Os
miúdos que agora vão a concertos de música e a festivais zambujeiros deste
mundo globalizado e chinês nem sabem bem o que é ir a um concerto, ou o que
significa ir a um concerto. Portugal, Junho de 1981, ainda era um país tipo RDA
pós-salazar e pós-PREC, onde chegava muito pouco, quase nada, do que acontecia
lá fora. Não havia Internet nem Zara, e a pornografia possível difundia-se em
suporte papel com nome de Gina. Kispo era uma marca de blusões aceitável, até
apreciada. E até sei, vejam lá, de histórias reais de Big Mac’s comprados em
Heathrow e trazidos semifrios para Lisboa, onde eram devorados até ao último
sésamo. As marcas eram, mais do que hoje, uma etiqueta social poderosa, com
autocolantes colados nas janelas dos quartos teen, a tapar o sol. Nas paredes,
cartazes das estrelas, jamais de Roberto Carlos. Roberto Carlos era e é o
cúmulo da foleirice – e estamos cá para dizê-lo. Roberto Carlos, como pessoa,
na «vida real», como se dizia dos actores das novelas brasileiras, pode ser um
canalha com poucos escrúpulos, algo de que nos apercebemos – e, ainda assim,
muito ao de leve – nas entrelinhas do extraordinário Vale Tudo. O Som e a Fúria de Tim Maia, de Nelson Motta. Mas foi
assim:
Em
22 de Junho de 1981, o Rei actuou no Estádio de Alvalade para o que então era uma
enchente, oito mil pessoas, uma estatística que hoje é igual à dos estrangeiros
que se apinham e me abespinham no meu miradouro à Graça. Eu tinha na altura um
maravilhoso cartão de imprensa, tirado no Palácio Foz, como fotógrafo
freelancer de uma agência francesa, a AFIP (Agence Française de Information
Photographique). Que um menor de idade pudesse trabalhar infantilmente como
fotógrafo de uma agência francesa, que o Estado português soberano lhe desse um
cartão oficial que dizia «Press» e lhe dava acesso a tudo o que era lugar
público reservado são coisas que não cabem muito na cabeça dos miúdos de hoje,
mundo globalizado e chinês. Mas era assim na RDA lusitana – e ainda está por
estudar a importância brutal, absolutamente brutal, que os concertos tiveram
para os miúdos portugueses da altura, um fogo-fátuo de cosmopolitismo essencial
para a consolidação da democracia e para pavimentar a entrada na CEE. Na
altura, além dos concertos e das revistas de importação, dos filmes que ficavam
meses em cartaz e eram alvo de reprises estivais (foi assim que de uma
assentada vi todo o Woody Allen no Caleidoscópio), além disso não havia nada,
absolutamente nada. Uns felizardos iam a Paris, mas sobretudo a Londres, um
piloto da TAP era alguém como Bill Gates, mas fora isso muito pouco. Agora os
miúdos vão passar fins-de-semana em Amesterdão com a mesma ligeireza com que antes
eu ia a Alverca, mas as alterações climáticas vão acabar com o low cost aéreo e
os seus filhos ou netos terão de voltar a gozar Alverca, na melhor das
hipóteses. É claro que isso vai criar ainda mais conflitos e tensões, e irão
falar de injustiça geracional, da mesma forma que hoje falam da «conspiração
grisalha» dos mais velhos, que para si reservaram o melhor e o que resta do
Estado-Providência em escombros e das pensões da segurança social. Com o
ambiente, vai ser o mesmo. A necessidade de responder às alterações climáticas
vai matar a globalização (adeus, chineses), vai diminuir as viagens pelo ar, vai
acabar com fins-de-semana neerlandeses. Quando se começar a ter de racionar a
água do banho, evitar as praias infestadas de mosquitos, largar o transporte
particular, as gretas thunbergs vão culpar-nos a nós, e aos nossos filhos, por
causa dos fins-de-semana neerlandeses, dos gap years no Perú, Macchu Pichu, do «mochilão» em orientes extremos. Vai
ser bonito, vai.
