segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 2

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Um dos núcleos explicativos das crises da atualidade tem a ver com a colonização do discurso académico pelo discurso político, fenómeno sensível nas ciências sociais e humanidades que se estende aos académicos das ciências duras e demais ramos quando intervêm no espaço público sobre questões sociais. Não se podendo absolutizar essa tendência, o facto é que têm sido sempre crescentes as dificuldades em distinguir-se o discurso académico do discurso político, sendo que a excessiva proximidade entre um e outro tanto fragiliza a credibilidade do discurso académico, quanto prejudica a eficácia do discurso político. O último viciou-se num alegado suporte em estudos e pareceres que, no entanto, obedecem a pressupostos determinados fora das universidades, nos centros de decisão política ou cívica, e por isso mesmo perdem parte da fiabilidade. Não existe saber académico que se sustente no tempo com tal génese.
Mesmo o mais comum dos leigos entenderá o argumento a partir de um caso-tipo. A célebre escola dos «Annales» nascida em França em 1929, com forte significado ainda hoje, se introduziu na produção historiográfica elementos essenciais – além do político, do indivíduo e do facto, o coletivo, o social, o económico, o psicológico, a longa duração, a interdisciplinaridade, entre outras dimensões –, no entanto veio legitimar o ativismo político e cívico de historiadores e demais académicos em prol de causas tidas como moralmente justas. Por esta via foi gerada uma das fontes-chave da prejudicial sobreposição entre o papel interrogador do analista/académico, o de pensar o real numa perspetiva descomprometida, e o papel de realização do político/ativista, o de denunciar e corrigir injustiças. Sem dúvida que, à época, esta linha de orientação foi-se impondo por razões compreensíveis. Era o contexto das ditaduras no qual se destacou o nazismo. Mas mesmo nesse momento originário tal opção epistemológica moralista surgiu e afirmou-se em contracorrente à neutralidade axiológica na construção do saber sobre as sociedades proposta por Max Weber ou à amoralidade ética da psicanálise de Sigmund Freud. Tradição intelectual-ativista-moralista-combativa das ciências sociais e da história que também entrou em força pelo mundo da literatura, do jornalismo, das artes, inclusivamente da religião, e que se foi tornando hegemónica para além das profundas transformações históricas e respetivos enviesamentos ocorridos desde finais da primeira metade do século XX.
Deve ficar claro que na construção do conhecimento, de qualquer conhecimento – é fundamentalmente disso que se trata –, quanto maior o vigor da denúncia e do combate, menor a lucidez da compreensão e da análise, umas das teses weberianas. A denúncia e o combate são socialmente decisivos, mas são política. A compreensão e a análise são conhecimento, só conhecimento. É sobretudo no último domínio que as sociedades contemporâneas vivem os seus maiores bloqueios. Quer dizer que ou as sociedades reforçam a atenção para a necessidade de uma mais clara autonomia entre o campo político e o campo académico ou a qualidade de ambos persistirá numa contínua modorra, tanto pior quanto mais agitada.
Contudo, ao contrário do que eventualmente se possa inferir, as responsabilidades da gestão deficiente das relações entre os campos em causa são muitíssimo maiores dos académicos do que da classe política. É muitíssimo mais aos primeiros que se deve exigir um esforço efetivo de renovação. Os últimos, os políticos, existem para interpretar a realidade de modo a tirarem vantagens imediatas. Não existe ação política se não existir um olhar seletivo sobre o real, o que implica selecionar na complexidade da vida vivida apenas o que interessa na perspetiva que convém ao sujeito que observa. Esse olhar seletivo (ou manipulador no melhor e no pior sentido do termo) não é mais do que uma definição possível de ideologia. A questão é que o território académico não se pode confundir com esse, posto que o lugar da academia será tanto mais legítimo quanto mais se revelar enquanto espaço da neutralidade axiológica no sentido weberiano do termo: nunca descartar a hipótese oposta à que se defende se o contrário também for plausível.
Basta ler muito do que se produz em ciências sociais e humanidades – a colonização europeia, fenómeno subjacente a estes textos, constitui caso exemplar – para se detetar o uso e abuso do olhar seletivo sobre o real, isto é, o uso e abuso de interpretações valorativas que colocam grupos ou fenómenos sociais e históricos uns para o lado bom e outros para o lado mau a pretexto de um qualquer moralismo, muitas vezes traduzido em teorias e conceitos adjetivados, isto é, assentes em critérios subliminares dúbios de difícil aceitação. A ecologia em que se move o mundo académico gerou e tem multiplicado baterias de académicos-juízes-políticos-moralistas e não tanto académicos-analistas-promotores-do-saber. O sem-número de espaços de opinião em jornais, rádios, televisões ou blogues evidencia que têm sido muitíssimo mais os académicos a usurpar o espaço político do que o contrário. O reparo nada tem a ver com a menorização da presença de universitários no espaço público, essencialmente por via da comunicação social. Antes por se tratar de uma presença de forte tendência politizada no sentido comprometido do termo e que, na substância, traduz os fundamentos do espírito académico, ainda que inconfessados. As intervenções públicas do segmento em causa têm crescentemente revelado muito maior apetência para a focagem no poder político e no episódio do momento com intuito de marcar posições de poder do que preocupações com a promoção e divulgação pública de conhecimentos de forma tão descomprometida quanto possível. O facto é que existem diferenças substantivas entre uma e outra atitudes e é por essa diferença que passa a menor ou maior qualidade e sustentabilidade da vida pública.
Sem consciência vimos resvalando para os riscos das repúblicas condicionadas (ou mesmo governadas) por sábios. De uma fase, cada vez mais do passado, em que olhávamos primeiro para o historiador, sociólogo, economista, jurista ou psicólogo – para citar exemplos – e só (muito) acessoriamente nos preocupávamos em saber se era de esquerda ou de direita regredimos para um tempo, cada vez mais do presente, em que os termos de referência se inverteram. O predomínio do último tipo de atitude, como é lógico, contaminou os olhares sobre as próprias academias enquanto instituições, também cada vez mais aprioristicamente rotuladas de esquerda ou de direita. Estancar esta epidemia será fundamental.
Voluntaria ou involuntariamente, as universidades ao enveredarem pelo caminho referido (ainda que se tratasse apenas de alguns dos seus departamentos, mas que geram inevitáveis ramificações) acabam confrontadas com um dilema cuja resposta é condição da sua renovação: ou se libertam de conotações (fortemente) politizadas ou assumem-nas abertamente. Persistir no atual statu quo tem arrastado consequências corrosivas para a liberdade de pensar e de inovar dentro das universidades. Basta pensar que estas não são frequentadas por massas homogéneas de estudantes, docentes ou investigadores. Tais indivíduos, no entanto, vivem cada vez mais pressionados por marcas mono-ideológicas dominantes ou mesmo hegemónicas. Para exemplificar de modo suave, vou acumulando experiências de frequentar congressos científicos em ciências sociais e humanidades para ouvir comícios. Os espaços académicos deveriam ser o último lugar institucional onde isto poderia ter acontecido, mais não seja por dominarem e estarem abrigados a fazer inferências a partir da teoria da separação de poderes de Montesquieu. Aqui reside um dos núcleos pouco discutido, embora fundamental, quando o assunto é a qualidade do ensino superior e, por seu intermédio, a qualidade da vida pública.
De qualquer forma, as ambiguidades que referi nas relações entre academia e política não seriam tão problemáticas se não estivessem associadas a outros fatores, assunto para os próximos dois textos.
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 

