Não
tenho a certeza que as minhas filhas se lembrem do que é uma cassete VHS, ainda
que tenham visto muitos filmes em VHS, num tempo que já não recordam. Às vezes,
a memória perde-se ou confunde-se, o que nem sempre é mau. Em Faro até há um
Teatro Lethes, o nome do rio do esquecimento. Geralmente, os monumentos ou as
evocações fazem-se para celebrar a memória. Ali, em Faro, o Teatro existe pelo
objectivo contrário: para comemorar a amnésia, para evocar a necessidade de esquecimento
das lutas fratricidas entre liberais e miguelistas.
Para guardar a memória de programas
bons da televisão, o meu pai gravava cassetes VHS. Depois, dava-mas para eu
ver. Uma vez, vi uma biografia de Lavrenti Beria (ver uma biografia é uma experiência estranha). Não me lembro de
nada do que contavam nesse documentário, mas ficou para sempre gravado na minha
memória que Lavrenti Beria, entre muitas outras coisas horríveis que fez e nunca
devemos esquecer, uma noite tinha violado brutalmente a primeira bailarina do
Bolshoi. Andei com esta lembrança na minha cabeça anos a fio, não sei porquê. O
episódio da violação impressionara-me de tal forma que jamais o tinha esquecido.
O ano passado, li um livro ainda grandote sobre ballet, Os Anjos de Apolo, que foi traduzido e publicado cá. Por mais que
lesse esse livro, que até fala de ballet dinamarquês, não encontrei a história
da bárbara violação perpetrada por Beria. Aprendi muito com Os Anjos de Apolo, mas já esqueci quase
tudo. A leitura, com o passar dos anos e o perder da memória, torna-se um prazer
momentâneo. Reduz-se àquilo que tem de mais puro: a fruição enquanto se lê, naquele
instante, pois pouco ou nada perdura para além disso. Por causa de uma obsessão
sobre a qual nem ouso escrever – o ballet – encomendei um livro que chegou há
dias (ontem? anteontem?), Swans of the Kremlin, de Christina Ezrabi. O subtítulo diz tudo: Ballet and
Power in Soviet Russia. Procurei o nome de Lavrenti Beria
no índice onomástico. Nada. Não havia uma única referência ao nome de Beria.
Fiquei espantado, pois um livro sobre o ballet e o poder soviético deveria, no
mínimo, aludir à violação da primeira bailarina do Bolshoi por Lavrenti Beria.
Nada.
Lembrei-me que talvez ainda tivesse por
aqui a cassete gravada há anos pelo meu pai. Ao contrário do que é habitual,
encontrei o que procurava no sítio certo. Revi o documentário. A memória fizera
confusão, mas percebo o motivo pelo qual aquele episódio tanto me
impressionara, a ponto de nunca mais o ter esquecido, ainda que o tenha
confundido. No auge do seu poder, Beria percorria Moscovo,
observando do banco de trás da sua limusine Packard as raparigas soviéticas que
passavam nas ruas. Se alguma lhe agradava, o que acontecia com
frequência voraz, o seu guarda-costas, o coronel Sarkisov, localizava a jovem,
descobria onde morava e fazia-lhe um convite irrecusável vindo da parte do
Comissário do Povo. As histórias dos raptos de jovens e violações no tempo de
Beria não são muito claras, mas os testemunhos mais credíveis e recentes,
baseados nos arquivos, confirmam-nas. Há quem assegure que não é verdade, como
Sudoplatov, e quem assevere que as violações realmente aconteceram, como
Montefiore (o que me dana? Ter lido livros de ambos e não me lembrar de nada). Os nomes das vítimas de Beria só serão divulgados em 2028, ou seja, quando já ninguém estiver vivo ou se lembrar do que aconteceu.
O
Comissário do Povo andava obcecado por uma actriz soviética famosa, Tatiana Okunevskaya. Um dia, raptou-a e levou-a para a sua datcha, nos arredores de Moscovo. Aqui chegamos ao ponto que a
minha memória reteve: no documentário da BBC, Tatiana presta um depoimento
inesquecível. Recorda aquela noite tenebrosa em que Beria a levou à força para
a sua datcha, dizendo: «Estás isolada.
