Os vampiros nunca
saíram de moda, antes de serem personificados pelo conde Drácula já faziam
parte de diferentes mitologias do mal onde pululam hidras, górgonas, lobisomens
e figuras fantasmáticas do mundo das trevas. A sua presença na
contemporaneidade, com expressão na literatura e no cinema, decorrem
naturalmente da atracção pelas situações-limite entre o homem e a fera, o belo
demoníaco, o sugador que depreda até à queda final. Há, evidentemente, outras
dimensões que se podem explorar na procura de uma explicação sobre a moda dos
vampiros: há quem diga que esta sociedade competitiva, sem escrúpulos, de
triunfadores e predadores excita o imaginário dos vampiros. E o vampiro como
homem condenado é a maldade sem perdão.
Os Vampiros, Tinta-da-china,
2016, é um acontecimento de BD pelo nome do argumentista e do desenhador.
Filipe Melo é polifacetado, na música e na BD, Juan Cavia é director de arte
para cinema e publicidade, é nome sonante do audiovisual. Meteram ombros a um
projecto temerário: guerra da Guiné, uma estranha patrulha dentro do Senegal,
uma viagem com monstros (na consciência e à solta), uma missão aparentemente
formal é dada a um grupo de homens. Metem-se à mata, a viagem marcha de
assombro em assombro, o terror é imparável, até ao deslindamento final.
O álbum abre com uma
citação do padre António Vieira, vem mesmo a propósito: “É a guerra aquele
monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come
e consome, tanto menos se farta”. Quem viaja a caminho daquela missão leva
imensas dores, estamos em Dezembro de 1972, os militares da missão saem de uma
LDP, encontram-se com outros militares que saem do helicóptero, sabemos que o
manda-chuva é o sargento Emanuel Ferreira dos Santos, é um grupo pequeno e tem
um guia africano. Em pleno mato sabemos que a missão é atravessar a fronteira
para o Senegal e fazer um reconhecimento, confirmar aonde é que fica uma base
do PAIGC junto à fronteira, enviar as coordenadas por rádio e voltar ao ponto
de recolha. Internam-se mato adentro. Surgem as primeiras imagens de
atrocidades, há miragens que o leitor ainda não está em condições de
descodificar, um atirador furtivo faz a primeira baixa na patrulha, é depois
liquidado, reacendem-se imagens de barbárie (corte de orelha); as tropas fazem
um alto, há trocas de confidências, alguém se refere ao sargento como o maior
carniceiro da Guiné, há pesadelos, e recomeça a viagem, o soldado de nome
Totobola gaba-se da sorte que tem tido, pisa uma mina, temos a segunda vítima,
os ânimos aquecem, o sargento Santos manda prosseguir, aparece uma nativa com
um filho, repete-se a violência, mãe e filho são abatidos, os militares começam
a descontrolar-se e a apontar as armas uns aos outros, há quem tenha pesadelos
num períodos de descanso, a marcha prossegue debaixo de chuva diluviana, a
patrulha dá com o corpo do guia Sanhá mutilado a face com uma expressão de
horror total, os olhos ensanguentados.
Estamos agora no
segundo capítulo, a citação é tirado do livro Moby Dick de Herman Melville: “A
loucura humana é a coisa mais matreira e felina que existe. Quando pensamos que
desapareceu, pode apenas ter-se transfigurado numa forma ainda mais subtil”. A
patrulha aproxima-se da base rebelde, depara-se-lhes uma autêntica carnificina.
Atónitos com este banho de sangue, procuram vivos, na escuridão sobressaem
olhos sanguinolentos, aparece alguém aterrorizado, é abatido, um dos elementos
da patrulha aparece ferido e delirante, o contingente militar percebe que estão
cercados por um inimigo invisível, barricam-se nas instalações. Mais pesquisas
e encontra-se um outro elemento que teria pertencido ao grupo abatido,
encontrara um esconderijo, mais cenas de violência, novamente há camaradas a
apontar armas aos seus camaradas. O sobrevivente, que não fala português,
consegue uma ligação rádio, o comandante da patrulha dá as coordenadas. A
espera continua, o rádio emudecido.
Temos agora o terceiro
e último capítulo, Zeca Afonso é a citação com os seus Vampiros: “No céu
cinzento, sob o astro mudo,/batendo as asas, pela noite calada,/vêm em bandos,
com pés de veludo,/chupar o sangue fresco da manada./Eles comem tudo, eles
comem tudo,/eles comem tudo e não deixam nada”. Há, durante esta longa espera,
diálogos confusos, cortaram a luz do exterior, a força sitiada abre a porta,
chegou um jipe com gente armada, tudo vai correr mal. O sargento Santos
desabafa acerca da família que o espera: “O homem de quem elas estão à espera
já não existe. Morreu pouco depois de chegar à Guiné”. Amanhece, vem um avião e
bombardeia a posição com Napalm. A força militar está praticamente extinta, e
aparece um jipe, e no uso da metáfora os autores dão-nos conta de quem
sobrevive fica sujeita à condição de vampiro.
Nada ao nível das artes
da banda desenhada tinha acontecido entre nós com um traço tão plausível, um
estudo tão apurado do mundo tropical, do horror da guerra, dos transportes
militares, do caminhar dentro da mata, podendo-se discutir se os ambientes de
floresta podem ser totalmente identificados com as lalas e matas guineenses. Há
o jargão intenso da caserna, a despeito de alguém dizer “tudo bem”, expressão
que ninguém usava naqueles tempos. A arte, convém esclarecer os mais céticos e
exigentes no tratamento do que foi aquela guerra, tem liberdades, metáforas e
bizarrias que não devem ser encaradas como ofensas a quem combateu. Ninguém
imagina um grupo tão pequeno a fazer aquela incursão no Senegal; não se pode
fazer uma leitura literal daqueles vampiros e aos exageros da barbárie. Tomando
como referência as citações dos três capítulos, a guerra foi aquele monstro que
quanto mais comia menos se fartava, põe todos os homens contra todos os homens,
e em que a loucura se transfigura porque há patrulhas, flagelações, inimigos
imprevisíveis, minas, muitas minas, é um terreno de eleição para que o homem se
sinta moldado no papel de sugador, de besta insaciável. A propósito de uma
história que nesta banda desenhada ocorre em Dezembro de 1972, no Norte da
Guiné, até parece ajustado lembrar aquele coronel do filme Apocalypse Now que
vive empolgado com o horror e no horror é justiçado por ter quebrado todas as
normas por que se rege a instituição militar.
“Os Vampiros”, de
Filipe Melo e Juan Cavia são um marco miliário na BD portuguesa. Aquela guerra
da Guiné atingira a monstruosidade de que quanto mais consumia tanto menos se
fartava.
Mário Beja
Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário