sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Redacção # 1

 



Com ajudas,  já tive ocasiões em que a vida ficou parecida ao que eu estava habituado. Almoçar ou jantar em restaurante com vista para o mar, ou sem vista nenhuma e boa comidinha,  passar uns dias no Algarve e mergulhar  em água quente no meio de enorme ventania, dar escolhidos abraços, conversar a um metro de distância, embevecer-me com os netos e cozinhar para eles, doce incluído (amanhã faço bolo de laranja, a pedido) ...

 

Também já fui ao Continente, como sempre fiz, desde que foi aberto como Carrefour. Com máscara, sim, mas fora isso era tudo quase igual. Não assisti a discussões entre casais, essa faltou-me. Não precisamos disso. Mas está em promoção e mais dia menos dia precisamos. Levamos. Não levamos nada. Onde é que te meteste? Estou farto de andar à  tua procura! Sempre que venho contigo demoro o dobro do tempo e gastamos o dobro do dinheiro! Inferno de vida! Olha o menino! Ainda o perdes!

 

Essa parte fez um bocadinho de falta.

 

A máscara embacia-me os óculos,  é verdade, mas é giro. Parece que estou sempre numa sala de operações.  Pairo num sonho. Ou num filme de ficção científica. Além disso, há muita gente que fica mais bonita de cara. Sem falar nos modelos, nas cores, e tal. Não tarda, habituamo-nos e não queremos outra coisa. Umas máscaras perfumadas e macias e todas estilosas.

 

 É certo que gastei mais do que devia. Tenho um  exagero de latas de leite condensado (como às colheres), e alambazei-me no whiskey (podia ser mais barato). Chocolate, também não precisava de tanto. Enganei-me no pacote de açúcar. Este é de "sticks". Vou ter imenso trabalho a encher o frasco. 

 

Nesses momentos maravilhosos esqueço-me do gajo. Julgo que deve ser parecido com as saídas precárias dos presos. Vou ali experimentar como é não estar preso. A ver se ainda me lembro. 

 

Não pode é ser por muito tempo. Tenho de voltar para a prisão. Quer dizer, para casa. Fiz uma máquina de roupa. Tenho coisas para passar. Passo tudo o que apanho, mesmo o que não era preciso passar. Boxers, por exemplo.

 

Volto para a prisão e por um tempo, se me distraio, vem-me um desejo imenso que a pena acabe ou que o juiz me conceda a liberdade condicional.

 

Hoje disseram-me que no metro há pouca gente. Não ando de metro há meses. Estou a pensar para a semana ir à baixa.

 

 

Miguel Lobo Antunes






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