Henri Cartier Bresson
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Ela
vai-se transformando numa imagem da erosão da vida. Vi-a pela última vez numa
aparência saudável em 2008. Tinha passado os trinta anos de idade e mostrava-se
confiante na companhia do namorado. Os anos seguintes tornaram dolorosamente
impossível fugir às marcas da vertigem do tempo, como se a realidade me
coagisse a assistir, com intervalos mais ou menos regulares, a uma película sobre
as relações avessas entre a vida e a doença. Em 2010, no reencontro, Ela não me
olhou. Tinha perdido a visão. Porém andava, passeava, era sociável, preservava alguma
autonomia. Como podia, a sua família chegada enfrentava com sobriedade as
primeiras angústias da exposição pública do seu estado, com visitas lá por casa
frequentes. A empatia com a situação, mesmo que sofrida ou embaraçosa, deixava
antever nos rostos que se entrecruzavam, certamente também no meu, a crença de
uma vida pela frente que as limitações provocadas pela doença não impediriam
que seguisse o seu rumo por muitos e bons anos. No ano seguinte, 2011,
entretanto, Ela evidenciava sinais de fragilidades que se impunham numa
cadência bem mais rápida do que eu esperava. Era talvez a minha fé na esperança
a trabalhar por conta própria, fé que pode não servir para apaziguar a natureza.
Ela, nesses dias, evidenciava maiores dificuldades de locomoção ou de gestão
dos alimentos ingeridos e, no génio, vislumbrava-se uma agressividade crescente
jogada contra os que d’Ela cuidavam. Foi altura em que o rosto da sua filha,
Menina no início da segunda década de vida, começava a revelar sinais indisfarçáveis
de tristezas sem-fim. A Menina sempre fora sociável, porém nesses dias eram
maiores as ansiedades para sair de casa. Fazia-o sempre que podia,
inconfessadamente em fuga. E não apenas para estar com amigas e amigos, que já
não iam tanto ter consigo, mas simplesmente para estar longe de angústias que,
na verdade, estarão sempre dentro da Menina. Esta, por milagres da medicina,
felizmente escapou da contaminação à nascença. Por seu lado, às escondidas dos
familiares que só deram pela doença quando, quase uma década depois, tentou forçar
o destino, Ela foi vivendo os primeiros anos da revelação que nem heroína. Tudo fizera durante a gravidez para
evitar danos à filha: alimentação cuidada, prescrições médicas seguidas à risca,
visitas regulares ao médico. Contundo, os anos da maternidade foram sempre
agravando o peso da sua cruz. Além da doença silenciosa, a rejeição da
assumpção da paternidade da Menina pode bem ter sido uma causa maior. O pai da
Menina era casado e viveu a situação como um caso acidental. Até quando acreditaram nele, foi prometendo que ao
menos assumiria a paternidade. Fê-lo apenas no papel. Os anos foram passando e não
se coibiu de cultivar, desde cedo, um maniqueísmo afectivo descompensador da
dupla existência familiar em que estava implicado. Reforçou a aproximação à
família legítima, se é que assim se pode designar, à custa do afastamento ostensivo
desta outra filha, legítima, mas de fora.
A Menina, por seu lado, foi crescendo com a ilusão de um dia se aproximar do
pai, das meias-irmãs, quem sabe da madrasta. Também neste capítulo a crueza dos
dias foi esfrangalhando ilusões. Sentia-as perdidas no mais recente reencontro,
em 2013. Nada de convívios, presentes, férias com a outra sua família, a do progenitor.
