HOSPITAL
MILITAR PRINCIPAL
-
JUNTA HOSPITALAR DE INSPECÇÃO -
RELATÓRIO
Tendo
sido encarregado pela Junta Hospitalar de Inspecção de ir, como seu delegado,
ao Manicómio Bombarda, para observar o tenente Aparício Rebelo dos Santos, que
ali se acha internado, e que foi, por ordem superior, mandado julgar ela mesma
junta, para se avaliar da sua capacidade para o serviço militar ali fui e do
meu exame venho apresentar o respectivo relatório.
Pela leitura do processo e pelas
informações que me foram dadas pelo Exmº Director do mesmo Manicómio, exponho a
seguir a história da doença, a sua evolução e o estado actual, que resumo da
forma seguinte:
1ª Admissão -
21-III-909. -
Alucinações de ouvido, ideias de perseguição sistematizadas. Reacções violentas
e agressões ao pessoal.
Diagnóstico -
Paranóia primitiva e Delírio de perseguição.
Alta - 3-XII-909 -
A instantes pedidos do pai, encontrando-se a psicose em plena actividade.
Viagem a França, onde foi levado à consulta dos Drs. Ballot e Babinsky. -
Regresso a Portugal e assassinato do Prof. Bombarda, a tiros de revólver, o
Gabinete da Direcção do Hospital, em 3 de Outubro de 1910. Internamento de urgência.
Exame médico-legal em 1 de Novembro do mesmo ano, cujas condições foram as seguintes:
1ª - Que Aparício Rebelo
dos Santos se acha afectado de Paranóia primitiva com Delírio de perseguição.
2ª - Que praticou o
crime de homicídio na pessoa de Miguel Bombarda debaixo da acção do seu delírio
e portanto irresponsável por ele.
3ª - Que deve continuar
internado no Manicómio, porque em liberdade pode ser prejudicial para si e para
a sociedade. (a) Caetano Beirão.
No decurso do 2º internamento continuam
a manifestar-se alucinações do ouvido, elementares e figuradas (vozes de
Rilhafoles), vindo a apurar-se também a existência de outros sintomas de
«Influenciamento» e «Dissociação Psíquica». Sente-se compelido a dirigir a
atenção sobre objectos insignificantes e quando está entregue a qualquer trabalho
intelectual fazem-lhe passar pelo seu espírito e contra a sua vontade ideias
insólitas e bizarras e que nenhuma relação têm com os seus pensamentos. Declara
que era inimigo do Bombarda porque é inimigo do Hospital e que há-de continuar
nesta obra de destruição por lhe ser prejudicial, até se ver livre dele.
Atribui não só as alucinações mas todos os outros fenómenos psíquicos anormais
que nele se passam - atenção coacta, pensamento influenciado
-
a um sistema de sugestões, sistematicamente exercidas sobre ele, pela entidade
«Hospital», com o fim de o prejudicar.
Não sabe como o Hospital actua sobre
ele, mas sem ser médico crê que tudo isso se faça por umas linhas A.B.C., que
comunicam com A’. B’. C’. e que lhe produzem todos os seus males.
Nos 2 primeiros anos consecutivos ao
seu internamento, o tenente Aparício continuou a ter alucinações auditivas,
elementares e verbais, atenuando-se em seguida com o correr dos tempos, sem que
todavia se possa afirmar que hajam desaparecido por completo, apesar do doente
negar a sua existência, sabido como é que muitas vezes os delirantes crónicos
dissimulam voluntariamente as suas alucinações. A actividade delirante
enfraqueceu paralelamente com a diminuição de intensidade dos fenómenos
alucinatórios, sendo porém certo que o doente jamais corrigiu ou rectificou os
seus erros delirantes iniciais, reconhecendo o carácter patológico das suas
ideias mórbidas e a motivação patológica do homicídio que praticara.
Apesar de ter já 20 anos de evolução, a
psicose de que sofre o tenente Aparício não o conduziu a um estado demencial.
Pode mesmo dizer-se que as funções psíquicas e elementares -
atenção, percepção, compreensão, memória - se encontram relativamente
intactas, e bem assim a inteligência, fora, é claro, do âmbito em que se move o
seu delírio. Esta ausência de deficit intelectual, no sentido das demências orgânicas,
é próprio das psicoses paranóicas e de certas psicoses paranóides que são
compatíveis por largo tempo com a relativa conservação da inteligência.
Em resumo, o tenente Aparício dos
Santos sofre, pelo menos desde 1909, de uma psicose paranóide alucinatória com
Delírio sistematizado de perseguição (Paranóia primitiva dos antigos autores), a
qual depois de ter percorrido um período de evolução aguda se encontra estabilizada
e chegada à cronicidade.
Do que fica exposto, concluí que o
tenente Aparício Rebelo dos Santos não está em condições de prestar serviço
militar e deve ser julgado incapaz de todo o serviço.
Hospital Militar Principal, 22 de Maio
de 1929. -
a)
O assassino de Bombarda, o tenente Aparício Rebelo dos Santos,
internado no manicómio logo após o seu crime por ser vítima de «paranóia
primitiva com delírio de perseguição», seria mandado examinar de novo pela
junta que governava Portugal desde o golpe militar de 1926, com vista a fazê-lo
regressar ao exército, mas um novo relatório, então feito por um médico do
Hospital Militar Principal, declarou que Aparício não estava «em condições de
prestar serviço militar» por continuar a sofrer de «psicose paranóide
alucinatório com delírio sistematizado de perseguição» (doc. Do Arquivo
Histórico Militar, datado de 22-V-1929): em suma, falhara a tentativa de fazer
do alucinado tenente um precursor do 28 de Maio…
João Medina
Boa entrada.
ResponderEliminarCurioso e interessante, caro J. Medina!!
ResponderEliminarAo ler o excerto «Esta ausência de deficit intelectual, no sentido das demências orgânicas, é próprio das psicoses paranóicas e de certas psicoses paranóides que são compatíveis por largo tempo com a relativa conservação da inteligência» lembrei-me das aulas do Doutor Medina e do seu comportamento exemplar para com os alunos e os colegas. Obrigado, finalmente percebi que não era só sadismo ou má educação.
ResponderEliminar