quarta-feira, 20 de julho de 2016

Reconhecimentos e recusas da declaração de independência da Guiné-Bissau.

 
 

 
 
1.     Reacções portuguesas
A Declaração Unilateral de Independência (DUI) da Guiné-Bissau só foi noticiada em Portugal a 28 de Setembro de 1973, numa primeira página especialmente preparada do oficioso Diário de Notícias. Toda a metade superior era dedicada à “conversa em família”, proferida na noite anterior por Marcelo Caetano, em vésperas do início da campanha eleitoral para a Assembleia Nacional e a propósito da passagem do 5.º aniversário da sua entrada para o Governo. Confessou estar-se num momento muito delicado, no qual duas opções decisivas resumiam a conjuntura: por um lado, a Oposição apresentava candidatos apenas para criar um clima pré-revolucionário, senão revolucionário, em que se destacava o propósito de preconizar o chamado "fim da guerra colonial"; por outro, era inegável a conivência com os movimentos que no Ultramar atacavam Portugal. Não fez, no entanto, qualquer referência à independência da Guiné-Bissau.
         No canto inferior direito havia duas notícias. Uma dizia que, em comunicado publicado numa capital estrangeira, o PAIGC proclamara a independência da Guiné, resumindo um telegrama das agências France Press e Reuter. A outra, ainda mais pequena, referia que, em vésperas de partida para Bissau, o novo Governador da Guiné, Bethencourt Rodrigues, apresentara cumprimentos a várias individualidades.
         A parte inferior dessa primeira página era dedicada à entrevista concedida por Spínola. Destacavam-se duas afirmações: (i) a de que, embora quanto a população e governo ainda fosse «fácil fantasiar montagens e simulações», quanto a território não havia «qualquer hipótese dum mínimo de realidade e consequência deste novo gesto»; (ii) já quanto ao local indicado, o quadro era ambíguo e seria «perfeitamente possível ao PAIGC proclamar a sua independência em território da República da Guiné». Spínola concluía depois que a proclamação não passaria de «incidente de mera propaganda» e, embora fossem previsíveis «bastantes» consequências, a eficácia da declaração de independência seria «nenhuma».
         No dia seguinte, o Diário de Notícias noticiava a partida do novo Governador da Guiné, acrescentando que as tropas portuguesas continuavam a patrulhar todo o território enquanto a proclamação não terá perturbado, «de modo algum, a população desta província».
         Marcelo Caetano pronunciou-se finalmente na alocução de 26 de Outubro, no termo da campanha eleitoral. Mostrou-se espantado por «logo na primeira sessão em Lisboa da Oposição, ter sido aclamada pela assistência, com entusiasmo, essa falaciosa independência da Guiné-Bissau». Não foram publicadas quaisquer outras opiniões, mas cabe destacar as posições assumidas pelos clandestinos Partidos Comunista e Socialista. Segundo o jornal Le Monde, de 8/10/73, Mário Soares, então exilado em França, felicitou o PAIGC, em nome do Partido Socialista (fundado havia pouco, em Maio). Já antes, entrevistado pelo jornal da emigração portuguesa, publicado na Alemanha, Diálogo do Emigrante, de 3/10/1973, havia saudado a independência como «um grande passo em frente»[1]. Por sua vez, pelo PCP, o Manifesto da Comissão Executiva do Comité Central, de 31/10/1973, apresentava a criação da República da Guiné-Bissau como exemplo recente dos êxitos obtidos pelos movimentos de libertação e uma nota do Secretariado do Comité Central, de Janeiro de 1974, defendeu expressamente o seu reconhecimento. Em Março, uma Declaração Comum, firmada em Paris num encontro entre as delegações do PCP e do PS, chefiadas por Álvaro Cunhal e Mário Soares (a qual não chegou a ser tornada pública, perante o desenrolar dos acontecimentos em Portugal), considerava que a única solução do problema colonial era o reconhecimento da independência da República da Guiné-Bissau e do direito à completa e imediata independência de Moçambique e Angola[2].
 