Apenas distanciamento e, nas atitudes da Menina, um receio avolumado da
madrasta. Ela, a mãe da Menina, hoje sussurrando ainda que gostava muito do pai da Menina, foi tentando fazer pela vida nesses
longos de anos. A doença relativamente controlada não dava sinais para fora nem
para o corpo, mas soube-se depois que se cravava cada vez mais fundo na alma. Um
ou outro namorado fizeram parte do esforço de existir. Eles até poderiam ser segundas
escolhas, mas nestas coisas nunca se sabe. Contudo, não terá sido indiferente
que também eles, os namorados, tivessem os seus passados, filha ou filho, e demais
marcas de vidas anteriores. Nessas relações, Ela suportava o fardo cada vez
mais pesado dos seus dilemas. Achava que não poderia contar e muito menos
passar-lhes uma doença que sequestrara para todo o sempre a sua intimidade. Até
que uma relação, mais estável, começou a gerar tensões por desconfianças, em
muito dependentes da inexistência de filhos em comum. O namorado passou a estranhar
de modo ostensivo as obsessivas exigências d’Ela na intimidade conjugal. Era também
a altura em que Ela trabalhava num escritório de advogados, revelando, ao que
se sabe, competência e reconhecimento profissional. Mas exigências e mais
exigências assaltavam-lhe a alma com avolumada estridência: da filha e da
indisfarçável rejeição pelo pai; do namorado e da relação com a filha dele, com
os desejos dele; das obrigações de uma vida profissional cada dia mais
absorvente. De repente, um qualquer grão na frágil engrenagem espoletou uma aguda
vontade angustiada de revelar, de uma vez por todas a todos, do que padecia. A vontade
de não querer ficar refém solitária da doença. A inviabilidade de guardar o segredo num casal em rota de conflito. Os
remorsos em relação à sua Mãe, a avó da Menina, em quem poderia ter confiado
desde que o alarme tocou. Ela, em 2009, deixou-se dominar pela única porta de
saída que julgava ao alcance das suas forças: explodir. Escolheu uma modalidade
irreversível: explodir para dentro. Rompeu com o namorado. Mas não foi essa a
decisão crucial. Foi outra: parou, em silêncio, com a medicação. Não foi um
suicídio. Foi a resignada recusa de intermináveis fardos, ainda assim com
réstias de esperança. A certeza que lhe sobrava era apenas a de precisar de ver,
precisar de estar com a Menina e, como nunca, precisar de abusar do conforto materno.
Ela foi perdendo o apetite, foi perdendo as forças. Alegava cansaço, stresse
por causa do emprego, más disposições. Para os outros, a versão do arrufo de
namorados servia de bálsamo. Tudo ir-se-ia recompor. Era questão de dar tempo
ao tempo. Mas Ela foi perdendo peso, decaindo, decaindo, decaindo. De um dia
para o outro, viu-se acamada. Ainda nesses momentos, fez com que os da casa especulassem
sobre diversas maleitas: gripe, malária, pneumonia. Males comuns que podem
matar, mas que talvez não matem socialmente. No limite, quando internada, deixou
de ter como negar. Confessou que sabia o que o destino lhe havia reservado há
mais de uma década, desde a gravidez. Por isso mesmo, e por muitas razões de fé
na vida, nunca quis abrir mão da que seria a sua única criança. Tarde demais
para Ela. O vírus, liberto da guarda farmacológica, em poucas semanas fez estragos
irreparáveis: na vista, no corpo, e ainda mais na alma. A forte medicação salva-vidas
produzia outras tantas desregulações: na digestão, na disposição, no sono, nos
sonhos. Ainda assim, nos primeiros tempos de convalescença foi recuperando peso
corporal, postura, algum ânimo. Era 2010. Logo, logo, a consciência vivida, em
cada novo dia, da impossível reversão do cenário escuro em que a doença a
encerrara, mais outras tantas impaciências, voltaram a dar trunfos à descrença.
Ela liberou-se com maior convicção do esforço próprio para se agarrar à vida.
Não via, não podia ver, a quê. Foram sobrando pouco mais do que réstias de obediência
às vontades da Mãe, à voz e abraços e beijos da Menina, para que continuasse
ligada. Por seu lado, uma Mãe transformada em mãe da sua filha e mãe da sua
neta. Dois em um de dias dificílimos. Esta Mãe-Avó, também ela, passou a pagar
o resgate das esperanças com a sua própria pele. O agravar do peso dos seus
anos tornando-se visível dia-a-dia, mas mesmo assim sempre convictamente resignada
aos trabalhos hercúleos que se impôs a si mesma: garantir que Ela, a sua única
filha, permaneça neste mundo e que se cumpra o ciclo natural, os mais velhos
primeiro; garantir que a Menina, a sua única neta, cresça feliz e crente num
futuro melhor do que a vida de todos os seus poucos anos. Mas, infelizmente, repito:
a fé pode não ser suficiente para recompor a erosão das forças físicas da Mãe-Avó.
