Em
diversas ocasiões, Malomil tem falado de fraudes e manipulações fotográficas,
montagens oportunistas e rasuras escandalosas. De facto, não basta ver para crer, sobretudo no mundo da
fotografia. O cinema exige mesmo a famosa «suspensão da descrença» (enquanto
dura o filme, e para que este «funcione» nas nossas mentes, temos de acreditar
que existem mesmo vampiros ou zombies, naves supersónicas e monstros marinhos, que aquela na tela não é a
Meg Ryan mas a personagem que interpreta). Ou seja, quando
mais avançamos na tecnologia (da pintura à fotografia, da fotografia às imagens
móveis), menos devemos confiar no poder dos sentidos com que nascemos e vimos a luz do mundo. Cada vez
menos, o acto natural de ver nos
fornece a verdade vista que São Tomé
exigia para crer no Cristo. É certo que desde tempos antigos existe o trompe l’oeil. A pretensão desta técnica
consiste em exaltar ao máximo o olho e a visão, para depois os enganar. No
entanto, o trompe l’oeil é um
dispositivo de imediato percebido por aqueles que o vêem. Uma das razões do seu sucesso
reside, aliás, no «jogo» da descoberta de uma «perfeição» ou de uma
«semelhança» que sabemos jamais se confundir com a realidade. É o facto de ser
uma reprodução aproximativa que faz o
fascínio do trompe l’oeil, naquilo
que este tem de mais delicioso: a busca quase pueril das analogias com uma
verdade que sabemos estar ausente dali, daquele quadro, daquele tecto, daquela empena de um prédio. A imagem
fotográfica, ao invés, goza de uma presunção
de verosimilhança quase absoluta. Daí a relevância política da fotografia –
e a obsessão de certos ditadores em apagar camaradas caídos em desgraça, voltar
a colocá-los no retrato de grupo quando são reabilitados, etc., etc. Mas até as
imagens não manipuladas podem mentir – ou não dizer a verdade. Aconteceu no Soweto.
A morte de Mandela tem dado pretexto a
muitas inverdades. Todos disputam a sua memória. Talvez isso tenha a ver com a
«aura» que o rodeava e com o consenso absoluto que, a partir de certa altura,
começou a gerar no mundo inteiro. A sacralização
global de Mandela decorre,
naturalmente, do seu exemplo de vida, mas também, por mais singular que
possa parecer, com o facto de não se tratar de um líder religioso. Nenhum líder
religioso, exactamente por ser um líder religioso, conseguiria obter um
consenso tão grande em seu redor. O problema é quando somos confrontados com
palavras de Mandela que não acreditamos
terem sido proferidas por ele. Nelson Mandela, ao que parece, qualificou Alberto João
Jardim como «o maior estadista que conheci». Ficamos
incrédulos, pois não acreditamos que Nelson Mandela, tal como o conhecemos e
sobretudo imaginámos, não acreditamos, dizia, que o «nosso» Nelson Mandela, o
Madiba, tenha proferido uma frase como essa. Procuramos de imediato
justificações: o «contexto» dessas declarações, a ignorância do sul-africano sobre
quem era ou é Alberto João Jardim, a simpatia e a diplomacia do momento para com a comunidade
madeirense. Enfim, o que quisermos. Mas o facto é que, segundo se diz aqui, Alberto João Jardim seria convidado pessoal de Mandela para a cerimónia da sua tomada de posse como Presidente da África do Sul.
Julgamos
serem impossíveis ou inverosímeis as palavras
de Mandela. Tentamos relativizá-las ou menorizá-las através de um «contexto» qualquer, de uma raison d'État que justificasse tamanho apreço pelo político madeirense (o que provaria, no limite, que também Mandela era pragmático no verbo e sabia jogar as cartas da razão de Estado). Porque descremos das palavras do Madiba? Porque vão contra
as representações e as percepções que construímos, seja de Mandela, seja de
Alberto João Jardim. Ao contrário das fotografias, que gozam de uma enorme presunção de verosimilhança, nem sequer a palavra dita e registada merece a nossa
crença. Mesmo quando a palavra é dita por alguém sacralizado em vida como o grande líder político,
mas sobretudo moral, do nosso tempo. Com isto não se está, entendamo-nos com clareza, a
questionar Mandela ou a defender Jardim. Não é nada disso. Trata-se apenas, e
tão-só, de constatar o fraco poder persuasivo da palavra quando ela contraria as nossas pré-compreensões do mundo. Descremos até da palavra de Mandela, note-se. Curiosamente, percebe-se agora melhor a grandeza e o
alcance do seu combate. Nelson Mandela teve de lutar, através da persuasão da palavra e do
exemplo, contra um sistema de convicções profundamente enraizado em muita gente
ao longo de séculos. Gente poderosa, cujas ideias e preconceitos, alguns até de
alegada origem bíblica, tinham o racismo e o apartheid
como realidades absolutamente «naturais» e, logo, insofismáveis. A superioridade
dos bancos não possuía, à luz dessas percepções, qualquer «maldade» intrínseca.
