1.
Reacções portuguesas
A Declaração Unilateral de Independência (DUI)
da Guiné-Bissau só foi noticiada em Portugal a 28 de Setembro de 1973, numa
primeira página especialmente preparada do oficioso Diário de Notícias. Toda a metade superior era dedicada à “conversa
em família”, proferida na noite anterior por Marcelo Caetano, em vésperas do
início da campanha eleitoral para a Assembleia Nacional e a propósito da
passagem do 5.º aniversário da sua entrada para o Governo. Confessou estar-se
num momento muito delicado, no qual duas opções decisivas resumiam a
conjuntura: por um lado, a Oposição apresentava candidatos apenas para criar um
clima pré-revolucionário, senão revolucionário, em que se destacava o propósito
de preconizar o chamado "fim da guerra colonial"; por outro, era
inegável a conivência com os movimentos que no Ultramar atacavam Portugal. Não
fez, no entanto, qualquer referência à independência da Guiné-Bissau.
No
canto inferior direito havia duas notícias. Uma dizia que, em comunicado
publicado numa capital estrangeira, o PAIGC proclamara a independência da
Guiné, resumindo um telegrama das agências France
Press e Reuter. A outra, ainda
mais pequena, referia que, em vésperas de partida para Bissau, o novo
Governador da Guiné, Bethencourt Rodrigues, apresentara cumprimentos a várias
individualidades.
A
parte inferior dessa primeira página era dedicada à entrevista concedida por
Spínola. Destacavam-se duas
afirmações: (i) a de que, embora quanto a população e governo ainda fosse
«fácil fantasiar montagens e simulações», quanto a território não havia
«qualquer hipótese dum mínimo de realidade e consequência deste novo gesto»;
(ii) já quanto ao local indicado, o quadro era ambíguo e seria «perfeitamente
possível ao PAIGC proclamar a sua independência em território da República da
Guiné». Spínola concluía depois que a proclamação não passaria de «incidente de
mera propaganda» e, embora fossem previsíveis «bastantes» consequências, a
eficácia da declaração de independência seria «nenhuma».
No
dia seguinte, o Diário de Notícias
noticiava a partida do novo Governador da Guiné, acrescentando que as tropas
portuguesas continuavam a patrulhar todo o território enquanto a proclamação
não terá perturbado, «de modo algum, a população desta província».
Marcelo Caetano pronunciou-se finalmente
na alocução de 26 de Outubro, no termo da campanha eleitoral. Mostrou-se
espantado por «logo na primeira sessão em Lisboa da Oposição, ter sido aclamada
pela assistência, com entusiasmo, essa falaciosa independência da
Guiné-Bissau». Não foram publicadas quaisquer outras opiniões, mas cabe
destacar as posições assumidas pelos clandestinos Partidos Comunista e
Socialista. Segundo o jornal Le Monde,
de 8/10/73, Mário Soares, então exilado em França, felicitou o PAIGC, em nome
do Partido Socialista (fundado havia pouco, em Maio). Já antes, entrevistado
pelo jornal da emigração portuguesa, publicado na Alemanha, Diálogo do Emigrante, de 3/10/1973,
havia saudado a independência como «um grande passo em frente»[1]. Por sua
vez, pelo PCP, o Manifesto da Comissão
Executiva do Comité Central, de 31/10/1973, apresentava a criação da
República da Guiné-Bissau como exemplo recente dos êxitos obtidos pelos
movimentos de libertação e uma nota do Secretariado do Comité Central, de
Janeiro de 1974, defendeu expressamente o seu reconhecimento. Em Março, uma Declaração Comum, firmada em Paris num
encontro entre as delegações do PCP e do PS, chefiadas por Álvaro Cunhal e
Mário Soares (a qual não chegou a ser tornada pública, perante o desenrolar dos
acontecimentos em Portugal), considerava que a única solução do problema
colonial era o reconhecimento da independência da República da Guiné-Bissau e
do direito à completa e imediata independência de Moçambique e Angola[2].
2.
Relação de reconhecimentos
A DUI teve grande repercussão internacional.
