Como é? Disfarço.
Por exemplo. Vi um
frigorífico lindo, encarnado vivo e brilhante, puxadores das portas iguais as
espadas dos anos 50, boas dimensões, cabia onde está o que vai para a
reforma. Metade do preço original. Promoção. Enfim quase metade. Prémio de não
sei quê em 2018. Amor ao primeiro relance. Tomei nota das medidas. Fui conferir
em casa.
Voltei no dia seguinte
com uma caneta de ponta de feltro do encarnado igual ao da porta da máquina de
lavar a loiça, porque os únicos encarnados da cozinha não se podiam
chatear um com o outro. Foi ideia de uma amiga à distância, a da caneta. Os
encarnados eram iguais! Mandei fotografia à minha amiga e ela: Compra!
Fui falar com a
empregada da loja. Quero aquele! Deixe-me ver se temos em armazém. Olhe,
não temos, é mesmo só aquele. Não tem mal, é aquele que eu quero! Espere, vamos
ver se está bom. Ajudei-a a deslocar o frigorifico lindo. Para se ver as
laterais. Duas mossas! Uma em baixo, outra em cima! Pois é, tem que se ver os
lados. Aí é que costumam estar as mossas. A empregada, competentíssima.
Não comprei o
encarnado.Também não comprei daqueles inox com bolsa marsupial de onde sai água
e gelo. Comprei um normal, branco, monótono. Fiquei triste e chateado? Fiquei.
Mas disfarcei. Amanhã trazem-mo, o branco. Não estou com entusiasmo nenhum.
Por exemplo. Aspiro a
casa toda obssessivamente, arrasto móveis com esforço, as almofadas dos
sofás não escapam, mais de uma hora naquilo. O corpo cansado. Arrumo o chupa-pó
que é um bocado bisarma, aspira com força, até engole canetas, se me distraio.
Faço vistoria ao chão, a admirar o resultado, e encontro migalhas,
coisinhas pequenas que não sei como sobreviveram à aspiração. Fico
lixado! Comigo, claro. Furioso! Mas disfarço. Deixo de olhar para a migalha, ou
vou buscar a vassoura e a pá.
Por exemplo. Ontem
estava a comer a sopa do jantar, depois de ter feito asneira a descongelá-la
(não conto porque tenho vergonha) vem um mosquito e ferra-me duas vezes no
braço. Apanhei-o e esmaguei-o convictamente com a mão. Mas
ficaram-.me duas bolhas no braço. Nunca me tinha acontecido. Fiquei a espiar o
seu crescimento. Se aquilo me invadia o braço todo, o peito, me afogava?
Telefonei para a Saúde 24? Não. Disfarcei. Fui buscar um metro e media os
quarto de milímetro que as bolhas cresciam em cada 10 minutos. Quando deixariam
de crescer? Sempre a disfarçar. Não telefonei aos filhos, a ninguém. Fui
disfarçando. Que não havia de ser nada. E não foi.
Por exemplo. Esta
merda em LVTJ não há meio de abrandar. Está tudo na mesma há imenso
tempo. Os especialistas não se entendem, não têm nenhuma explicação em que
todos concordem. Ora, eu habituei-me aos especialistas. Apareceram imensos,
vindos de sítios que não sabia que existiam, que sabem tudo sobte
epidemias (acho que nunca tinham visto nenhuma a sério e ao vivo):
médicos, matemáticos, epidemiologistas, sociólogos, sei lá
eu! Os políticos diziam, fazemos assim porque os especialistas dizem que
é assim. E há imensos estudos e números (como toda a gente sabe, os números não
mentem) que sustentam as decisões. A coisa estava a andar bem, eu todo
contente, até fui várias vezes à baixa de metro. Mas agora, com o
descrédito dos especialistas, fico aflito. Digo alguma coisa? Não.
Disfarço. Fé nos homens, que eu não posso fazer nada. Faço de conta que vai
passar. Para a semana, ou assim. Disfarço.
Por exemplo. Ela ficou
de me dizer alguma coisa. Não, não combinámos. Mas
convenci-me que me ia mandar uma mensagem. Olá! Estás bom? Então que tal o teu
dia? Olha, a mim telefonou-me aquela, estivemos um bom bocado ao telefone,
contou- me isto e aquilo e tal. Seria o início de uma conversa que espantava a
solidão e me consolava a noite. Só que não houve conversa nenhuma porque
ela se esqueceu, teve imenso que fazer, quando pôde já era tarde, não
quis incomodar. Fiquei triste? Fiquei. Até com um aperto no estômago. Disse-lhe
alguma coisa? Não. Não servia para nada. Não fez por mal. Disfarcei.
Por exemplo.
Então, Miguel, estás bom? E eu, péssimo, com estas
preocupações, estes medos, a ver o tempo a passar, a vida a passar
e nada se resolve, e daqui a pouco nem para fazer a cama de lavado tenho força,
sempre a descobrir umas dores, umas articulações que rangem, um fôlego que
falta, uma coisa qualquer que prenuncia o fim próximo, eu, o que faço?
Disfarço.
E agora escrevo
redacções.
Miguel Lobo Antunes
Excelente redação!
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