domingo, 22 de março de 2020

Quarentena à gaiola, 4'33''


 

 
4’33’’, ou “quatro-minutos-e-trinta-e-três”, como se diz em família, é uma espécie de quarentena em música. É um facto que 4 não são 40, e que minutos não são dias. Que importa? Acaso sabemos quantos serão ao certo os dias da quarentena em que estamos metidos? Confinados?
Aqui a culpa cabe ao compositor da peça, cujo nome é Cage. John Cage. Trocadilho barato, mas é o que a vida nos dá. Como já deu um bombeiro de apelido Faísca. Comandante Faísca. Não pode, nem deve ser evitado.
Porquê quarentena em música? Porque aquilo não é sequer samba de uma nota só. Não tem uma nota que seja para amostra num único dos 3 (três) andamentos em que se reparte.
Composta para qualquer instrumento ou combinação de instrumentos, percebe-se a ansiedade e o formigueiro dos intérpretes diante daquela partitura, tolhidos e quietos como devem estar durante 4 minutos e 33 segundos inteirinhos, sem intervalo. Há quem soçobre e sucumba aos nervos, como o Elliot.
Sem nota alguma a sair dali, percutida, soprada ou pinçada, há muito quem julgue que a celebérrima peça de Cage é sobre o silêncio. Big, biguérrimo, mistake. Lá por não haver notas, de música ou de banco, não quer dizer que não haja sons. Quem se dê ao trabalho de ouvir, ou imaginar ouvir, a peça em concerto live, percebe logo o ponto. Ele é a tosse, o pigarrear, o restolho disto e daquilo, o telemóvel deste e daquela – tudo menos as pipocas, que ali dariam fuzilamento na hora.
É certo que Cage teria andado a namorar a ideia. Deixou-a cair, porém, assim que se cruzou com a anecóica, uma câmara ali para os lados de Harvard à prova de todo e qualquer som. Esperava ouvir nela, por fim, o som do silêncio. Mas não. Nem ali. Continuou a ouvir coisas, e não eram o Simon & Garfunkel. Eram, explicaram-lhe, o seu sistema nervoso a fazer o que faz um sistema nervoso, e o seu sangue a circular para trás e para diante. Silêncio-silêncio, silêncio silencioso, só mesmo morto. Morto, matado, morrido.
Venha a quarentena, pois. Que venha, na gaiola se tiver de ser.
 
Manuela Ivone Cunha
 
 
 
 

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