2.     Relação de reconhecimentos  
A DUI teve grande repercussão internacional. Tornou-se imediatamente o centro das atenções na ONU e, em 27 de Setembro de 1973, a delegação portuguesa entendeu necessário emitir um comunicado, considerando-a acto de propaganda e mera independência fictícia, desprovida de qualquer fundamento jurídico ou moral e não correspondendo às condições que prevaleciam nessa província portuguesa. Estes argumentos constituíram o essencial da intervenção do embaixador António Patrício, na noite de 29 de Setembro, no exercício do direito de resposta às intervenções feitas na Assembleia Geral. A 3 de Outubro, interveio o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício. O discurso não mereceu grande atenção do Plenário, ostensivamente abandonado em grupo pelas delegações dos países africanos e asiáticos. Só na parte final da intervenção se referiu à declaração de independência, rotulando-a de «imaginária» por o PAIGC apenas existir na República da Guiné-Conacri, único local onde poderia ter ocorrido tal «secessão».
Nas duas primeiras semanas, a República da Guiné-Bissau foi reconhecida por um total de quarenta Estados e dois Governos provisórios (o GRUNC, do Cambodja, e o GRP, do Vietname do Sul), com a sequência seguinte: em 27 de Setembro, pela Argélia, Congo, Guiné-Conacri, Alto Volta, Jugoslávia, Togo, Mauritânia, Somália, Madagáscar, Líbia, Nigéria, Libéria, Chade, Gana, Síria e Senegal; em 28 de Setembro, pela Etiópia, Egipto, Mali, Tunísia, Marrocos, Zaire, Níger, Sudão e Tanzânia; em 1 de Outubro, pela URSS, Burundi, Roménia, China, Koweit, República Democrática do Vietname, Daomé, RDA, Cuba, Serra Leoa, Iraque, Bangladesh, Uganda e República Democrática do Yemen; em 7 de Outubro, pela Índia. Este último, de iniciativa do Governo chefiado por Indira Gandhi, foi considerado um grande e inesperado êxito.
No final de Novembro, após a aprovação da resolução 3061 pela Assembleia Geral da ONU e a admissão na OUA, os reconhecimentos de jure duplicaram: setenta e nove Estados (entre eles, os primeiros latino-americanos – Guiana, Panamá, Haiti, Jamaica e Peru). Com o “25 de Abril de 1974”, o número de reconhecimentos voltará a crescer e, em fins de Maio, a República da Guiné-Bissau tinha sido reconhecida por oitenta e quatro Estados (e dois Governos Provisórios). Surpreendentemente, em 18 de Julho, quando o Governo português ainda não se decidira pela descolonização, o Brasil procedeu ao reconhecimento, causando «um profundo mal-estar em Portugal»[3]. E logo após as declarações portuguesas quanto à intenção de reconhecer de jure a independência, os reconhecimentos continuaram de tal modo que, antes de ser admitida como membro da ONU, em 17 de Setembro, a República da Guiné-Bissau já conseguira, praticamente, reconhecimento universal.
 
