quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Obrigado, Senhor.



 

 
 
 
Os miúdos que agora vão a concertos de música e a festivais zambujeiros deste mundo globalizado e chinês nem sabem bem o que é ir a um concerto, ou o que significa ir a um concerto. Portugal, Junho de 1981, ainda era um país tipo RDA pós-salazar e pós-PREC, onde chegava muito pouco, quase nada, do que acontecia lá fora. Não havia Internet nem Zara, e a pornografia possível difundia-se em suporte papel com nome de Gina. Kispo era uma marca de blusões aceitável, até apreciada. E até sei, vejam lá, de histórias reais de Big Mac’s comprados em Heathrow e trazidos semifrios para Lisboa, onde eram devorados até ao último sésamo. As marcas eram, mais do que hoje, uma etiqueta social poderosa, com autocolantes colados nas janelas dos quartos teen, a tapar o sol. Nas paredes, cartazes das estrelas, jamais de Roberto Carlos. Roberto Carlos era e é o cúmulo da foleirice – e estamos cá para dizê-lo. Roberto Carlos, como pessoa, na «vida real», como se dizia dos actores das novelas brasileiras, pode ser um canalha com poucos escrúpulos, algo de que nos apercebemos – e, ainda assim, muito ao de leve – nas entrelinhas do extraordinário Vale Tudo. O Som e a Fúria de Tim Maia, de Nelson Motta. Mas foi assim:
Em 22 de Junho de 1981, o Rei actuou no Estádio de Alvalade para o que então era uma enchente, oito mil pessoas, uma estatística que hoje é igual à dos estrangeiros que se apinham e me abespinham no meu miradouro à Graça. Eu tinha na altura um maravilhoso cartão de imprensa, tirado no Palácio Foz, como fotógrafo freelancer de uma agência francesa, a AFIP (Agence Française de Information Photographique). Que um menor de idade pudesse trabalhar infantilmente como fotógrafo de uma agência francesa, que o Estado português soberano lhe desse um cartão oficial que dizia «Press» e lhe dava acesso a tudo o que era lugar público reservado são coisas que não cabem muito na cabeça dos miúdos de hoje, mundo globalizado e chinês. Mas era assim na RDA lusitana – e ainda está por estudar a importância brutal, absolutamente brutal, que os concertos tiveram para os miúdos portugueses da altura, um fogo-fátuo de cosmopolitismo essencial para a consolidação da democracia e para pavimentar a entrada na CEE. Na altura, além dos concertos e das revistas de importação, dos filmes que ficavam meses em cartaz e eram alvo de reprises estivais (foi assim que de uma assentada vi todo o Woody Allen no Caleidoscópio), além disso não havia nada, absolutamente nada. Uns felizardos iam a Paris, mas sobretudo a Londres, um piloto da TAP era alguém como Bill Gates, mas fora isso muito pouco. Agora os miúdos vão passar fins-de-semana em Amesterdão com a mesma ligeireza com que antes eu ia a Alverca, mas as alterações climáticas vão acabar com o low cost aéreo e os seus filhos ou netos terão de voltar a gozar Alverca, na melhor das hipóteses. É claro que isso vai criar ainda mais conflitos e tensões, e irão falar de injustiça geracional, da mesma forma que hoje falam da «conspiração grisalha» dos mais velhos, que para si reservaram o melhor e o que resta do Estado-Providência em escombros e das pensões da segurança social. Com o ambiente, vai ser o mesmo. A necessidade de responder às alterações climáticas vai matar a globalização (adeus, chineses), vai diminuir as viagens pelo ar, vai acabar com fins-de-semana neerlandeses. Quando se começar a ter de racionar a água do banho, evitar as praias infestadas de mosquitos, largar o transporte particular, as gretas thunbergs vão culpar-nos a nós, e aos nossos filhos, por causa dos fins-de-semana neerlandeses, dos gap years no Perú, Macchu Pichu, do «mochilão» em orientes extremos. Vai ser bonito, vai.
É por isso que é tão importante e tão fundamental gritar Obrigado, Senhor. Por estarmos vivos, aqui, aí. Por Roberto Rei. O camarim era numa roulotte colocada no meio do relvado, havia um túnel de lona que protegia o Monarca Supremo dos olhares da plebe no caminho até atrás do palco, atrás da porta. E eu, tonto miúdo, levava uma t-shirt amarela (da Adidas!) em homenagem canarinha ao menestrel das Baleias. Do concerto, já lembro pouco, excepto as fotografias que então lhe tirei numa Asahi Pentax, Roberto de branco, nas emoções encenadas, de cravos alvos na mão, muito artificialmente comovido, lágrimas de plástico. Depois um apontamento no diário parvo, qualquer coisa em transe foleiro como «não é todos os dias que se vê o Rei». Hoje vê-se o Rei todos os dias, no Youtube, mas não é a mesma coisa. Não, não é. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, uma outra coisa. E, a seguir ou antes de Roberto, muitos outros concertos (todos os que existiam), bem perto dos palcos, bendito cartão Press do Palácio Foz. Poucos foram como aquele, uma noite de Junho de 1981, ainda havia o Muro em Berlim e uma Cortina de Ferro geográfica e sobretudo mental que fazia (e faz) de nós um país encantadoramente periférico e atrasado. Mais em 1981 do que hoje, é certo. E por isso nunca mais fui ver Roberto, que agora é piroso e velho, mas antes, quando já era piroso posto que não tão velho, Roberto era o que havia, como as revistas porcas da Gina ou os blusões loucos da Kispo. Gozar o que há, mesmo sendo pouco e fraquinho, kitsch e roberto carlos, é uma lição zen que deveria ser mais seguida, sobretudo pela miudagem do mochilão, que tem tudo menos um passe press que abre ou abria mundos infinitos para um adolescente que, obrigado Senhor, era capaz de se espantar com o mundo, com todo o mundo, e de sofrer com ele. Andamos cada vez mais encharcados em antidepressivos, massacrados nos empregos ou nos muitos reveses da infortuna, mas talvez devêssemos começar as manhãs a ouvir este homem-canalha e a agradecer ao Senhor por ele existir já há tantos anos nas nossas vidas que se tornou uma parte insondável de nós. Há dias, com a morte de Roberto Leal, alguém colocou desastradamente nas redes uma foto rip com a cara de Roberto Carlos. Tremi de pensar que um dia ele vai morrer, envolto num caixão branco e chorado por tudo quanto foi mulher-a-dias e porteira de buço do Portugal que foi meu. Quando ele morrer, há uma parte de nós que vai ficar cadáver, como cadavéricas são já estas memórias de Alvalade 1981, perdão.
 
