a Amália comia.
         Aqui um breve aparte, antes de voltar ao fio da história. Trocados os cumprimentos, a primeira coisa que a Amália me disse foi que não reparasse na modéstia da casa: que era uma casa de gente simples, que de forma alguma se podia comparar com as casas dos nouveaux riches (sic). Ao que o César replicou, em tom meio jocoso: −Ó Amália, deixa-te lá dessa falsa modéstia, que o Dr. Cirurgião já pôde observar as belas telhas da parte de fora da casa e os ricos azulejos das escadas e o teu retrato ao cimo das escadas e alguns dos quadros e dos tapetes e até algumas peças de mobília, para já não falar do teu famoso presépio.
         Ao desembrulhar o presente de Natal, a Amália notou que se tratava de umas fitas magnéticas com algumas das gravações das homenagens feitas nos canais de televisão americana em honra de Frank Sinatra, para comemorar os seus oitenta anos de vida. Acabaram-se abruptamente as meias conversas sobre mil e uma coisas, qual delas a mais inconsequente. A partir desse momento, a Amália só estava interessada numa coisa: saber de mim, presumível testemunha ocular e auricular dessas homenagens, a maneira como os americanos tinham celebrado os oitenta anos do lendário e mítico cantor e actor americano. A Amália queria saber tudo e mais alguma coisa. Eu, na minha proverbial ingenuidade, não compreendia a razão de ser desse interesse desmedido e obsessivo, por parte da Amália, nas ditas comemorações. Mas, pouco a pouco, através dos anos, lá fui compreendendo que a Amália, que em nada tinha por que se sentir inferior ao “Chairman of the Board” ou o “Blue Eyes”, no mundo da música, e no do cinema, na realidade estava a imaginar como desejava ser festejada em Portugal em idênticas efemérides.
         E foi nesse momento que me dei conta pela primeira vez da fome insaciável que a Amália tinha de ser reconhecida como a maior cantora de Portugal de todos os tempos, que aliás o era, na opinião de muito boa gente, exigindo do grande público português e do governo esse reconhecimento. Ela que já tinha sido várias vezes homenageada, ao mais alto nível, tanto em Portugal como no estrangeiro; ela que já tinha recebido condecorações tanto do governo português como de vários governos estrangeiros, entre os quais sobressaía o francês; ela, que já tinha recebido testemunhos públicos tanto de entidades privadas portuguesas como estrangeiras; ela achava que tudo isso era pouco para a rainha do fado.
           A carência que a Amália tinha de ser amada e admirada! As repetidas e amargas queixas que ela me fazia da ingratidão dos homens e do mundo!
Continuando a digressionar, não posso esquecer o dia em que, por ocasião de um jantar em casa do Dr. Seabra Veiga, no momento em que estávamos a levantar-nos da mesa para irmos para a sala de estar, a Amália me depositou nas mãos uma revista francesa, recém-publicada, pedindo-me que lesse um longo artigo que aí vinha sobre ela. Com a revista na mão, apressei-me a dizer que oportunamente leria o artigo com o maior prazer, ao mesmo tempo que me encaminhava para a sala de estar, onde já nos esperavam o Dr. Veiga e a D. Rita e a D. Lili, secretária dedicadíssima e fiel companheira da Amália. Qual quê. Que fizesse o favor de ler o artigo nesse preciso momento. E que lho lesse em voz alta. E eu li o artigo e li-o em voz alta, naquele “preciso momento”, como me fora pedido. E, enquanto lia, pude reparar, pelo cantinho maroto do olho direito, no embevecimento da Amália no decorrer dessa leitura. É que o artigo era cem por cento elogioso e positivo, pondo a Amália nos píncaros da lua. Lembro-me que nesse artigo se dizia que a Amália Rodrigues e a Maria Callas eram as duas maiores cantoras do século XX e que Portugal era o país dos três efes: de Fátima, do Futebol e do Fado. E foi nessa precisa ocasião que a Amália me disse pela primeira vez uma coisa que eu lhe ouviria repetir vezes sem conta através dos anos: que os dois portugueses mais conhecidos no mundo contemporâneo eram o Eusébio e a Amália. E nesse aspecto tinha a Amália toda a razão, como eu pude constatar, não só como português da diáspora a viver nos Estados Unidos, mas como cavaleiro andante por esse mundo fora (viajar foi sempre um dos meus vícios, tomando à letra o velho dito dos fenícios, evocado por Fernando Pessoa e celebrado em música por Maria Bethânia: “viver não é preciso: navegar é preciso”).