3.     Recusas de reconhecimento
Mas também houve, na altura da proclamação, alguns casos de recusa.
Em 10 de Outubro de 1973, o Departamento de Estado norte-americano dimanou uma instrução sobre a matéria. Depois de recordar que o reconhecimento não é obrigatório e acrescentar que o Governo norte-americano aplicava determinados critérios (tradicionais) e que tais critérios também tinham sido considerados em África aquando das transições pacíficas, concluía que a situação na Guiné-Bissau não era «ainda suficientemente clara para nos levar a uma primeira avaliação factual». O Departamento continuaria a acompanhar a situação com atenção, procurando que o conflito se resolvesse de acordo com o princípio da autodeterminação e esperando uma solução pacífica[4]. Em reservado, os EUA, embora em dificuldades, procuraram atender as diligências desesperadas do Governo português para evitar o generalizado reconhecimento internacional.
Em Novembro e Dezembro, insistentemente pressionado, o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Michel Jobert, teve de intervir quatro vezes na Assembleia Nacional, explicando que a posição do Governo francês perante o Estado da Guiné-Bissau era clara: não reconhecimento, pois considerava não estarem preenchidas as condições do direito internacional aplicável. Apesar da posição francesa na ONU não ter sido peremptória, acrescentou ainda que a França não apoiaria um eventual pedido de admissão e que o Governo francês estava convicto que só o respeito pela potência administrante do direito à autodeterminação permitiria encontrar uma solução pacífica para o problema. Relativamente ao reconhecimento do PAIGC, bem como de outros movimentos de libertação africanos, embora considerando que poderiam ser interlocutores na hipótese duma solução negociada, a França não admitia o seu reconhecimento oficial, no plano internacional, como representativos das populações[5].
Numa carta de 9 de Novembro de 1973, Lady Tweedsmuir, Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e do Commonwealth, recordou ser política do Governo britânico só reconhecer um novo Estado quando atinja uma posição independente com uma razoável perspectiva de permanência. Quanto ao reconhecimento de Governo, seria necessário que exercesse um efectivo controlo sobre a maior parte do território nacional com um razoável grau de permanência e beneficiasse da obediência da maioria da população. Como a situação na Guiné Portuguesa não satisfazia nenhum destes critérios, o Governo de Sua Majestade não podia conceder reconhecimento à auto-proclamada República da Guiné-Bissau ou ao seu Governo[6].
Em fins de Fevereiro de 1974, o Conselho Federal suíço também teve de se pronunciar, declarando não estarem preenchidas as condições impostas pelo direito internacional, visto que em caso de guerras de secessão e independência, quando um território procura separar-se dum Estado existente para constituir um novo Estado independente, o elemento de estabilidade exigia que o anterior soberano tivesse renunciado a recuperar o território perdido ou, se não o fizesse, que parecesse não ter qualquer hipótese de o recuperar[7].
Por sua vez, no início de Abril, os governos dos cinco Estados nórdicos (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia), através duma declaração do Ministro dos Negócios Estrangeiros dinamarquês, reiteraram que não encaravam reconhecer de imediato a nova República, pois para reconhecer um Estado eram necessárias fronteiras claramente definidas e uma autoridade que assegurasse um controlo absoluto sobre o território[8].
De destacar ainda que também o Alto Comissariado para os Refugiados, em Genebra, emitiu um Parecer sobre a incidência da declaração na situação dos refugiados, nomeadamente quanto à questão de saber se a respectiva aptidão ou qualificação (elegibility) se deveria reportar ao Estado português (como concluiu) ou à novel República[9].
 
4.     A doutrina internacional
Por seu lado, a grande maioria dos especialistas considerou prematuro o reconhecimento imediato – embora alguns mitigassem essa qualificação com o novo regime do reconhecimento quanto à descolonização, com reflexões sobre a incidência do reconhecimento no próprio requisito da efectividade e, num ou noutro caso, chamassem a atenção para as especificidades do processo em causa. Alguns autores sublinharam que o reconhecimento imediato representava mesmo «uma aplicação do critério tradicional de controlo (apesar de o critério não ter provavelmente sido aplicado tão rigorosamente como costuma ser), e não da sua substituição»[10]. N. Shaw fala de aceitação dum «nível baixo de efectividade»[11], James Crawford duma «efectividade qualificada»[12], outros distinguem entre as «efectividades formais» e as «efectividades estruturais». Esta última é a posição de Ibrahima Fall, representante do Senegal na ONU e futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros, que num extenso estudo se inclinou no sentido da pertinência do reconhecimento imediato da independência, embora concedido «num momento em que as efectividades estruturais ainda [estariam] em vias de realização»[13].
 