Quer grites quer não, é igual». A minha memória guardou a memória de Tatiana Okunevskaya,
que teve de ceder à brutalidade do Comissário do Povo porque, além de estar
aprisionada naquela casa, tinha familiares aprisionados longe, em campos de
trabalho, alguns já mortos. O depoimento foi prestado tinha Tatiana oitenta anos de idade. Por
mais que quisesse esquecer, lembrar-se-ia para sempre daquele «sapo feio e
disforme». Recordava todos os pormenores sórdidos daquela noite. «Passados
todos estes anos, só tenho uma certeza: posso ser intimidada, assaltada, ter a
minha casa incendiada, mas se voltasse a ser violada matar-me-ia». Tatiana passaria depois sete anos no Gulag, o que torna a sua história ainda mais inconcebível. Na altura em
que vi o documentário pela primeira vez, há muitos anos, numa cassete VHS que o
meu pai gravou, arquivei o testemunho de Tatiana Okunievskaya, muito mais marcante
quando é visto do que quando agora é escrito ou lido nestas desmemoriadas
palavras (ou no livro de Simon Sebag Montefiore, A Corte do Czar Vermelho, Lisboa, 2006, p. 498). Contudo, não sei porquê, confundira-a com uma bailarina do Bolshoi,
quando na realidade era actriz de cinema. Na Internet, foi o cabo dos trabalhos
para a localizar, tudo por causa de um minúsculo «i». No documentário da BBC, traduzido
para português, aparecia «Okunievstkaya». No Google, só uma notícia em castelhano.
Foi necessário palmilhar um pouco para chegar ao nome que a Internet guarda na
sua infalível e infindável memória: Tatiana Okunevskaya, sem «i». Andava às
voltas, às voltas, tinha acabado de ver o depoimento dela num documentário,
descreviam-na como uma famosa actriz da União Soviética, era impossível não
existir registo na Net, a menos que o mundo digital tivesse entrado em amnésia
colectiva, algo que acontece muito na Rússia dos nossos dias – e não só.
O
mais estranho de tudo é que cheguei até aqui para falar de outra história, completamente
diferente – ou talvez não tão diferente como isso. No passado dia 7 morreu o
fotógrafo Jack Mitchell, aos 88 anos de idade. Ficou famoso por retratar
celebridades e pelas suas fotografias de ballet. Foi por causa das imagens de
ballet que queria falar dele e, de caminho, lembrar a história da bailarina do
Bolshoi, que afinal não o era.
Mas a história de Mitchell que talvez seja mais
recordada é outra, que tem a ver com a sua faceta de retratista de
celebridades, não de fotógrafo de ballet. Em Novembro de 1980, Jack Mitchell
fez uma sessão fotográfica com John Lennon e Yoko Ono. Umas das imagens
apareceu na edição de 9 de Novembro de 1980 no The Times. Dias depois, Yoko Ono telefonou-lhe, perguntando se dava
autorização para que ela e John utilizassem essa imagem nos seus cartões de
Natal. Mitchell disse que sim. Cerca de um mês depois, a 8 de Dezembro de 1980,
John Lennon era assassinado à porta do Dakota Building, em Nova Iorque. Mitchell
recordou este episódio 25 anos depois, dizendo não saber se alguma vez os
cartões de Natal tinham sido impressos. Para quem gosta destas numerologias,
Mitchell morreu a 9 de Novembro, e a sua fotografia fora publicada a 7 de
Novembro, décadas antes. Provavelmente, Yoko Ono não fez os cartões de Boas
Festas – ou, se os fez, tê-los-á destruído ou não os terá enviado. Com a memória da morte de Lennon ainda tão
presente, aquele não era um Natal para enviar um cartão em que o casal aparecia
fotografado por John Mitchell. Ou talvez fosse, como memória do casal, não sei…
Só sei que uma imagem de Mitchell apareceria em 1981 na capa do single «Woman». E só sei que me lembro perfeitamente onde estava (numa estação de metropolitano)
quando soube da morte de John Lennon, como nunca esquecerei que um dia pude
assistir a um bailado do Bolshoi no camarote de Estaline, ou das vezes que passei à porta do Dakota. Do mesmo modo que guardo a lembrança do
depoimento de Tatiana, gravado pelo meu pai numa cassete de VHS, que, passados
anos, hoje redescobri. Revi-o hoje para aqui escrevê-lo, em memória das minhas memórias.
António Araújo
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