Para além do referido no
texto anterior sobre o termo colonialismo,
um outro argumento que justifica que se repense a área de
conhecimentos (académicos e de senso comum) sobre a dominação colonial tem a
ver com as interpretações do fenómeno da violência enquanto questão chave na
deslegitimação do poder europeu em África. Sem dúvida que o poder colonial
europeu se tornou ilegítimo. Mas é um anacronismo considerar que ele era
ilegítimo na origem. Só após a segunda guerra mundial (1939-1945) se pode falar
com propriedade da passagem de uma fase de alegitimidade da dominação colonial
(aquela em que o poder não sente necessidade de se justificar junto das
populações locais) para a fase da ilegitimidade da dominação colonial europeia
em África (aquela em que alguns movimentos cívicos e políticos autóctones
passaram a reivindicar de modo explícito a independência nacional). Reporto-me
em particular ao caso português, até porque os processos de transição foram
precedidos por conflitos armados (1961-1974). Apesar dessa situação, não existe
relação directa entre a ilegitimidade da dominação europeia e a forma como o
poder colonial geriu a violência enquanto atributo essencial do estado na
regulação da vida social.
Sustento esta tese usando como exemplo
as representações sociais da violência do estado que venho recolhendo em
Moçambique desde 1997. O pensamento das pessoas comuns orienta-se, em geral,
por esta lógica: o estado no período colonial foi violento, mas tende a
considerar-se que regulou com eficácia a vida social, proporcionou
desenvolvimento material e progressos no domínio dos conhecimentos ou da
formação profissional. Por seu lado, o estado no período pós-colonial
socialista é também representado como violento, mas garantiu a independência,
também regulou com eficácia a vida social, expandiu o sistema de ensino e,
sobretudo, teve de enfrentar uma nova guerra, a guerra civil (1976/77-1992). O
estado na atualidade, isto é, no período pós-colonial multipartidário surgido
nos anos noventa, não sendo saliente nesse caso o atributo da violência, também
não ganha o atributo de regulador eficaz da vida das comunidades (que acabam
prejudicadas, por exemplo, pela criminalidade e pela corrupção que antes não
atingiam níveis preocupantes), nem se considera que tenha preocupações
socioeconómicas relevantes para com a esmagadora maioria da população que vive
na pobreza ou mesmo na pobreza extrema (G. M. Ribeiro 2008, O
pensamento social sobre o político em Moçambique. Estudo de caso da cidade de
Tete, Tese de doutoramento não publicada, ISCTE-IUL, Lisboa).
Portanto, as representações sociais da
violência do estado não lhe conferem uma natureza socialmente disruptiva ou
destrutiva, tanto na época colonial quanto na pós-colonial. Nesta
lógica, sustentar a ideia da ilegitimidade histórica da colonização europeia em
África na tese da violência do estado, e das relações de poder em geral, não é
um argumento, por si, convincente. Se a violência fosse a questão central,
então a própria independência seria ilegítima, posto que a construção da nação
independente, no caso de Moçambique, exemplo entre outros, assentou acima de
tudo em processos que as próprias populações interpretam como violentos.
Se, sem dúvida, a colonização se tornou
ilegítima aos olhos dos africanos comuns – com justiça ilegítima – foi,
sobretudo, por razões de natureza identitária. Estas remetem para a
ilegitimidade da ocupação colonial por se tratar do domínio de uma minoria
alienígena, por quem vem de fora, com ou sem violência, com ou sem
desenvolvimento material, com ou sem transformação cultural. O que é relevante
nesta matéria tem a ver com razões identitárias, de base racial ou étnica, e
com razões de proporcionalidade do peso demográfico das diferentes identidades
(maiorias autóctones versus minoria
forasteira). Logo, a violência do estado, sendo um argumento a ter em conta nos
debates sobre a colonização, não é necessariamente o argumento-chave quando se
equaciona a ilegitimidade da dominação colonial em África.
Em suma, é na continuidade do tempo
longo que melhor percebemos as realizações ou os destroços deixados pela história.
Este ponto pode ser sistematizado de
outro modo: existe um tipo de violência inerente às relações sociais
pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais; existe outro tipo de violência
inerente às relações de dominação ou relações de poder em qualquer sistema
social e que os europeus, em África, centralizaram no estado territorial e essa
característica manteve a sua centralidade no período pós-colonial, até hoje; e,
por último, existe um tipo de violência específica dos mecanismos de dominação
colonial europeia em África (cf. N.
Elias 2006 [1939], O processo
civilizacional, Lisboa, D. Quixote). O que tem dominado
as interpretações tem sido a sobrevalorização interpretativa do último tipo de
violência, o colonizador propriamente dito, e, consequentemente, a
desvalorização interpretativa da violência nas suas múltiplas dimensões, para
além das particularidades da colonização. Portanto, o estudo do fenómeno da
violência social implica a capacidade de distinguir e isolar diferentes dimensões
e de saber como coexistiram e interagiram e interagem ao longo do tempo.
Gabriel Mithá
Ribeiro
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