Mesmo quando confrontada com a evidência histórica e científica ou com a pressão do mundo, a
crença na hierarquia de cor ou na diferença rácica era aceite como uma verdade
absoluta.
Tudo
isto vem a propósito dos famosos selfies
ou auto-retratos feitos no estádio do Soweto onde Mandela foi homenageado. Para
nós, a história dos selfies parecia credível porque era «interessante». Parecia credível
porque vivemos num mundo ávido de «sensações», obcecado por aquilo que é «diferente»
ou «giro», e que à velocidade de segundos é de imediato difundido à escala
planetária. A máxima aspiração de qualquer um, nos nossos dias, é produzir um
fenómeno «viral». A história, de facto, possuía todos os ingredientes para se tornar
«viral». Obama teria feito «charme» à primeira-ministra da Dinamarca, riram e
tiraram fotografias juntos, e, às tantas, Michelle amuou. O autor das imagens já veio explicar que não foi nada disso que ocorreu, mas muitos continuam a
insistir.
Aqui não se tratou de manipular a imagem num sentido físico, de
colocar ou retirar elementos que dela não constavam originariamente. O que está em causa é vermos numa imagem aquilo que nela queremos ver. Aquilo que gostaríamos que lá estivesse (porque,
uma vez mais, isso vai ao encontro das nossas representações, em que os
presidentes norte-americanos, de Kennedy a Clinton, são lúbricos por natureza, a que acresce um ponto
não despiciendo: o flirt entre um
homem negro e uma mulher loira; Obama-Mandingo não será, afinal, sintoma de
algum racismo implícito da nossa parte? E que, curiosamente, vem ao de cima logo a propósito da cerimónia de homenagem a um
dos grandes adversários do racismo…). No fundo, o que queremos? Ser enganados.
Porque é muito mais «interessante» a história contada dessa forma. Pois só
assim adquire o perfume do escândalo, da transgressão conjugal pública e despudorada, feita
em face da memória sacralizada de Nelson Mandela, ali evocada no Soweto, e transmitida em directo para milhões de pessoas. O
fotógrafo da France Presse, Roberto Schmidt, já referiu, aliás, que naquele
estádio não se vivia uma atmosfera pesada e de luto à maneira ocidental, mas
uma festa onde se celebrava a memória de Mandela, com emoção mas sem lágrimas ou
gritos de dor. Ao rir, Obama não foi hipócrita, esteve em sintonia com a multidão no estádio. Mas a cerimónia teve muita hipocrisia, com a presença de líderes
corruptos e ditadores cleptocratas que, no governo dos seus países, fazem exactamente o contrário daquilo que é o
legado de Nelson Mandela. Para adensar esta comédia de enganos, entrou em
cena um personagem ainda mais caricato, o falso intérprete de língua gestual,
que mais tarde, prolongando a farsa, disse ter sido acometido por um súbito
«ataque de esquizofrenia». Muito estranha, esta homenagem póstuma.
Nelson Mandela confrontou um regime poderoso e a inverdade da sua ideologia. Depois de morto, a verdade da sua vida foi deturpada por muitos. E até a cerimónia em que o evocaram permitiu que houvesse de tudo: desde o descarado embuste de um falso intérprete ao pretenso diálogo de sedução entre um homem negro e uma mulher loira. A sacralização inibe a verdade porque fomenta o aproveitamento manipulador. Assim, num tempo falho de heróis e de certezas, acreditemos naquilo quisermos. Acreditemos sobretudo no que intuirmos como justo e bom, para nós e para os outros. E, se nem sequer podemos já acreditar naquilo que vemos, acreditemos ao menos naquilo em que acreditamos.
Nelson Mandela confrontou um regime poderoso e a inverdade da sua ideologia. Depois de morto, a verdade da sua vida foi deturpada por muitos. E até a cerimónia em que o evocaram permitiu que houvesse de tudo: desde o descarado embuste de um falso intérprete ao pretenso diálogo de sedução entre um homem negro e uma mulher loira. A sacralização inibe a verdade porque fomenta o aproveitamento manipulador. Assim, num tempo falho de heróis e de certezas, acreditemos naquilo quisermos. Acreditemos sobretudo no que intuirmos como justo e bom, para nós e para os outros. E, se nem sequer podemos já acreditar naquilo que vemos, acreditemos ao menos naquilo em que acreditamos.
António Araújo
As naves supersónicas existem mesmo, portanto...
ResponderEliminarCá para mim a voluptuosa loira, o morcão e o Homem Mais Poderosos do Mundo estavam tanto a pensar no Mandela como eu penso nele. Quem estava a pensar que aquilo ia dar uma grande bronca no quartinho da White House era a esposa do Homem Mais Poderosos do Mundo.
ResponderEliminarYo no creo en brujas, pero etc.etc.
ResponderEliminarQuanto a nórdicas e pretos, o Vitor Cunha Rego tinha opiniôes muito próprias...