Foi outrossim nessa ocasião que ela me confessou, pela primeira vez (facto que me viria a repetir também vezes sem conta), da mágoa que sentira – e que continuava a sentir, e continuaria a sentir, enquanto vivesse – ao ser acusada de fascista, logo após o 25 de Abril de 1974. Que jamais fora fascista; que era portuguesa, de alma e coração, e que cantara sempre e continuaria a cantar para quem quisesse ouvi-la, desde os presidentes da República às pessoas mais simples do povo, e independentemente das cores políticas de cada um. Que fora por causa dessas acusações infundadas e injustas que ela recusara e viria a recusar terminantemente emprestar a sua voz às festas anuais do Avante!, apesar da insistência com que esse pedido lhe era feito todos os anos, por intermédio das pessoas mais influentes. Que lhe tinham despudoradamente vestido a casaca de fascista e que depois a queriam ver a abrilhantar os palcos dessa cambada de oportunistas sem escrúpulos? Que ela tinha a sua dignidade e que essa dignidade tinha ela a obrigação de defendê-la durante a vida inteira. 
         A esmo, vou atirar para o papel, ou melhor, para o ventre do computador, com mais alguns episódios referentes ao meu convívio com a Amália, na esperança de que eles possam vir a dar uma pequenina contribuição para um melhor conhecimento de uma das jóias mais brilhantes do brasão de Portugal (desconfio que alguns deles já se encontram registados algures, mas, na incerteza, vou pelo princípio que diz que, em casos destes, é melius abundare quam defficere, adágio que poderíamos traduzir aproximadamente assim: é melhor pecar por excesso que por defeito).
         No final de um dos almoços que tive com a Amália em casa do Dr. Veiga, em Waterbury, dirigi-me ao consultório médico dele. A primeira coisa que fiz foi pedir à Diana, uma das enfermeiras e a recepcionista, que adivinhasse com quem eu tinha almoçado nesse dia. Sem qualquer hesitação, ouço dos lábios da Diana estas palavras mais ou menos textuais: “Professor, não me diga que também é um dos escravos da Amália.” Perante essas palavras, não pude deixar de reflectir, mais tarde, que, como em muitas outras coisas, era preciso o necessário distanciamento, a fim de poder compreender o verdadeiro sentido de determinados comportamentos. A Diana, na sua qualidade de recepcionista e enfermeira, e, sobretudo, de americana genuína, nada e criada na democrática América, a trabalhar há vários anos no consultório do Dr. Veiga, já tinha observado mais que o suficiente para poder concluir, muito acertadamente, que, a julgar pela subserviência demonstrada para com a Amália pelos seus acompanhantes, a começar pela Dona Lili, espécie de secretária, governanta e companheira, e a acabar pelos pacientes e enfermeiras de origem portuguesa do Dr. Veiga, todos se comportavam como se fossem escravos da Amália. E a Amália, por sua vez, nada fazia para desencorajar esse comportamento. Antes pelo contrário. Mas, diga-se de passagem, essa atitude tinha a mais lógica das explicações. Ao fim e ao cabo, tratava-se de hábitos ancestrais, sancionados pelas leis da tribo.
         Para comprovar coisas desta natureza não há como referir casos concretos. Como era meu costume - e continuou sendo -, normalmente, quando era convidado para almoçar ou jantar em casa dos Veigas, levava um ramo de flores para a D. Rita. Pois bem: sabendo que a Amália estava hospedada em casa deles, em vez de um ramo de flores, levava dois. E que aconteceu das duas primeiras vezes? Eu a entrar a porta com os dois ramos de flores e a Amália a apoderar-se de ambos, com enorme sofreguidão, como se só ela tivesse direito a ramos de flores. De maneira que, perante essa  experiência, a partir da segunda visita eu fazia questão de dizer muito claramente que um dos ramos de flores era para a Amália e o outro era para a D. Rita. Acentuo, a propósito, que a Amália aproveitava a ocasião para me dizer que sempre adorara flores, e, particularmente, as flores silvestres. Que algumas das horas mais agradáveis da sua vida eram aquelas que ela passava no seio dos campos, extasiando-se a contemplar a beleza das flores e a inalar o seu perfume inebriante.    
 
