quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Simplextástico.

 
 
 
Portugal viveu longos séculos de conservadorismo no que à onomástica comercial diz respeito. Quase sempre, o apelido da família bastava para designar a firma, à imagem do que sucedia no estrangeiro ou do que faziam os estrangeiros por cá (veja-se o caso das casas do vinho do Porto). Ainda que produtos e estabelecimentos tivessem começado a ostentar designações originais para se demarcarem dos restantes (ocorre-me a pastelaria «Sandro 2000», na Av. António Augusto Aguiar, em Lisboa) – fosse por sentido de humor dos proprietários ou por pura estratégia de vendas face à concorrência –, as empresas em si mantiveram sempre a sobriedade na nomenclatura.[1]
Até há pouco tempo, a pequena e média empresa portuguesa média chamava-se, muito honestamente, pelo último nome dos dois sócios seguido de Lda. Esta lógica combinatória deu-nos empresas como Sardinha e Leite (Vila Franca de Xira) e António Pais e Filhos, Lda. (Póvoa de Santo Adrião). A mesma tendência aglutinadora reflectiu-se em cafés com nomes fantasia um pouco insólitos, como «Xi-Ta-Ré» (à Estefânia), um presumível Cristina-Tânia-André (filhos do dono? É provável, a família tem sempre lugar de destaque nestas matérias) ou até em pequenos épicos nacionais como é o caso do «Rijomax» – o relógio mais completo do mundo, localizado em Tabuaço.[2] O inventor da peça baptizou assim a sua criação por se chamar Andio JoRibeiro e o X «dar mais saída», como afiançou o Sr. Ribeiro em entrevista televisiva.
 
Figura - Sr. Ribeiro e o Rijomax.
 
