segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Redacção # 5

 




(o tema desta redação foi-me sugerido, quase imposto, pela Senhora  Professora Cristina Almeida; caneta de tinta permanente,  era o mote. Se isto pega, com tantos senhores professores e professoras por aqui, como é que tenho tempo de estudar as outras disciplinas?)

 

A CANETA DE TINTA PERMANENTE 

 

Fui presente do menino Daniel, quando ele passou para o liceu, depois do exame da 4.ª classe e do de admissão ao liceu. O Daniel recebeu dois presentes. Eu própria, como já disse, só não disse que sou uma caneta de tinta permanente, e um relógio de pulso, daqueles a que se dá corda, que é preciso acertar de vez em quando, aproveitando o pip da telefonia, o sinal horário. São 20 horas em Potugal continetal, mais uma que nos Açores.

 

Sou uma Pelikan verde escuro no corpo, com um aro dourado um bocadinho antes de uma ponta, outro ao pé do aparo. A tampa é preta, com aquela peça que dá para agarrar ao bolso do casaco, dourada também. Se se desatarrachar a carrapeta da tampa, essa peça cai. O Daniel descobriu isso uma vez, mas teve sempre a preocupação de não me estragar.

 

O Daniel era bom aluno e tinha muitos cuidados comigo.  Também, se não tivesse eu sujava-lhe as pontas dos dedos e ele via-se aflito para lavar. Gostava de aparos macios e que escrevessem grosso. De maneira que fazia muitos riscos no papel, forçando o aparo, a ver se ele ficava um bocadinho deformado e gasto. Só fiquei assim ao fim de muito tempo, que eu não sou uma oferecida. Cedo, mas dou luta. E o menino Daniel teve de me tratar muito bem. Fiquei  a escrever grosso e corria bem no papel.

 

Enchia-me de tinta Quick, com um azul muito bonito, como o pai dele fazia com a sua Parker. Essa só tinha à vista a ponta do aparo, o resto devia estar dentro dela. Não sei porque nunca nos apresentaram, de modo que nunca nos falámos, que não falo com desconhecidos, mesmo vivendo na mesma casa. Há imensos desconhecidos dentro da mesma casa como todas as canetas e demais objetos sabem.

 

Para me encher, o menino tinha que desenroscar a parte de cima, o meu corpo, mergulhar o aparo no tinteiro e apertar e largar várias vezes a borracha do reservatório com a ajuda de uma espécie de mola que envolvia a borracha. Demorava algum tempo e depois a parte ao pé do aparo tinha de ser limpa com um mata-borrão. O mata-borrão passava a vida a secar a tinta quando ela estava no papel e demorava a secar. Às vezes até se percebia em espelho a palavra que ele matara.    

 

O menino Daniel, à tmedida que crescia, ia fazendo assinaturas, à procura de uma que parecesse de pessoa crescida e rivalissse com a do pai e se distinguisse facilmente, pela sua virilidade, da da assinatura redonda da mãe. Experimentou inclinadas para a esquerda, que lhe parecia muito original mas não dava jeito nenhum. Verticais, com o D inicial com vários enfeites, como que a tomar balanço, acabando por se fixar numa inclinada para a direita com um D que de tão simplificado que era se tornou implícito. Já tinha uns desassete anos quando ficou satisfeito com a  assinatura. Também arranjou uma rubrica, baseada na assinatura. Um rabisco que não se parece com nada.

 

Acompanhei todo esse progresso, como também acompanhei as fases da sua caligrafia. Era um bocado trapalhão a escrever, demorou tempo a dominar o movimento da mão, muitas vezes não se percebia o que escrevia. De tal modo que uma vez a Professora de Português se recusou a classificar um ponto por não conseguir decifrar a letra. A professora de Ciências também não tinha muita paciência para os gatafunhos do Daniel.

 

Eu bem tentava ajudá-lo, resistindo quando ele me queria levar para onde não devia, mas sou apenas uma caneta. Tinha de me sujeitar.

 

Um dia, já o Daniel tinha uns 16, 17 anos, influenciado por anúncios na televisão, por ver em amigos, porque os pais estavam fartos de comprar tinteiros e mata-borrões, enfim, por um motivo qualquer, apareceu na mão, na casa, na pasta do Daniel, uma outra caneta muito diferente de mim. Enquanto eu era (e ainda sou, porque graça a Deus me tenho poupado, arranjo-me, não me desleixo) bojuda, com curvas, anéis de ouro brilhantes, uma tampa em que a peça que agarra ao bolso terminava em ponta de  seta, uma espécie de promessa, duas cores, sem contar com os dourados, a que o Daniel agora tinha era de cristal, isto é, de plástico transparente, tinha um aparo esquisito, com uma esfera lá dentro que regulava a saída da tinta, e um reservatório pegado ao aparo muito fininho, com uma tinta que demorava a gastar-se. Chamava-se, chama-se, Bic Cristal.

 

Devo dizer que a princípio a achei muito feia, um bocado reles, os riscos que fazia tinham sempre a mesma espessura, a letra ficava toda parecida, sem expressão. Reconheço que era prática. Quando a tinta se aproximava do fim o Daniel tirava o aparo com o tubo e soprava nele para que o bocadinho de tinta que ainda lá estava lhe acabasse o trabalho. Depois comprava recargas. 