         Não foi preciso deixar passar muito tempo, logo após os primeiros encontros, para me dar conta de que a Amália gostava de falar comigo. Entretanto, sabendo do meu estatuto de professor universitário, começava quase sempre por repetir, no início das nossas conversas, que ela apenas tinha feito uma simples quarta classe, não era ninguém para poder dialogar com um professor universitário. Que eu devia desculpar o seu atrevimento. Mas que ela tinha uma grande curiosidade intelectual e que sempre gostara de falar com pessoas cultas. E que os assuntos de que mais gostava de conversar eram a filosofia e a poesia. E como eu lhe observasse, em abono da verdade, sem a mínima aparência de lisonja, quando ela tomava essa atitude de inferioridade intelectual, que conhecia muitas pessoas com títulos universitários que mal acompanhavam uma conversa de carácter mais elevado, no campo da cultura geral, fenómeno comum nos meios intectuais americanos, e que não era necessário frequentar academias ou instituições de ensino superior para ser culto e ter genuína curiosidade intelectual, a Amália descia ao mundo da realidade e limitava-se a conversar com a maior das naturalidades. Aliás, eu sabia muito bem que a Amália convivia e conversava, nos longos serões realizados em sua casa, com toda a espécie de intelectuais, portugueses e estrangeiros, principalmente com gente das letras e das artes.
         Um dia, à mesa de um dos vários restaurantes portugueses de Waterbury, no estado de Connecticut, aonde por vezes íamos almoçar, a conversa entre a Amália e o Cirurgião encaminhou-se para questões de religião e de fé religiosa. Ao perceber que eu era agnóstico, recorreu a uma série de argumentos para me fazer ver que Deus existia e que era preciso e era bom acreditar n’Ele. E não posso esquecer-me que o último argumento a que Amália recorreu, mais de uma vez, para tentar converter-me à religião católica, consistiu em apontar para as flores que enfeitavam a mesa e perguntar-me, retoricamente, se a existência de umas flores tão belas e tão bem cheirosas não pressupunham a mão sábia e omnipotente de um Criador. E isso – prosseguia ela – para não falar dos alimentos que acabáramos de saborear. E, saídos do restaurante, estava eu a abrir-lhe a porta do carro quando ela me pediu desculpa por tentar converter-me ao Catolicismo. Mas que tudo isso o fazia ela por bem. Que tinha pena que uma pessoa tão boa e tão culta como eu não tivesse fé (rogo se me releve esta maneira de falar, mas o memorialista narra os factos: não os inventa). Que, por isso, eu fizesse o favor de lhe não levar a mal o atrevimento. Claro que eu não levei a mal – nem poderia levar a mal, antes pelo contrário, – esse santo atrevimento à Santa Rainha do Fado, que se dignou honrar-me com a sua amizade.    
 
António Cirurgião
 
 
 
PS. – lembrei-me de evocar a memória da Amália por ocasião do seu aniversário natalício, ocorrido no dia 23 de Julho de 1920.


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