Casos como o «Xi-Ta-Ré» e o «Rijomax», pelo seu marcado exotismo, eram dignos de nota e davam que falar. No entanto, em termos de designações comerciais, a coisa nunca ia muito mais longe do que os frutos secos Ferbar (criados pelo Sr. Fernando Barros)[3] ou as carnes Dilop (do Sr. Dinis Lopes)[4].
Nos últimos dez anos, porém, começámos a assistir ao surgimento de razões comerciais mirabolantes. Não se trata do nome fantasia conhecido do público – esse mantém a mesmíssima distribuição entre bom senso, bom gosto e rir-a-bom-rir –, mas da própria designação empresarial. Talvez o leitor já tenha reparado nisso nalgumas facturas que pediu em estabelecimentos. Recentemente, por exemplo, almocei no «Brick Café» (na Rua do Forno do Tijolo), mas a factura foi-me passada pela Combina Enredo, Lda. Combina Enredo?! Quem é que chama isso a uma empresa? E que dizer da Aprazível Atalho, Lda.? E da Exemplo Portátil, Lda.? E, ainda, da Vocábulos Arrojados, Lda.? Elas podem ser um cabeleireiro ou um centro de explicações, o nome nada diz sobre a identidade do negócio ou dos proprietários. Será isto uma moda? Uma loucura colectiva? Todos os outros nomes sensatos já estavam tomados? De onde vieram estas novas designações?
A resposta é simples, por absurdo que pareça: do próprio Estado. Uma das medidas do excelente programa «Simplex» foi a redução da burocracia necessária para a constituição de uma empresa e a possibilidade de abrir uma empresa «na hora». Ora, uma empresa continua a não se criar facilmente, a burocracia existe na mesma. O Estado é que decidiu tratar dela antes do pedido de constituição por parte dos requerentes, em vez de depois, para tornar os processos mais ágeis. Para isso, tem de inventar razões comerciais e nomes fantasia, criando uma bolsa de nomes pré-criados, de onde, depois, os requerentes escolhem. Como se lê no site oficial do Instituto dos Registos e Notariado, esta «bolsa de firmas» é uma lista composta por expressões de fantasia criadas pelo RNPC e reservadas a favor do Estado, às quais está associado um Número de Identificação de Pessoa Colectiva. No caso da «bolsa de firmas com marca associada», a lista é composta por expressões de fantasia criadas pelo RNPC e pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), às quais também está associado um número de processo de marca, já registado no INPI, a favor do RNPC. O RNPC pertence ao Ministério da Justiça e mais Estado do que isso não há.
Ou seja, neste momento, algures numa secção do RNPC, há funcionários públicos pagos para serem poetas. Há alguém que tem como missão – há já cerca de dez anos – a criação destes nomes que agora vemos em tudo quanto é factura. A lista, em permanente actualização, conta com cerca de 900 nomes e inclui tesouros tão maravilhosos como: AZÁFAMA CATITA; BOSQUE PALACIANO; CÁLCULO JUBILANTE; DETALHES JANOTAS; ENTRE QUÍRON E JÚPITER; FIDALGODEBATE; GABARITENIGMA; HINOS E CAMPINOS; IMPERACARISMA; JASMIM AO RUBRO; KARISPLEXIBER; LOUKAVESTRUZ; MYSTERY NENUPHAR (e ainda NENÚFAR RADIANTE NENÚFAR SORRIDENTE, NENÚFARVEDETA, NENUPHAR ARCADE, NENUPHAR SATURN, NENUPHARSTRATEGY); OUTONO SOLITÁRIO; PALPITES DE SEREIA; QUERID'AÇAFRÃO; RASCUNHÓRBITA; SENSÍVEL TROFÉU; TAMANHOS TRANSPARENTES; VENTO CONTENTE; XYLERASTEK; YEROLYCEPT; ZAPPINGVORTEX; apenas para citar um nome por cada letra do alfabeto.
Estas designações, que combinam quase sempre dois vocábulos ou aglutinam dois num só, têm algumas características especiais: não receiam recorrer ao anglicismo (BOHEMIAN SCORPION; DECIMAL EMPATHY; HYPOTENUSE BELIEVER); põem grande ênfase em certas palavras («enredo» entra em 8 nomes; «gabarito» consta 5 vezes; «ódromo» é sufixo 11 vezes; «planeta» é usado em 5 ocasiões, a terminação «áxia» tem 9 ocorrências; havendo ainda uma panóplia de «panóplias» e sendo «protagonista» protagonista em inúmeros nomes); jamais receiam o surrealismo e o dadaísmo (CEDILHAS DISTANTES; TRUQUES FRENÉTICOS; SULSUSLUS); e são atravessados por uma euforia que, até hoje, faltava às designações das empresas portuguesas: sem ajuda do Estado, poderíamos nós ter uma empresa HIPÓTESE DESLUMBRANTE? Uma outra chamada INGREDIENTE FENOMENAL? E ainda uma SENSAÇÃO TRIUNFAL?
Ai de quem diga que função pública não pode ser sinónimo de criatividade! A pessoa responsável pelo baptismo das operações policiais da Polícia Judiciária tem na equipa do RNPC concorrência mais do que à altura.
 
Para os satisfazerem o vosso Apetite Curioso, Lda., nada como espreitarem a lista completa: aqui.
 
 
Rita Canas Mendes
 




[1] Sim, porque a designação da empresa (razão social) e a marca comercial (nome fantasia) não têm de coincidir. Isto, aliás, dá anualmente azo a incontáveis processos no Tribunal da Propriedade Industrial; portanto, cautela, leitor empreendedor!
[3] Conferir em qualquer embalagem.
[4] Certa vez, em minha casa, ao comermos salsichas frescas desta marca, constatou-se que eram de muito má qualidade. A minha mãe escreveu uma carta à empresa, indignada, e esqueceu o assunto. Um dia, tocam-nos à porta à hora de jantar e era um senhor, delegado comercial da Dilop, que nos trazia um lote de salsichas variadas (da mesma fraca qualidade), com os cumprimentos do Sr. Dinis Lopes, em jeito de compensação, daí saber em primeira mão de onde vem o nome.


 

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