Antes de J. Breton o caçar para
título de uma pintura sua, O Canto da
Cotovia já dava o nome a uma peça para piano solo alusiva ao mês de março, composta por Tchaikovsky (tocada aqui ao fundo por M. Pletnev, a
recriar cristalino o “trrlit”
do passarito).
Março, Canto da
Cotovia, é parte das Estações, a coleção de 12 partituras
mensais a que Piotr Ilich T. chamou, com algum desdém, “alimentares” por –
horror! – lhe darem a ganhar aquilo com que comprava as batatas e outros
géneros. Os românticos bem que aspiravam ao puro espírito, mas quanto a mim acho-as
também bastante alimentícias a título espiritual.
E a cotovia bem que inspirou a pluma literária de muitos
românticos. Já para não falar do
Shakespeare de Romeu e Julieta, aqueles
amantes que entraram ao engano pela noite escura crendo, ou querendo, ouvir lá
fora o canto melodioso do rouxinol, em vez do canto não menos melodioso da
cotovia. O som noturno de um, em lugar do som diurno e solar de outro.
A
cotovia anuncia o dia, dizia o mesmo bardo noutro sítio – é só googlar o
soneto: "The lark at break of day arising / From sullen earth, sings hymns
at heaven's gate".
É por ser mensageira da manhã e da
claridade que esta ave quase invisível, de tamanho tão pequeno e voo tão elevado,
é considerada de bom augúrio. Os idos de março da cotovia não são aziagos
como os outros, os de César. Tivesse ele ligado aos avisos que recebeu para se
precaver nesta altura e talvez não acabasse como acabou.
Pois a cotovia, alouette-gentille-alouette,
voa imenso e imensa, a cantar. Voa ondulante, voa em espiral, voa ascendente e inverte
em voo picado. Na época de acasalamento, o macho anda ali num cómico sobe-e-desce
aéreo até se deixar estatelar no chão para ver se impressiona alguém.
A cotovia, em suma, é a frágil alegria
de viver – a “asa a vencer o abismo azul” (puro Shelley, por sinal um romântico,
lá está), “uma vertical do canto” que só a parte vibrante do nosso ser pode
conhecer. Isto tão-pouco sou eu que o declaro, mas assino por baixo. Como
assino por baixo outras sábias meditações que encontram ao virar da
net-esquina:
"Existem apenas duas ou três
histórias humanas e continuam a repetir-se tão ferozmente como se nunca
tivessem acontecido antes, como se fossem cotovias que há milhares de anos não
cessam de cantar as mesmas cinco notas."
Vamos ser insensatos e surdos ao
canto da cotovia?
P. I. Tchaikovsky, “Les Saisons”
op.37b: Mars, Chant de l'Alouette. Piano: Mikhail
Pletnev. Quem quiser ouvir uma cotovia em ascensão, encontra também na net-esquina
a de Vaughan Williams, The Lark Ascending,
pelo violinista de ténis e crista levantada chamado Nigel Kennedy.
Muito obrigado pelo texto e pela musica. E, ja agora, parabéns por demonstrar que, apesar de tudo, continua a ser possivel usar o termo "idos" no seu verdadeiro e unico sentido, e não apenas para encher a boca com uma palavra rara.
ResponderEliminarBoas
E obrigada eu, pelo simpático comentário
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