Tornou-se imediatamente o centro das atenções na ONU e, em 27 de Setembro de
1973, a delegação portuguesa entendeu necessário emitir um comunicado,
considerando-a acto de propaganda e mera independência fictícia, desprovida de
qualquer fundamento jurídico ou moral e não correspondendo às condições que
prevaleciam nessa província portuguesa. Estes argumentos constituíram o
essencial da intervenção do embaixador António Patrício, na noite de 29 de
Setembro, no exercício do direito de resposta às intervenções feitas na Assembleia
Geral. A 3 de Outubro, interveio o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui
Patrício. O discurso não mereceu grande atenção do Plenário, ostensivamente
abandonado em grupo pelas delegações dos países africanos e asiáticos. Só na
parte final da intervenção se referiu à declaração de independência,
rotulando-a de «imaginária» por o PAIGC apenas existir na República da
Guiné-Conacri, único local onde poderia ter ocorrido tal «secessão».
Nas duas primeiras semanas, a República da
Guiné-Bissau foi reconhecida por um total de quarenta Estados e dois Governos
provisórios (o GRUNC, do Cambodja, e o GRP, do Vietname do Sul), com a
sequência seguinte: em 27 de Setembro, pela Argélia, Congo, Guiné-Conacri, Alto
Volta, Jugoslávia, Togo, Mauritânia, Somália, Madagáscar, Líbia, Nigéria,
Libéria, Chade, Gana, Síria e Senegal; em 28 de Setembro, pela Etiópia, Egipto,
Mali, Tunísia, Marrocos, Zaire, Níger, Sudão e Tanzânia; em 1 de Outubro, pela
URSS, Burundi, Roménia, China, Koweit, República Democrática do Vietname,
Daomé, RDA, Cuba, Serra Leoa, Iraque, Bangladesh, Uganda e República
Democrática do Yemen; em 7 de Outubro, pela Índia. Este último, de iniciativa
do Governo chefiado por Indira Gandhi, foi considerado um grande e inesperado
êxito.
No final de Novembro, após a aprovação da
resolução 3061 pela Assembleia Geral da ONU e a admissão na OUA, os
reconhecimentos de jure duplicaram:
setenta e nove Estados (entre eles, os primeiros latino-americanos – Guiana,
Panamá, Haiti, Jamaica e Peru). Com o “25 de Abril de 1974”, o número de
reconhecimentos voltará a crescer e, em fins de Maio, a República da
Guiné-Bissau tinha sido reconhecida por oitenta e quatro Estados (e dois
Governos Provisórios). Surpreendentemente, em 18 de Julho, quando o Governo
português ainda não se decidira pela descolonização, o Brasil procedeu ao
reconhecimento, causando «um profundo mal-estar em Portugal»[3]. E logo
após as declarações portuguesas quanto à intenção de reconhecer de jure a independência, os
reconhecimentos continuaram de tal modo que, antes de ser admitida como membro
da ONU, em 17 de Setembro, a República da Guiné-Bissau já conseguira,
praticamente, reconhecimento universal.
3.
Recusas de reconhecimento
Mas também houve, na altura da proclamação,
alguns casos de recusa.
Em 10 de Outubro de 1973, o Departamento de
Estado norte-americano dimanou uma instrução sobre a matéria. Depois de
recordar que o reconhecimento não é obrigatório e acrescentar que o Governo
norte-americano aplicava determinados critérios (tradicionais) e que tais critérios
também tinham sido considerados em África aquando das transições pacíficas,
concluía que a situação na Guiné-Bissau não era «ainda suficientemente clara
para nos levar a uma primeira avaliação factual». O Departamento continuaria a
acompanhar a situação com atenção, procurando que o conflito se resolvesse de
acordo com o princípio da autodeterminação e esperando uma solução pacífica[4]. Em reservado, os EUA, embora em dificuldades, procuraram atender as diligências
desesperadas do Governo português para evitar o generalizado reconhecimento
internacional.
