quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Aparício, o assasino de Bombarda.






 



HOSPITAL MILITAR PRINCIPAL

- JUNTA HOSPITALAR DE INSPECÇÃO -

RELATÓRIO

 

 

Tendo sido encarregado pela Junta Hospitalar de Inspecção de ir, como seu delegado, ao Manicómio Bombarda, para observar o tenente Aparício Rebelo dos Santos, que ali se acha internado, e que foi, por ordem superior, mandado julgar ela mesma junta, para se avaliar da sua capacidade para o serviço militar ali fui e do meu exame venho apresentar o respectivo relatório.

         Pela leitura do processo e pelas informações que me foram dadas pelo Exmº Director do mesmo Manicómio, exponho a seguir a história da doença, a sua evolução e o estado actual, que resumo da forma seguinte:

         1ª Admissão - 21-III-909. - Alucinações de ouvido, ideias de perseguição sistematizadas. Reacções violentas e agressões ao pessoal.

         Diagnóstico - Paranóia primitiva e Delírio de perseguição.

         Alta - 3-XII-909 - A instantes pedidos do pai, encontrando-se a psicose em plena actividade. Viagem a França, onde foi levado à consulta dos Drs. Ballot e Babinsky. - Regresso a Portugal e assassinato do Prof. Bombarda, a tiros de revólver, o Gabinete da Direcção do Hospital, em 3 de Outubro de 1910. Internamento de urgência. Exame médico-legal em 1 de Novembro do mesmo ano, cujas condições foram as seguintes:

         - Que Aparício Rebelo dos Santos se acha afectado de Paranóia primitiva com Delírio de perseguição.

         - Que praticou o crime de homicídio na pessoa de Miguel Bombarda debaixo da acção do seu delírio e portanto irresponsável por ele.

         - Que deve continuar internado no Manicómio, porque em liberdade pode ser prejudicial para si e para a sociedade. (a) Caetano Beirão.

         No decurso do 2º internamento continuam a manifestar-se alucinações do ouvido, elementares e figuradas (vozes de Rilhafoles), vindo a apurar-se também a existência de outros sintomas de «Influenciamento» e «Dissociação Psíquica». Sente-se compelido a dirigir a atenção sobre objectos insignificantes e quando está entregue a qualquer trabalho intelectual fazem-lhe passar pelo seu espírito e contra a sua vontade ideias insólitas e bizarras e que nenhuma relação têm com os seus pensamentos. Declara que era inimigo do Bombarda porque é inimigo do Hospital e que há-de continuar nesta obra de destruição por lhe ser prejudicial, até se ver livre dele. Atribui não só as alucinações mas todos os outros fenómenos psíquicos anormais que nele se passam - atenção coacta, pensamento influenciado - a um sistema de sugestões, sistematicamente exercidas sobre ele, pela entidade «Hospital», com o fim de o prejudicar.

         Não sabe como o Hospital actua sobre ele, mas sem ser médico crê que tudo isso se faça por umas linhas A.B.C., que comunicam com A’. B’. C’. e que lhe produzem todos os seus males.

         Nos 2 primeiros anos consecutivos ao seu internamento, o tenente Aparício continuou a ter alucinações auditivas, elementares e verbais, atenuando-se em seguida com o correr dos tempos, sem que todavia se possa afirmar que hajam desaparecido por completo, apesar do doente negar a sua existência, sabido como é que muitas vezes os delirantes crónicos dissimulam voluntariamente as suas alucinações. A actividade delirante enfraqueceu paralelamente com a diminuição de intensidade dos fenómenos alucinatórios, sendo porém certo que o doente jamais corrigiu ou rectificou os seus erros delirantes iniciais, reconhecendo o carácter patológico das suas ideias mórbidas e a motivação patológica do homicídio que praticara.

         Apesar de ter já 20 anos de evolução, a psicose de que sofre o tenente Aparício não o conduziu a um estado demencial. Pode mesmo dizer-se que as funções psíquicas e elementares - atenção, percepção, compreensão, memória - se encontram relativamente intactas, e bem assim a inteligência, fora, é claro, do âmbito em que se move o seu delírio. Esta ausência de deficit intelectual, no sentido das demências orgânicas, é próprio das psicoses paranóicas e de certas psicoses paranóides que são compatíveis por largo tempo com a relativa conservação da inteligência.

         Em resumo, o tenente Aparício dos Santos sofre, pelo menos desde 1909, de uma psicose paranóide alucinatória com Delírio sistematizado de perseguição (Paranóia primitiva dos antigos autores), a qual depois de ter percorrido um período de evolução aguda se encontra estabilizada e chegada à cronicidade.

         Do que fica exposto, concluí que o tenente Aparício Rebelo dos Santos não está em condições de prestar serviço militar e deve ser julgado incapaz de todo o serviço.

         Hospital Militar Principal, 22 de Maio de 1929. -

a)

               
 
O assassino de Bombarda, o tenente Aparício Rebelo dos Santos, internado no manicómio logo após o seu crime por ser vítima de «paranóia primitiva com delírio de perseguição», seria mandado examinar de novo pela junta que governava Portugal desde o golpe militar de 1926, com vista a fazê-lo regressar ao exército, mas um novo relatório, então feito por um médico do Hospital Militar Principal, declarou que Aparício não estava «em condições de prestar serviço militar» por continuar a sofrer de «psicose paranóide alucinatório com delírio sistematizado de perseguição» (doc. Do Arquivo Histórico Militar, datado de 22-V-1929): em suma, falhara a tentativa de fazer do alucinado tenente um precursor do 28 de Maio… 
 
 
João Medina
 
 
               

 

3 comentários:

  1. Curioso e interessante, caro J. Medina!!

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  2. Ao ler o excerto «Esta ausência de deficit intelectual, no sentido das demências orgânicas, é próprio das psicoses paranóicas e de certas psicoses paranóides que são compatíveis por largo tempo com a relativa conservação da inteligência» lembrei-me das aulas do Doutor Medina e do seu comportamento exemplar para com os alunos e os colegas. Obrigado, finalmente percebi que não era só sadismo ou má educação.

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