quinta-feira, 28 de maio de 2020

Lembrando




Lembrando


Dona Mécia de Sena, Maria Velho da Costa e Ruy Cinnatti


         Foi durante o Verão, na primeira parte da década de 80, que se deu o encontro. Dona Mécia, a residir na Califórnia, estava a passar umas semanas em Portugal e eu também. Um dia Dona Mécia desafiou-me para ir conhecer um dos grandes amigos de Jorge de Sena e de toda a sua família - Ruy Cinnatti –, o qual, se bem me lembro, era padrinho de um dos nove filhos do casal Sena.

        O encontro teria lugar num dos bancos da Praça Luís de Camões. Aí nos reuniríamos, por volta das sete e meia da tarde, Ruy Cinnatti, Maria Velho da Costa, António Manuel dos Santos, Christopher Auretta, D. Mécia e o abaixo-assinado, para depois irmos todos cear à Adega Ribatejana, um restaurante popular do Bairro Alto, famoso pelos seus jaquinzinhos fritos, acompanhados com arroz, prato a que todos viriam a dar preferência, menos eu, que geralmente optava pela pescada cozida com batatas e grelos.

         Qual era a finalidade desse encontro e dessa ceia, organizados e agendados por D. Mécia? Apresentar Maria Velho da Costa a Ruy Cinnatti. D. Mécia, sempre igual a si mesma, mais uma vez se prestava a fazer o papel de fada madrinha, servindo-se da sua varinha mágica, em situações melindrosas, para bem das letras e da cultura do mundo lusófono. É que Maria Velho da Costa andava ansiosa por descobrir umas preciosas pepitas das minas de ouro de Timor longínquo, e sabia que ninguém como Ruy Cinnatti lhas podia prodigalizar, na sua pristina pureza.

        Mas acontecia que Ruy Cinnatti, um dos maiores especialistas portugueses em Timor, a ilha dos seus encantos, dos seus amores e das suas amarguras, onde vivera e trabalhara, apaixonadamente, entre 1946-47 e entre 1951-55, como agrónomo, antropólogo, pesquisador e poeta, fora proibido por Salazar em 1966, último ano em que visitou a ilha, de voltar a pôr os pés em Timor. Essa proibição deixou-o de tal maneira magoado, e provocou-lhe uma crise psicológica tão intensa, que, a partir de então, evitava a todo o custo falar sobre Timor, fosse com quem fosse, para não sofrer mais. Entretanto, Maria Velho da Costa, buscando sempre com tenacidade e afã matéria nova para a sua vasta obra literária, queria explorar essa mina de ouro que era Ruy Cinnatti, pois constava que, além das obras publicadas, científicas e ficcionais, sobre Timor, tinha muitos papéis na gaveta e, tinha, sobretudo, muitas lembranças sobre Timor e o povo maubere no armazém da memória.

         Recordo-me que o primeiro a chegar para esse encontro foi Ruy Cinnatti e os segundos, quase ao mesmo tempo, fomos D. Mécia e eu. Parece que estou a ver Ruy Cinnatti a implorar a D. Mécia que, por favor, não o obrigasse a falar de Timor com ninguém. Que não queria abrir feridas ainda não cicatrizadas totalmente. Que não queria voltar a ter mais crises por causa de Timor.

          Mas, neste meio tempo, chegaram Maria Velho da Costa, António Manuel dos Santos e Christopher Auretta. Feitas as devidas apresentações, D. Mécia e eu demos o nosso lugar, no banco em que estávamos sentados, a Maria Velho da Costa e, passados momentos, ela e Ruy Cinnatti já estavam a dialogar animadamente, como se fossem velhos amigos. E diálogo sobre Timor, disse-nos depois, com a maior alegria, Maria Velho da Costa, ou Maria de Fátima, como D. Mécia lhe chamava. Que parecia a Maria Velho da Costa que Ruy Cinnatti estava à espera de um momento como aquele para exorcizar os demónios interiores que o atormentavam há tanto tempo. Ver-se impedido, por éditos discricionários emanados do Palácio de São Bento e do Terreiro do Paço, de poder continuar a lutar intrepidamente pela preservação do ecossistema, do habitat natural, dos costumes e da cultura do povo maubere era algo que Ruy Cinnatti não podia esquecer nem perdoar.   

         Enquanto Maria Velho da Costa e Ruy Cinnati conversavam com grande entusiasmo, os outros quatro deambulávamos lentamente pela Praça Camões, para fazer tempo, e apurávamos o apetite para os jaquinzinhos fritos e para a pescada cozida.

         Quando chegou a hora de nos dirigirmos a pé para o restaurante, Maria Velho da Costa e Ruy Cinnatti foram caminhando e conversando juntos, com visível entusiasmo, para grande satisfação de D. Mécia, por ter conseguido quebrar mais um enguiço, contribuindo assim, como de costume, para dar o seu contributo em prol da cultura e das letras portuguesas “d`aquém e d’além-mar”.      


António Cirurgião








1 comentário:

  1. Correcções:
    1. Ruy Cinnatti era de facto padrinho da Isabel Maria, a filha mais velha de Jorge e Mécia de Sena;
    2. D. Mécia chamava Fátima a Maria Velho da Costa;
    3. O nome do restaurante é Cocheira Alentejana.

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