Em Novembro e Dezembro, insistentemente
pressionado, o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Michel Jobert, teve
de intervir quatro vezes na Assembleia Nacional, explicando que a posição do
Governo francês perante o Estado da Guiné-Bissau era clara: não reconhecimento,
pois considerava não estarem preenchidas as condições do direito internacional
aplicável. Apesar da posição francesa na ONU não ter sido peremptória,
acrescentou ainda que a França não apoiaria um eventual pedido de admissão e
que o Governo francês estava convicto que só o respeito pela potência
administrante do direito à autodeterminação permitiria encontrar uma solução
pacífica para o problema. Relativamente
ao reconhecimento do PAIGC, bem como de outros movimentos de libertação
africanos, embora considerando que poderiam ser interlocutores na hipótese duma
solução negociada, a França não admitia o seu reconhecimento oficial, no plano
internacional, como representativos das populações[5].
Numa carta de 9 de Novembro de 1973, Lady
Tweedsmuir, Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e do Commonwealth, recordou ser política do
Governo britânico só reconhecer um novo Estado quando atinja uma posição
independente com uma razoável perspectiva de permanência. Quanto ao
reconhecimento de Governo, seria necessário que exercesse um efectivo controlo
sobre a maior parte do território nacional com um razoável grau de permanência
e beneficiasse da obediência da maioria da população. Como a situação na Guiné
Portuguesa não satisfazia nenhum destes critérios, o Governo de Sua Majestade
não podia conceder reconhecimento à auto-proclamada República da Guiné-Bissau
ou ao seu Governo[6].
Em fins de Fevereiro de 1974, o Conselho
Federal suíço também teve de se pronunciar, declarando não estarem preenchidas
as condições impostas pelo direito internacional, visto que em caso de guerras
de secessão e independência, quando um território procura separar-se dum Estado
existente para constituir um novo Estado independente, o elemento de
estabilidade exigia que o anterior soberano tivesse renunciado a recuperar o
território perdido ou, se não o fizesse, que parecesse não ter qualquer
hipótese de o recuperar[7].
Por sua vez, no início de Abril, os governos
dos cinco Estados nórdicos (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia),
através duma declaração do Ministro dos Negócios Estrangeiros dinamarquês,
reiteraram que não encaravam reconhecer de imediato a nova República, pois para
reconhecer um Estado eram necessárias fronteiras claramente definidas e uma
autoridade que assegurasse um controlo absoluto sobre o território[8].
De destacar ainda que também o Alto
Comissariado para os Refugiados, em Genebra, emitiu um Parecer sobre a incidência
da declaração na situação dos refugiados, nomeadamente quanto à questão de
saber se a respectiva aptidão ou qualificação (elegibility) se deveria reportar ao Estado português (como
concluiu) ou à novel República[9].
4.
A doutrina internacional
Por seu lado, a grande maioria dos
especialistas considerou prematuro o reconhecimento imediato – embora alguns
mitigassem essa qualificação com o novo regime do reconhecimento quanto à
descolonização, com reflexões sobre a incidência do reconhecimento no próprio
requisito da efectividade e, num ou noutro caso, chamassem a atenção para as
especificidades do processo em causa. Alguns autores sublinharam que o
reconhecimento imediato representava mesmo «uma aplicação do critério
tradicional de controlo (apesar de o critério não ter provavelmente sido
aplicado tão rigorosamente como costuma ser), e não da sua substituição»[10]. N. Shaw
fala de aceitação dum «nível baixo de efectividade»[11],
James Crawford duma «efectividade qualificada»[12],
outros distinguem entre as «efectividades formais» e as «efectividades
estruturais». Esta última é a posição de Ibrahima Fall, representante do
Senegal na ONU e futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros, que num extenso
estudo se inclinou no sentido da pertinência do reconhecimento imediato da
independência, embora concedido «num momento em que as efectividades
estruturais ainda [estariam] em vias de realização»[13].
5.