Ela, a filha, hoje já não anda, só de cadeira de rodas; pouco se mexe sozinha,
sempre necessitada de amparo; a sua dependência dá sinais de caminhar para estádios
absolutos. A doença atrofia sem piedade, picando a vítima por todo o corpo. Espasmos
de dor ecoam cada vez mais pela casa. Nos intervalos, Ela fixa-se em repetições
de frases, interrogações, pedidos, exigências, teimosias saturantes. Fazem
parte do rol que agrava uma atmosfera já de si pesada. Redobram os esforços dos
que podem, mas num braço-de-ferro de derrota antecipada. À Menina, a essa,
pouco resta do que persistir na fuga. Para fora de casa e cada vez mais para
dentro de si. A quebra dos resultados escolares é, ainda assim, o menor dos males
neste entrelaçar de gerações de mulheres sofridas. Apesar dos pesares, a Mãe-Avó
persiste em remar contra a vaga de infortúnios. Mas mesmo a Mãe-Avó, às vezes, lamenta-se:
O problema é que Ela não ajuda. Resiste à
medicação. Resiste à fisioterapia. Está sempre contrariada. Angústias de Mãe
que sabe perfeitamente ser o motor da vida daquela que fez nascer uma primeira
vez e renascer adulta uma segunda vez, desta feita arrancada das entranhas da
doença. A Mãe talvez nunca venha a saber qual dos partos terá sido o mais doloroso.
O pai da Menina, esse, mantém o culto da distância, tal qual personagem
principal que ignora o enredo. Este filme, qualquer que seja o desfecho, não
terá fim. Rogo por todas: por Ela, pela Menina, pela Mãe-Avó.
Gabriel Mithá Ribeiro
Ainda li um bom bocado... começar a ler quem assina primeiro. Isso, e capas de livros. De resto, por cá, boas histórias.
ResponderEliminarQue prosa mais pobrezinha. Lugares comuns, advérbios de modo, literatura de cordel. O que é que isto faz no Malomil?!?!?!?!
ResponderEliminarMedita anónimo,analisa-te bem; nunca é tarde para fazeres a tua revolução da psique. Desejo-te saúde e sorte.
EliminarRosquilha: o que se enrosca em si
ResponderEliminarSaber ler é uma bênção. Felicito os que o conseguem fazer. No entanto, como é sabido, o número de "iletrados" funcionais ainda é vasto. Há comentários que revelam o vazio que ainda circula por aí. É certo que a liberdade de expressão é um valor inalienável. Creio que por essa mesma razão se deva refletir antes de opinar. Henrique de Sousa
EliminarDura realidade que tiveste a capacidade e sensibilidade suficientes para nos transmitir.
ResponderEliminarA nós, que, de uma forma ou de outra, vamos seguindo estas tristes vidas, toca-nos fundo, principalmente porque, impotentes, assistimos ao desmoronar de entes queridos.
Bem hajas.
J.G.Jafar
Abraço, Jafar. A vida continua,
EliminarGabriel
A inevitabilidade da vida...e da morte.Difíl explicar e compreender esse estigma social tão grande, enraizado de tal forma, que acrescenta tanto mais dor, (sofrimento e solidão )que a física. Esse fenómeno que impede que se cuide com dignidade e tranquilidade possivel, dividindo o fardo da iminência da perda de quem mais gostamos.Isto num pais que esta causa de morte só é ultrapassada pela malária e acidentes de viação.Bem hajam as mulheres,as mães,as esposas,as filhas.Um abraço da prima de sempre.
ResponderEliminarAs vidas entrelaçam-se umas nas outras. As de dentro, as de fora, as que vivemos e as que queremos. Nas mulheres, e perdoe-me a franqueza, tudo isto acontece num plano ainda superior. Mulheres juntas em sofrimento são uma rocha forte. Fraca o suficiente para que a vida, madrasta, a arrume de uma vez.
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