quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Moçambique: árvore e floresta

 
 
 
 
 
Carta à Directora do «Público» (07.11.2013) – Moçambique: árvore e floresta*
 
 
 

Sebastião Salgado, Moçambique, 1994

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Enquanto natural do país e investigador, há muito que vou acompanhando a realidade moçambicana. Se é por demais preocupante o que vai acontecendo, seria útil que  víssemos não apenas as árvores mas também a floresta. Não sendo negativo em si, a verdade é que só despertamos para certas realidades por vagas episódicas quando, até por razões históricas como é o caso, a atenção aos espaços de língua oficial portuguesa poderia ser bem mais consistente. E é difícil trazer certos temas para a comunicação social portuguesa. Para citar um caso recente, disponho de registos áudio deste ano de 2013 de discursos de cidadãos comuns moçambicanos com passagens sobre o que pensam dos portugueses (de hoje e do tempo colonial), da criminalidade, dos linchamentos, entre outros temas, e tenho tentado sem sucesso colocá-los numa rádio portuguesa. Ainda não perdi a esperança, mas...
O que agora acontece em Moçambique implica que se percebam algumas das causas estruturais, pois trata-se de um dos destinos inevitáveis da emigração portuguesa agora e no futuro, como Portugal será um dos destinos inevitáveis da imigração e da circulação de cidadãos das ex-colónias. Abordo de modo sucinto três aspetos fundamentais: (i) a forte incapacidade da sociedade moçambicana em exorcizar a violência, questão que se arrasta desde o fim da guerra civil, em 1992; (ii) a evolução demográfica que explica parte importante dos problemas estruturais de Moçambique (como de outros países) e em relação à qual a consciência (ou mesmo pressão) internacional tem sido quase nula; e (iii) pontuais porém significativas regressões na forma como o estado tem gerido a sociedade em relação ao que foi a herança colonial portuguesa.
Quanto à incapacidade de exorcizar a violência, os dezasseis anos de uma guerra civil devastadora (1976-1992) têm sido em geral silenciados nos discursos oficiais do poder e da oposição moçambicanos através do empolamento da guerra anterior, a colonial ou de libertação (1964-1974). Tal silenciamento, entre outros aspetos, está a impedir que se passe aos mais novos a consciência do mal que os povos podem fazer a eles mesmos, numa sociedade em que grande parte dos indivíduos nasceu depois da independência (1975) e mesmo depois da guerra civil (1976-1992). A guerra colonial matou cerca de três mil militares, a que devem acrescentar os guerrilheiros da Frelimo e civis, todavia decorreu num contexto regenerador da sociedade à época, o mais importante do século XX tendo em conta a qualidade de vida das populações. A guerra civil que se seguiu entre a Frelimo e a Renamo foi das mais violentas de sempre em Moçambique (ou mesmo a mais violenta), durou muito mais tempo e matou cerca de um milhão de pessoas, tendo sido quase só destrutiva a nível material e social. No entanto, este último conflito paira num limbo que contribui seriamente para que a violência se torne endémica, posto que o seu ciclo não foi fechado dado que o exorcismo dos males da guerra está em grande parte por fazer. A guerra civil sobrevive, portanto, como que num interdito corrosivo para os fundamentos da ordem social moçambicana. É como se na Europa falássemos essencialmente da I Guerra Mundial (1914-1918) e ignorássemos a mais recente, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo que a última não era ensinada nas escolas, não havia imagens, debates recorrentes, etc.
A nível demográfico, o problema assume contornos dramáticos há muito, porém estranhamente pouco têm chamado a atenção. Moçambique passou de cerca de 8 para 24 milhões de habitantes entre meados dos anos 70 e atualidade, portanto a população triplicou em quatro décadas e apesar do longo período de guerra civil, com a nota desse fenómeno ser pautado por uma urbanização rápida e em grande parte descontrolada. Esta situação, por si, gera todo o tipo de problemas, entre eles os de segurança, de acesso à saúde, à habitação, ao ensino, de circulação automóvel, ambientais, etc. Nem o melhor governo do mundo teria ou terá capacidade para enfrentar tais bloqueios sem que se coloque no centro das preocupações de todos (governo, universidades, sociedade, outros governos e organizações internacionais) a questão demográfica. Só que, no caso de África e por razões históricas, não é viável entrar pelo debate demográfico com racionalidade e eficácia sem que antes se debata com renovada maturidade crítica a questão colonial e o racismo, temas cujas abordagens permanecem muito deficientes. Foi por essas e outras razões que publiquei o livro «O colonialismo nunca existiu!» (Gradiva, 2013) que permanece mais ou menos silenciado, mas acrescento que faz reparos críticos severos a académicos que, no meu ponto de vista, contam-se entre os maiores responsáveis pelo que acontece nas sociedades, como se as universidades não fossem das maiores responsáveis pelo facto de as sociedades não serem capazes de antecipar e enfrentar com maior eficácia as crises. Em Portugal, em Moçambique ou onde quer que existam ciências sociais e humanidades. Estou, sem dúvida, a fazer publicidade em causa própria, mas não menos a fazer serviço público.
Quanto ao terceiro aspeto, sem jamais colocar em causa a justiça e a dignidade das independências nacionais africanas que, sem dúvida, trouxeram benefícios fundamentais e inalienáveis aos povos de África, a verdade é que em aspetos muito precisos da governação e da vida coletiva não é tão absurdo colocar a hipótese da existência de regressões em relação ao passado. Uma delas reside precisamente na área da justiça e é explicada pelo senso comum moçambicano. Na primeira fase da independência a justiça foi trazida para a praça pública pelo presidente Samora Machel, a «justiça popular». Sem colocar em causa a legitimidade do regime para ter procedido, à época, desse modo, e sem generalizar a avaliação para outros domínios da ação do presidente Samora Machel (meritória aos olhos dos seus concidadãos em aspetos como a massificação do ensino ou a ética na gestão da «coisa pública»), o que é facto é que Moçambique vive hoje o problema endémico gravíssimo dos linchamentos populares de alegados criminosos, atitude cuja génese e legitimidade remete, ao menos em parte, para a forma «popular» de fazer justiça do primeiro presidente de Moçambique. E o fenómeno dos linchamentos não pode ser desligado do «novo» fenómeno dos raptos naquilo que tem a ver com a regulação da vida social pelo estado e pelas elites africanas. Se a isso juntarmos o facto de a criminalidade estar a transitar de ter apenas bens materiais como alvos (fixos ou móveis: casas, carros, telemóveis, etc.) para atingir crescentemente a própria dignidade da condição humana (sequestros e raptos), creio que existem razões para se considerar que existem sintomas de regressões civilizacionais em Moçambique em domínios muito precisos da vida coletiva. Eles, no entanto, jamais podem ser generalizados. Devo sublinhar que não escrevi «retrocessos», mas «regressões» no sentido freudiano do termo. Os termos apontam para domínios muito diferenciados. Também não receio utilizar o termo «civilizacional».
A terminar, insisto: nada do que está em causa se entenderá com propriedade enquanto não retornarmos com sentido crítico renovado ao tema da colonização e ao tema do racismo.
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
* Versão com acertos de texto enviado ao «Público» e não publicado.
 