 

Além de escrever, a caneta tinha outras utilidades. Por exemplo, com a tampa, com, como eu lhe hei-de chamar, aquela parte da tampa que prende aos bolsos ou bolsinhas, o Daniel escaranfunchava o ouvido a tirar cera lá de dentro. Também o ajudava a limpar as unhas. Enfim, servia de instrumento de limpeza. 

 

Não, não foi amor à primeira vista. Nem ela por mim, nem eu por ela. O que me começou a encantar foi a sua simplicidade e transparência. Uma virilidade franca, sem subterfúgios. Depois descobri-lhe um sentido de humor que só se revelou ao fim de uns tempos, ao fim de muitos encontros às escuras na mala do Daniel, em que ficávamos muito juntas. Disse uma primeira piada, eu ri, disse outra, continuei a rir, e ao fim de uns tempos tembém me armei em engraçada, e ao fim de mais tempos passávamos horas a rir uma com a outra.

 

(E agora? Que volta vou eu dar à redação para isto acabar? Carambitas!) 

 

De início o Daniel tirava-nos da pasta sempre às duas. E escrevia com uma ou com outra conforme. Mas a pouco e pouco começou a esquecer-se de mim, de me encher o depósito, e deixava-me no escuro da mala enquanto a Bic andava ao serviço. A trabalhar. Eu entristecia. E foi nessa tristeza que comecei a apaixonar-me, a criar uma dependência, a só ser feliz quando a Bic voltava para a pasta, ficávamos muito juntinhas, me contava tudo o que se tinha passado, brincava comigo, dizia coisas para eu ficar alegre e conseguia. Uma vez, já eu o desejava há muito, mas não tinha lata, não podia tomar a iniciativa, deu-me um beijo. Juntou o seu aparo ao meu. 

 

O dela não é lá muito macio, pica um bocadinho, mas é saboroso. O meu é mais cheio de tinta, mais molhado. Enfim, completamo-nos. O primeiro beijo não foi grande coisa, com o tempo requintámos. O amor foi crescedo, em mim e nela. Já não importava se uma trabalhava e a outra ficava em casa sem fazer nada. Quando estávamos juntas, que era a maior parte do tempo, éramos tão felizes, sempre aos beijos e às risadas. As pessoas não podem saber o que isso é porque as pessoas são muito instáveis. Estão sempre a mudar. Um dia gostam, outro dia não gostam, ou começam a embirrar, ou ficam cansadas umas das outras, ou dizem desculpa lá, mas hoje não me apetece, ou dizem, caramba, estás a ficar melga, ou dizem tens a mania que tens graça mas não tens graça nenhuma, estás sempre a repetir as mesmas coisas, estás velho, é o que é. Coitadas delas. Nós não.

 

Uns anos deste amor sempre constante, sempre igual, sempre intenso,  e a certa altura reparámos que o Daniel se esquecia da Bic. Ficávamos mais horas juntas. A gente não se importava, porque o que mais gostávamos  era de estar juntas. Só quando ele nos tirou da pasta para nos pôr numa caixa de lata é que percebemos que passara a escrever através de uma máquina complicada com uma parte luminosa onde apareciam as letras com diversas caligrafias.

 

Nós ficávamos na caixa de lata de onde ele nos tirava em momento especiais, quando queria tomar uma nota ou fazer uma assinatura. Eu era mais para a assinatura, a Bic para as notas. Mas a tinta foi rareando, apareceram muitas outras canetas e o Daniel deixou-nos ficar na caixa de lata.

 

Só tenho a dizer bem do Daniel. Teve sempre muito cuidado connosco. Nunca nos partiu, nem deitou fora. Guardou-nos. Deixou-nos estar. Suspeito que ele percebeu o nosso amor. Que uma vez nos apanhou aos beijos, o que não era muito difícil, porque estávamos sempre nisso, nos intervalos dos risos.

 

Vamos levando assim a vida. Eu sei que já estamos velhotes. Eu mais do que ela. Continuo mais vistosa, mais arranjada, com mais curvas, ela com a secura de corpo de sempre, não criou barriga, está igual ao que era. O cristal menos transparente, a carga já não tem tinta, eu também não, nisso os beijos sofreram, já não são húmidos, mas a gente não se importa. Gostamos na mesma. As piadas também são diferentes, a vida está sempre a mudar. Sinto que o corpo dela já não é tão quentinho, o meu também não, mas na caixa havia uma camurça de limpar óculos e agasalhamo-nos com ela.

 

Não nos importamos que se esqueçam de nós ali. Estamos bem. Às vezes temos medo que quando o Daniel morrer os filhos deem connosco, achem que somos uma porcaria que não serve para nada e nos deitem para o caixote do lixo e pronto. Acabou-se.

 

Mas a vida é assim, não é? Tem um princípio, um  meio e um fim. E nem o amor é capaz de mudar isso.

 

Daniel, 85 anos

 

 

 

Miguel Lobo Antunes





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