quarta-feira, 13 de junho de 2018

A minha pequena onda.


 
         No dia 6 de Outubro de 1971 transpus a “Grande Onda” de Hokusai para uma folha de papel. Assinei e datei.

         Eu tinha 14 anos, acabados de fazer, e tinha um postal com uma reprodução da onda pendurado no meu quarto, num painel de cortiça que servia para pendurar coisas sem esburacar as paredes. O painel tinha uma certa rotação de recortes, fotografias e outros materiais visuais. Numa fotografia estou junto desse painel. Vê-se uma caricatura do general de Gaulle com um “petit chapeau “de Napoleão e dizendo “Machiavélique, moi?!”, fotografias de Marilyn Monroe, julgo que de Elton John, de Jimmy Hendrix e de um grupo rock, não sei qual (Fleetwood Mac?).
 
         Porque pintei a grande onda? Certo, gostava dela. Não me recordo do que me atraía mais, mas lembro-me que o facto de o Monte Fuji ter a mesma cor do mar era uma das razões. O monte era uma onda, a onda era um monte. Havia poesia visual nesse elemento. Vinte anos depois, vi o Fuji com os meus olhos, e vi Hokusai como poeta, pois o monte apresentou-se-me desengraçado, despido, desinteressante.
     
    A principal razão para eu pintar a grande onda terá sido, porém, ter recebido de presente, pouco antes, ou ter comprado, não me lembro bem, uma grande caixa de lápis de cera Caran d’Ache. O lápis de cera tem bastantes possibilidades criativas. A minha experiência beneficiou do contorno prévio a lápis das águas azuis, das ondas brancas, do monte azul e branco. A variedade de cores na enorme caixa Caran d’Ache era convidativa, mas insuficiente. Comprei — julgo que na Papelaria da Moda, na Rua do Ouro — um frasco de terebintina. Este líquido dissolve a massa de cera, depois de aplicada no papel, dando-lhe uniformidade e um certo ar de pintura a pincel, entre a aguarela e o óleo. Depois de o suporte secar — nunca usei senão papel comum — transmite uma sensação simultânea de transparência e opacidade.
 
         A minha pequena onda não é nada de especial, mas eu sempre gostei dela porque nunca tive especial paciência para trabalhos de mãos, fossem eles artísticos ou não — e este está terminado, com ar de obra acabada. Tem duas particularidades. A primeira é ser ao alto. Não sei explicar porque transpus da horizontalidade para a verticalidade. Posso inventar que se adequava à vertigem da tempestade, mas suponho que foi “porque sim”. A outra particularidade é ter omitido as barcaças. Também não recordo bem a razão para o ter feito, mas julgo que são as mais prosaicas: dificultava o trabalho, tornando-o moroso, correndo o risco de falhar no conjunto por causa do pormenor e, portanto, motivando a minha impaciência; ao escolher a verticalidade, as barcaças não “encaixavam” tão bem no meio das ondas. A ausência dos barcos e também das bolas de espuma que esvoaçam no original resultam dessa impaciência, do receio de borrar a pintura. Deste modo, recriei o essencial.
 
         Gostei logo do resultado. Pendurei-o no painel de cortiça. Ainda tem as marcas dos pioneses. No canto inferior esquerdo falta um pedacinho do papel. Se a memória não me falha, é, dos que realizei, o único trabalho visual revisitável. Fiquei-me por aqui. Graças a Hokusai. A grande onda era agora minha. Lembro-me que lhe achei um defeito: a curva da onda principal é desagradável, ficou mal desenhada desde o início. A minha onda não ameaça, como a do original. Quando dei por isso, já não fui a tempo para corrigir. Tinha 14 anos. Tinha o mundo à minha espera.
 
         Mais de três décadas depois, encaixilhei-a, porque não me desmerece e porque traz consigo aquele véu de nostalgia, poderoso como o aroma do mar revolto. Saber que tropecei no mundo esfuma-se na nostalgia com enganadora ternura.
 
Eduardo Cintra Torres
Caxias, 25 de Abril de 2018
 

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