4 comentários:

  1. O problema de que fala vai mais longe e mais fundo do que o mero conúbio entre a Academia e a politica.
    Desse falou Julien Benda extensivamente já em 1927 no seu “La trahison des Clercs”, no qual defendia que a Civilização só era possivel se os intelectuais fossem firmes na defesa dos principios universais em vez de se submeterem às exigencias do “realismo politico”.
    Dizia ele, citando a frase de Oscar Wilde, que apesar de todas as tragédias do passado devido aos académicos a Humanidade “Podia estar na sargeta, mas olhar para as estrelas”, mas que naqueles dias esse olhar tornou-se tão rasteiro que não ía acima desse conspurcado nivel.
    A causa, segundo Benda, devia-se ao facto de os intelectuais, artistas e clero, terem juntado as suas vozes ao “coro dos ódios”; Nacionalismo, racismo, a exaltação do poder e da riqueza.

    “La Nouvelle Trahison des Clercs” foi precisamente o titulo que George Monbiot deu ao seu notável artigo públicado em Maio passado no “The Guardian”, (where else...), e onde começa por esclarecer que muito mudou desde os tempos de Benda : Hoje o fetiche para aqueles que estão no poder não é o “Estado forte” mas o “Estado fraco”, Estado esse cujas funções devem ser devolvidas ao “mercado”, ou seja aos grandes grupos económicos e aos muito ricos. O crescimento economico, (medido de uma forma meramente mecânica, diria eu...) tornou-se no objectivo ultimo a presseguir quaisquer que sejam os custos humanos e, segundo o Autor, actuamente demasiados académicos veneram este novo Rei Mammon e não a procura da verdade que é, lembremos aos distraídos, a missão da Academia : “No man can serve two masters, ye cannot serve God and Mammon- Matthew 6:24”.
    Para os que duvidam aí estão as declarações cristalinas de Sir Mark Walport, o novo Chief Scientist do Reino Unido, (cargo que julgo não ter equivalente em Portugal), o qual ao discursar em Cambridge afirmou que são cinco as principais tarefas dos conselheiros cientificos, ( aqueles que assistem as diversas organizações, públicas ou privadas, civis ou militares, na tomada de decisões), sendo que a primeira consiste em “garantir que o conhecimento cientifico tem como resultado o crescimento económico”. Que facto poderia dar estas palavras maior ressonância do que saber-se que o Centro para a Ciencia onde Sir Mark discursou tem, (entre outros pesos pesados), o alto patrocinio da BP e do Lloyd's Bank?
    Mas aqueles cuja alma-mater é Oxford não podem suspirar de alivio, pois na mesma altura foi lá inaugurado o novo laboratório de geo-ciência o qual tem como um dos objectivos o de participar na descoberta e desenvolvimento de novas fontes de combustiveis fósseis. Não constituirá surpresa saber-se que quem financiou esse laboratório, certamente por desinteressado amor à ciencia foi a ...Shell.
    Uma ong a People and Planet denuncia estarem as Universidades a caucionar as empresas petroliferas com aquilo que Benda chamou o seu “prestigio moral”, numa altura que os problemas das alterações climáticas são uma das principais questões éticas da nossa época.
    Mas Monbiot termina o seu artigo num tom de optimismo. Diz ele :
    “Os líderes universitários envolvidos ainda não conseguiram desenvolver uma ideologia justificativa que lhes permita desculpar ou mesmo glorificar os compromissos que estableceram com o poder. Talvez ainda não tenha sido totalmente abandonada a aspiração de fazer aquilo a que Benda chamava “fazer o bem “.

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  2. Caro Manuel M.
    Na substância estamos de acordo, embora eu aponte um pouco mais para o domínio político enquanto o seu comentário introduz também a dimensão económica. A questão das relações sociedades-academias/conhecimento parece-me de tal modo central que pode e deve ser trazida para o debate público que questione a qualidade dos destinos coletivos. Como o seu comentário indica, perspetiva que tentarei manter nestes textos, o assunto é fundamental para a generalidade das sociedades contemporâneas nesta era da «globalização» e das «multinacionais». Para citar um outro exemplo, ficamos também com a ideia de que existe uma «ciência da ONU & Associados», como se o saber se decidisse por maiorias de braço no ar. Era bom que este tipo de debate fosse espoletado em Portugal, nos espaços de língua oficial portuguesa (que me dizem muito) e por aí fora.
    Muito obrigado pelo seu comentário e abraço,
    Gabriel Mithá Ribeiro

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  3. Debate de altíssimo nível. Só estranhei o facto de o manuel.m ter traduzido o termo inglês "Clerks" por "clero", quando parece-me que melhor seria "funcionários", pois em nosso vernáculo "clero" é somente a classe sacerdotal, e naturalmente não era a esta que Benda e Monbiot se referiam.

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  4. Caro Anónimo
    Obrigado. Pelo elogio e pela nota sobre o termo "Clerks". Convido-o pessoalmente a continuar pelo Malomil.
    Abraço,
    Gabriel Mithá Ribeiro

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