Obrigado, Senhor: o Rei está vivo e nós também. A ouvi-lo em volume máximo.
 
Graças a Deus.  
 
 

3 comentários:

  1. "Roberto Carlos, como pessoa, na «vida real», como se dizia dos actores das novelas brasileiras, pode ser um canalha com poucos escrúpulos, algo de que nos apercebemos – e, ainda assim, muito ao de leve – nas entrelinhas do extraordinário Vale Tudo. O Som e a Fúria de Tim Maia, de Nelson Motta." Curiosamente, o mesmo Nelson Motta disse, mais tarde, que foi Roberto Carlos que ajudou a lançar a carreira de Tim Maia. Quanto ao Tim Maia, por muito importante que tinha sido na música brasileira dos anos 70, descrevia-se a si mesmo como "gordo, arruaceiro e cafajeste". Porque é que os outros, como Roberto, o haveriam de tratar de maneira diferente? Muita paciência tiveram os outros músicos para aturar Tim Maia. Mas como ser rebelde e arruaceiro é o supra-sumo da barbatana, e quem não for assim é careta e canalha, toda a gente tem de continuar a aturar as birras dos rebeldes mimados.

    Luís Coelho

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  2. Ah, e antes do concerto de Roberto Carlos em Alvalade, já tinham actuado em Portugal, nos anos 70 e inícios de 80, bandas como Genesis, Procol Harum, os Can, os italianos Area, os Police, os Clash. Por isso, não sei o que é isso de Portugal ser, na altura, um país tipo RDA.

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