É
por isso que é tão importante e tão fundamental gritar Obrigado, Senhor. Por
estarmos vivos, aqui, aí. Por Roberto Rei. O camarim era numa roulotte colocada
no meio do relvado, havia um túnel de lona que protegia o Monarca Supremo dos
olhares da plebe no caminho até atrás do palco, atrás da porta. E eu, tonto
miúdo, levava uma t-shirt amarela (da Adidas!) em homenagem canarinha ao
menestrel das Baleias. Do concerto, já lembro pouco, excepto as fotografias que
então lhe tirei numa Asahi Pentax, Roberto de branco, nas emoções encenadas, de
cravos alvos na mão, muito artificialmente comovido, lágrimas de plástico. Depois
um apontamento no diário parvo, qualquer coisa em transe foleiro como «não é
todos os dias que se vê o Rei». Hoje vê-se o Rei todos os dias, no Youtube, mas
não é a mesma coisa. Não, não é. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra
coisa, uma outra coisa. E, a seguir ou antes de Roberto, muitos outros
concertos (todos os que existiam), bem perto dos palcos, bendito cartão Press
do Palácio Foz. Poucos foram como aquele, uma noite de Junho de 1981, ainda
havia o Muro em Berlim e uma Cortina de Ferro geográfica e sobretudo mental que
fazia (e faz) de nós um país encantadoramente periférico e atrasado. Mais em
1981 do que hoje, é certo. E por isso nunca mais fui ver Roberto, que agora é
piroso e velho, mas antes, quando já era piroso posto que não tão velho, Roberto
era o que havia, como as revistas porcas da Gina ou os blusões loucos da Kispo.
Gozar o que há, mesmo sendo pouco e fraquinho, kitsch e roberto carlos, é uma
lição zen que deveria ser mais seguida, sobretudo pela miudagem do mochilão, que
tem tudo menos um passe press que abre ou abria mundos infinitos para um
adolescente que, obrigado Senhor, era capaz de se espantar com o mundo, com
todo o mundo, e de sofrer com ele. Andamos cada vez mais encharcados em
antidepressivos, massacrados nos empregos ou nos muitos reveses da infortuna,
mas talvez devêssemos começar as manhãs a ouvir este homem-canalha e a agradecer
ao Senhor por ele existir já há tantos anos nas nossas vidas que se tornou uma
parte insondável de nós. Há dias, com a morte de Roberto Leal, alguém colocou
desastradamente nas redes uma foto rip com a cara de Roberto Carlos. Tremi de
pensar que um dia ele vai morrer, envolto num caixão branco e chorado por tudo
quanto foi mulher-a-dias e porteira de buço do Portugal que foi meu. Quando ele
morrer, há uma parte de nós que vai ficar cadáver, como cadavéricas são já estas
memórias de Alvalade 1981, perdão.
Obrigado, Senhor: o Rei está vivo e nós também. A ouvi-lo em volume
máximo.
Graças a Deus.
"Roberto Carlos, como pessoa, na «vida real», como se dizia dos actores das novelas brasileiras, pode ser um canalha com poucos escrúpulos, algo de que nos apercebemos – e, ainda assim, muito ao de leve – nas entrelinhas do extraordinário Vale Tudo. O Som e a Fúria de Tim Maia, de Nelson Motta." Curiosamente, o mesmo Nelson Motta disse, mais tarde, que foi Roberto Carlos que ajudou a lançar a carreira de Tim Maia. Quanto ao Tim Maia, por muito importante que tinha sido na música brasileira dos anos 70, descrevia-se a si mesmo como "gordo, arruaceiro e cafajeste". Porque é que os outros, como Roberto, o haveriam de tratar de maneira diferente? Muita paciência tiveram os outros músicos para aturar Tim Maia. Mas como ser rebelde e arruaceiro é o supra-sumo da barbatana, e quem não for assim é careta e canalha, toda a gente tem de continuar a aturar as birras dos rebeldes mimados.
ResponderEliminarLuís Coelho
Ah, e antes do concerto de Roberto Carlos em Alvalade, já tinham actuado em Portugal, nos anos 70 e inícios de 80, bandas como Genesis, Procol Harum, os Can, os italianos Area, os Police, os Clash. Por isso, não sei o que é isso de Portugal ser, na altura, um país tipo RDA.
ResponderEliminarParabéns. Grande texto.
ResponderEliminar