A data, o tempo e o modo da independência
Sendo
o nascimento de um novo Estado um facto cuja existência não depende das
intenções ou apreciações dos demais Estados, a independência da Guiné-Bissau
data da sua proclamação (unilateral). O reconhecimento por outros sujeitos de
direito internacional completa o processo de criação e é retroactivo, ou seja,
produz os seus efeitos a contar do nascimento efectivo do novo Estado (e não da
data do seu reconhecimento).
Sem dúvida: a independência da Guiné-Bissau
data de 24 de Setembro de 1973 (embora a “descolonização portuguesa” só se
inicie em 1974).
Antecipou-se, portanto, ao “25 de Abril de
1974” e à Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, em função da qual o Estado português
expressamente a aceitou em 10 de Setembro de 1974, reconhecendo de jure a República da Guiné-Bissau
(conforme impôs o Acordo de Argel).
O tempo foi pois – confirmou-se – a única
variável independente e era, na descolonização, o factor de que dependiam todos
os demais[14]. Quanto
ao modo, a República da Guiné-Bissau formou-se (em sentido amplo) no exercício
do direito à descolonização sob a modalidade (em sentido restrito) de
declaração unilateral de independência através de uma assembleia constituinte.
Foi simultaneamente um caso original e causa principal da descolonização
portuguesa, que antecipou, acelerou e condicionou.
(continua)
António Duarte Silva
[1] Mário Soares, Escritos
no Exílio, Lisboa, Bertrand, p. 282.
[2] In PCP, Documentos
do Comité Central do Partido Comunista Português (1965-1974), Lisboa,
Edições Avante, 1975, pp 414 e 429, e Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril; Lisboa, Edições
Avante, 1999, pp. 78/79.
[3] Thiago de
Almeida Carvalho, Do Lirismo ao
Pragmatismo – A Dimensão Multilateral das Relações Luso-Brasileiras (1974-1976),
Lisboa, Associação dos Amigos do Arquivo Histórico Diplomático, 2009, p. 85, e
“O Brasil e o fim do Império português”, in Miguel Bandeira Jerónimo e António
Costa Pinto (org.), Portugal e o fim do
colonialismo – Dimensões internacionais, Lisboa, Edições 70, 2014, pp.
162/163.
[4] Publicado apud Arthur W. Rovine, “Contemporary
Practice of the United States Relating to International Law”, in American Journal of International Law,
1973, p. 309.
[5] Cfr. Charles Rousseau, “Guinée-Bissau”, in Revue Générale de Droi International Public,
1974/IV, p. 1169, e J. Charpentier, “Pratique française concernant le droit
international public”, in Annuaire
Français de Droit International, XX, 1974, pp. 1064 e 1066.
[6] Transcrito apud Basil Davidson, Growing from grass roots – The State of Guinea-Bissau, Londres,
Committee for Freedom in Mozambique, Angola and Guinea, 1974, p. 11.
[7] Cfr. Charles Rousseau, ibidem.
[8] Ibidem.
[9] “The creation of the Republic of Guinea-Bissau -
Elegibility of persons from the newly constitued Republic of Guinea-Bissau”, Arquivo Mário Pinto de Andrade – Fundação
Mário Soares, Pasta: 04309,002.006.
[10] Michael Akehurst, Introdução
ao Direito Internacional, Coimbra, Almedina, 1985, p. 315.
[11] M. N. Shaw, International
Law, 2.ª ed., Cambridge, Grotius, 1986, pp. 130/131.
[12] James Crawford, The
Creation of States in International Law, Oxford, Clarendon Press, 1979, p.
262.
[13] Ibrahima Fall, “La reconnaissance de la Guinée-Bissau
et le droit international”, in Annales
Africaines, 1973, Pédone/Universidade de Dacar, pp. 155 e segs.
[14] Amílcar Cabral, Relatório
apresentado na 4ª reunião do Comité Especial da ONU para os Territórios
Administrados por Portugal, Conacri, 5 de Junho de 1962 (também intitulado Notre peuple, le gouvernement portugais et
l’ONU) – cfr. Arquivo Amílcar Cabral
– Fundação Mário Soares, 07. Organizações Internacionais, ONU, Pasta:
04602.056.
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