5.     A data, o tempo e o modo da independência
     Sendo o nascimento de um novo Estado um facto cuja existência não depende das intenções ou apreciações dos demais Estados, a independência da Guiné-Bissau data da sua proclamação (unilateral). O reconhecimento por outros sujeitos de direito internacional completa o processo de criação e é retroactivo, ou seja, produz os seus efeitos a contar do nascimento efectivo do novo Estado (e não da data do seu reconhecimento).
Sem dúvida: a independência da Guiné-Bissau data de 24 de Setembro de 1973 (embora a “descolonização portuguesa” só se inicie em 1974).
Antecipou-se, portanto, ao “25 de Abril de 1974” e à Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, em função da qual o Estado português expressamente a aceitou em 10 de Setembro de 1974, reconhecendo de jure a República da Guiné-Bissau (conforme impôs o Acordo de Argel). 
O tempo foi pois – confirmou-se – a única variável independente e era, na descolonização, o factor de que dependiam todos os demais[14]. Q­­­­uanto ao modo, a República da Guiné-Bissau formou-se (em sentido amplo) no exercício do direito à descolonização sob a modalidade (em sentido restrito) de declaração unilateral de independência através de uma assembleia constituinte. Foi simultaneamente um caso original e causa principal da descolonização portuguesa, que antecipou, acelerou e condicionou.
 
(continua)
António Duarte Silva
 
 


[1] Mário Soares, Escritos no Exílio, Lisboa, Bertrand, p. 282.
[2] In PCP, Documentos do Comité Central do Partido Comunista Português (1965-1974), Lisboa, Edições Avante, 1975, pp 414 e 429, e Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril; Lisboa, Edições Avante, 1999, pp. 78/79.
[3]  Thiago de Almeida Carvalho, Do Lirismo ao Pragmatismo – A Dimensão Multilateral das Relações Luso-Brasileiras (1974-1976), Lisboa, Associação dos Amigos do Arquivo Histórico Diplomático, 2009, p. 85, e “O Brasil e o fim do Império português”, in Miguel Bandeira Jerónimo e António Costa Pinto (org.), Portugal e o fim do colonialismo – Dimensões internacionais, Lisboa, Edições 70, 2014, pp. 162/163.
[4] Publicado apud Arthur W. Rovine, “Contemporary Practice of the United States Relating to International Law”, in American Journal of International Law, 1973, p. 309.
[5] Cfr. Charles Rousseau, “Guinée-Bissau”, in Revue Générale de Droi International Public, 1974/IV, p. 1169, e J. Charpentier, “Pratique française concernant le droit international public”, in Annuaire Français de Droit International, XX, 1974, pp. 1064 e 1066.
[6] Transcrito apud Basil Davidson, Growing from grass roots – The State of Guinea-Bissau, Londres, Committee for Freedom in Mozambique, Angola and Guinea, 1974, p. 11.
[7] Cfr. Charles Rousseau, ibidem.
[8] Ibidem.
[9] “The creation of the Republic of Guinea-Bissau - Elegibility of persons from the newly constitued Republic of Guinea-Bissau”, Arquivo Mário Pinto de Andrade – Fundação Mário Soares, Pasta: 04309,002.006.­­­
[10] Michael Akehurst, Introdução ao Direito Internacional, Coimbra, Almedina, 1985, p. 315.
[11] M. N. Shaw, International Law, 2.ª ed., Cambridge, Grotius, 1986, pp. 130/131.
[12] James Crawford, The Creation of States in International Law, Oxford, Clarendon Press, 1979, p. 262.
[13] Ibrahima Fall, “La reconnaissance de la Guinée-Bissau et le droit international”, in Annales Africaines, 1973, Pédone/Universidade de Dacar, pp. 155 e segs.
[14] Amílcar Cabral, Relatório apresentado na 4ª reunião do Comité Especial da ONU para os Territórios Administrados por Portugal, Conacri, 5 de Junho de 1962 (também intitulado Notre peuple, le gouvernement portugais et l’ONU) – cfr. Arquivo Amílcar Cabral – Fundação Mário Soares, 07. Organizações Internacionais, ONU, Pasta: 04602.056.

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