terça-feira, 1 de setembro de 2020

Os elefantes de Antivouniotissa.









A Manuela S. é mesmo uma condessa descalça. Os seus pés já palmilharam muitos litorais do seu amado Alentejo, na companhia de um cão. É uma espécie de versão trekking das viagens com o Charlie, de saborosa memória (quem não leu, não sabe o que perdeu). A Manuela voltou há tempos ao seu país, visitei-a em Ravenna o ano passado, em jantar memorável e exquis no melhor restaurante da cidade (grazie). Este ano foi complicado para todos, para a Manuela em especial, com a Matilde a viver em Milão, grande aflição. Tudo se compôs, como sempre acontece às pessoas genuinamente boas. E prosseguiu a tara, dela e minha, pelos elefantes. Da Manuela tenho recebido imagens e histórias de elefantes e rinocerontes dos sítios mais incríveis e recônditos de Itália inteira, sítios a que nunca fui – e acreditem que, modéstia à parte, é terra que conheço como poucas.

Agora reciproco, a partir de Corfu. 

A Igreja de Antivouniotissa (melhor dito, a Igreja de Santa Mãe de Deus de Antivouniotissa), belíssima, alberga hoje um assombroso museu de ícones, o melhor da ilha (há outro, na Fortaleza Velha, mas é mais pequeno e inexpressivo).  Tudo doação de quatro famílias, os Mylonopoulos, os Alamanos, os Rizikaris  e os Skarpas, que se desfizeram dos tesouros pós-bizantinos que tinham em suas casas para usufruto público, obrigado. Não há espaço nem tempo nem paciência vossa para falar aqui dos ícones fulgurantes, até porque o tema é paquidermes. Directo ao assunto: no interior do templo, sumptuoso, com vista para a baía, vi-me rodeado de elefantes, ainda que escondidos pela penumbra do lugar e pelo negrume das telas, circunspectas e austeras.




(esta foi tirada da Net)


O catálogo da igreja-museu, portentoso e opulento, da autoria de Stamatios T. Chondrogiannis (Tessalónica, 2010), informa que são cenas do Antigo Testamento, pintadas em 1699 por Konstantinos Kontarinis. Os painéis, de grande dimensão (164 cm X 133 cm), estão assinados e datados, aliás. E não é preciso grande ciência para perceber que os elefantes surgem na tela alusiva à criação do mundo e episódios subsequentes de Adão e Eva e expulsão do paraíso e por aí fora. Estive muito tempo a contemplar aquilo, embriagado pela figura de Eva, originalíssima, musculada e masculinizada. Além de elefantes há outros bichos raros, pois claro, como leões,  ursos, cobras e camelos (estes, dentro e fora da tela).

Ficam, portanto, os elefantes de Antivouniotissa à vossa guarda, mas, atenção!, são todinhos inteirinhos de e para a Manuela S., em recordação de 2020, the year of living dangerously, como diz o filme, ou o ano em que estivemos em parte nenhuma, como reza o livro.


Para Manuela S.












































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