domingo, 1 de dezembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 8

 
 




Para além do referido no texto anterior sobre o termo colonialismo, um outro argumento que justifica que se repense a área de conhecimentos (académicos e de senso comum) sobre a dominação colonial tem a ver com as interpretações do fenómeno da violência enquanto questão chave na deslegitimação do poder europeu em África. Sem dúvida que o poder colonial europeu se tornou ilegítimo. Mas é um anacronismo considerar que ele era ilegítimo na origem. Só após a segunda guerra mundial (1939-1945) se pode falar com propriedade da passagem de uma fase de alegitimidade da dominação colonial (aquela em que o poder não sente necessidade de se justificar junto das populações locais) para a fase da ilegitimidade da dominação colonial europeia em África (aquela em que alguns movimentos cívicos e políticos autóctones passaram a reivindicar de modo explícito a independência nacional). Reporto-me em particular ao caso português, até porque os processos de transição foram precedidos por conflitos armados (1961-1974). Apesar dessa situação, não existe relação directa entre a ilegitimidade da dominação europeia e a forma como o poder colonial geriu a violência enquanto atributo essencial do estado na regulação da vida social.
Sustento esta tese usando como exemplo as representações sociais da violência do estado que venho recolhendo em Moçambique desde 1997. O pensamento das pessoas comuns orienta-se, em geral, por esta lógica: o estado no período colonial foi violento, mas tende a considerar-se que regulou com eficácia a vida social, proporcionou desenvolvimento material e progressos no domínio dos conhecimentos ou da formação profissional. Por seu lado, o estado no período pós-colonial socialista é também representado como violento, mas garantiu a independência, também regulou com eficácia a vida social, expandiu o sistema de ensino e, sobretudo, teve de enfrentar uma nova guerra, a guerra civil (1976/77-1992). O estado na atualidade, isto é, no período pós-colonial multipartidário surgido nos anos noventa, não sendo saliente nesse caso o atributo da violência, também não ganha o atributo de regulador eficaz da vida das comunidades (que acabam prejudicadas, por exemplo, pela criminalidade e pela corrupção que antes não atingiam níveis preocupantes), nem se considera que tenha preocupações socioeconómicas relevantes para com a esmagadora maioria da população que vive na pobreza ou mesmo na pobreza extrema (G. M. Ribeiro 2008, O pensamento social sobre o político em Moçambique. Estudo de caso da cidade de Tete, Tese de doutoramento não publicada, ISCTE-IUL, Lisboa).
Portanto, as representações sociais da violência do estado não lhe conferem uma natureza socialmente disruptiva ou destrutiva, tanto na época colonial quanto na pós-colonial. Nesta lógica, sustentar a ideia da ilegitimidade histórica da colonização europeia em África na tese da violência do estado, e das relações de poder em geral, não é um argumento, por si, convincente. Se a violência fosse a questão central, então a própria independência seria ilegítima, posto que a construção da nação independente, no caso de Moçambique, exemplo entre outros, assentou acima de tudo em processos que as próprias populações interpretam como violentos.
Se, sem dúvida, a colonização se tornou ilegítima aos olhos dos africanos comuns – com justiça ilegítima – foi, sobretudo, por razões de natureza identitária. Estas remetem para a ilegitimidade da ocupação colonial por se tratar do domínio de uma minoria alienígena, por quem vem de fora, com ou sem violência, com ou sem desenvolvimento material, com ou sem transformação cultural. O que é relevante nesta matéria tem a ver com razões identitárias, de base racial ou étnica, e com razões de proporcionalidade do peso demográfico das diferentes identidades (maiorias autóctones versus minoria forasteira). Logo, a violência do estado, sendo um argumento a ter em conta nos debates sobre a colonização, não é necessariamente o argumento-chave quando se equaciona a ilegitimidade da dominação colonial em África.
Em suma, é na continuidade do tempo longo que melhor percebemos as realizações ou os destroços deixados pela história.
Este ponto pode ser sistematizado de outro modo: existe um tipo de violência inerente às relações sociais pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais; existe outro tipo de violência inerente às relações de dominação ou relações de poder em qualquer sistema social e que os europeus, em África, centralizaram no estado territorial e essa característica manteve a sua centralidade no período pós-colonial, até hoje; e, por último, existe um tipo de violência específica dos mecanismos de dominação colonial europeia em África (cf. N. Elias 2006 [1939], O processo civilizacional, Lisboa, D. Quixote). O que tem dominado as interpretações tem sido a sobrevalorização interpretativa do último tipo de violência, o colonizador propriamente dito, e, consequentemente, a desvalorização interpretativa da violência nas suas múltiplas dimensões, para além das particularidades da colonização. Portanto, o estudo do fenómeno da violência social implica a capacidade de distinguir e isolar diferentes dimensões e de saber como coexistiram e interagiram e interagem ao longo do tempo.
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 

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