domingo, 22 de setembro de 2019

Vai ser bonito, vai.


 
  

        
         Ao retirar a carne de vaca das ementas das cantinas (insiste-se, à náusea: o que é muito diferente de proibir o consumo de carne de vaca na universidade inteira), o reitor de Coimbra – ou, melhor, da equipa reitoral, pois não creio que tenha actuado sozinho – levantou um coro de protestos, quase todos oriundos da área da direita. Além de comentários cáusticos no jornal Sol (aí, Mário Ramires fez uma sugestão oportuna: proibir copos de plástico na queima das Fitas), surgiram no Observador vários artigos críticos, dois dos quais de pessoas que estimo e aprecio, Helena Matos («Os Filhos do Vasco Granja») e João Marques de Almeida («O Senhor Reitor não Gosta de Bifes»).
         Em ambos os casos, e noutros textos, fala-se de «ditadura», o que, convenhamos, é um manifesto exagero, tanto mais que, ao que sei, a Lei Fundamental não consagra o direito fundamental a comer carne de vaca ou o produto X ou Y numa cantina que é, para mais, subsidiada. Não tenho direito a caviar ou trufas do Périgord no tabuleiro de fórmica – e ninguém fala em opressão à liberdade por uma cantina universitária decidir sobre a sua ementa, a ementa que é subsidiada por ela, não paga ao preço de custo pelos alunos (alguém recordou isso?). Se o aluno pagasse na íntegra o preço da refeição, a conversa poderia ser outra, mas não é assim que as coisas se passam, temos pena. O Reitor já disse, e bem, que as restrições orçamentais e, sobretudo, as regras da contratação pública não lhe permitem comprar a carne que bem entenda, há regras e procedimentos, tem de se escolher a mais barata. Logo, pensar em novilhos bio, carnes maturadas, vacas japonesas massajadas ao som de Mozart, tudo isso é muito bonito, está muito bem, mas há dinheiro? Seria legalmente possível? Imagine-se agora que o Reitor, por uma qualquer razão, conseguia obter carnes de luxo para as cantinas, pagas com os impostos dos contribuintes. Que diriam os que agora o criticam? Filé mignon com os nossos impostos! Diferente, pois ponderada e informada, é a opinião de Henrique Pereira dos Santos, a ler. Obrigado, Henrique.
         O ponto, quanto a mim, é outro. Isto foi um caso risível de bifes numa cantina. Dirá o Reitor que é «simbólico», no bom sentido, dirão os críticos que é «simbólico», no mau. Não interessa. O que interessa, e o que me interessa, o que me aflige e me preocupa, é pensar: se ficou tudo alvoroçado com a retirada da carne de vaca de uma cantina, como será quando se tiverem de fazer mudanças a sério? Os estudantes não se queixaram, até aplaudiram. Na universidade, de quem come lá, não houve contestação, nem um Maio de 68 carnívoro. As críticas vieram de quem não come na cantina, mas opina. E a prova que tanta gente dá, Assunção Cristas incluída, de aversão e impreparação para a mudança é assustadora. Assustadora. E reveladora. De ignorância. Acaso não saberão que Jacarta, a capital inteira de um país imenso, vai ter de mudar de sítio? Acaso ignorarão que a Cidade do Cabo esteve meses, anos, sem água, até há muito pouco? Isso, sim, são mudanças. Por cá, carne coimbrã…
 
Theewaterskloof, o principal reservatório de água da Cidade do Cabo, com 11% da sua capacidade. Fotografia de Março de 2018.
 
 
         Aqui, em Portugal, só muda a ementa de uma cantina – e é isto, um psicodrama. E se Lisboa tivesse de mudar de lugar, como na Indonésia, ou se o Porto passasse meses à seca, como na África do Sul? Como será quando e se (o «se» aqui é eufemístico) tivermos de racionar a água, deixar de andar de automóvel, limitar as viagens de avião ao estrangeiro? Vai haver mortos e feridos? Que sinal dá ao povo português, e à necessidade de mudança radical e urgente, uma dirigente política que reage como Assunção Cristas reagiu? Que mensagem transmite aos agricultores? Julga que está a defender os seus interesses, no imediatismo de vistas curtas, mas não, puro engano. Não é do interesse dos agricultores nem da «lavoura» manterem o statu quo, não alterarem os seus modelos de produção, fingirem que as alterações climáticas, como alguém já disse, são uma artimanha da esquerda radical e comuna para pôr em causa o empresariado e a iniciativa privada. Santo Deus… Quantos relatórios ou notícias (como esta) serão necessários, quantos tufões e furacões, quanto milhões de mortos conseguirão vencer aquilo a que Cipolla chamou as leis fundamentais da estupidez humana?
         Este foi um caso de bitoque que deu um vendaval de bitaites. Quando for a doer, que teremos? Uma guerra civil? Os professores do Mondego sumariamente executados, caso não inédito na nossa História? E não, não falem de direita e esquerda. O ambiente não é, nem deve ser, uma «causa fracturante». Se for, se deixarem que o seja, a direita está arrumada, perdeu os jovens, perdeu o mundo, perdeu o poder e o mando por décadas e décadas. Ainda não perceberam isso? Ainda não perceberam que uma tão falada «refundação» da direita tem forçosamente de passar pelo ambiente? Que é insensato e estúpido, profundamente estúpido, deixar que isto se torne uma causa e um feudo da esquerda? Não perceberam que, mesmo na esquerda, quem se atrasou neste tema, quem abriu campo e jogo ao PAN, foi e vai ser eleitoralmente punido por causa disso? Não percebem que só tendo uma voz activa neste domínio existe legitimidade para criticar depois excessos, radicalismos, fundamentalismos e falsos alarmismos?
         Desculpem, não maço mais, mas... é mesmo preciso fazer um desenho?
 
 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. também gostei muito de ler o artigo do Henrique Pereira dos Santos. acredito que parte da solução passe por «reduzir o consumo de carne e de lacticínios, de alimentos processados, de alimentos congelados e aumentar o peso dos alimentos frescos provenientes de cadeias curtas de comercialização e curtas distâncias». a ver vamos.

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  2. A questão é que, como o Reitor já teve ocasião de explicar, a Universidade de Coimbra está sujeita às regras da contratação pública, pelo que não pode adquirir carne do tipo da que é proposta pelo Henrique Pereira dos Santos, dado o seu preço de mercado.

    Muito obrigado

    António Araújo

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