 
 
 
 

9 comentários:

  1. O Gabriel Mithá Ribeiro deveria saber que no país de que ele é natural se escreve, e bem, «aCção», «aCtualidade», «aspeCto» e «coleCtiva».

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Octávio dos Santos
      Tem razão. Resisti algum tempo, mas por razões pragmáticas (algumas instituições e editoras simplesmente impõem o novo AO) acabei por optar pela coerência. Com a alma dorida. Talvez como muitos.
      Cumprimentos,
      Gabriel Mithá Ribeiro

      Eliminar
    2. Tem de me explicar, se conseguir, onde e como é que há «coerência» no AO90. Quanto às instituições e editoras que (lhe) impõem o dito cujo, mande-as... àquele sítio. Verá como fica com a alma menos «dorida».

      Eliminar
  2. Moçambique e Angola é que nos poderão ajudar... Querem impor-nos o desgraçado AO90 como facto consumado!

    ResponderEliminar
  3. Caro Prof Mithá Ribeiro,
    Asssiti à sua Confª na Beira e fiquei com uma ideia do seu pensamento. Mais que ideia, interesse em acompanhar o caminho que está a percorrer, e confesso-lhe, um enorme prazer intelectual e admiração cidadã pelas portas (ousadas) que nos abre. Mas devo dizer-lhe que escolheu um caminho muito difícil. O establishment é por natureza conservador, mesmo quando o seu conservadorismo assenta nos pressupostos marxistas com que relação colonial foi analizada no séc XX. E dá trabalho, para além de "arriscado" em termos de correcção política, sair desse paradigma.No caso dos PALOPS tem ainda que contar com a enorme actividade, incluindo intelectual, de confissões missionárias, a maioria protestantes e que nunca perceberam nada sobre colonização portuguesa, da mesma forma que a Europa do Norte nunca percebu nada de Portugal nem dos portugueses.... Era conversa para horas.... mas não desista. O seu trabalho é altamente meritório e merece ser seguido com atenção. Seja persistente. A bem da fraternidade Portugal-PALOP's que sei que existe e é profunda a nível dos povos. Uma relação que uma certa geração de Goeses também tem connosco e que pude testemunhar. Mas não peça à grande maioria dos estrangeiros que entendam isso, para além de todos os defeitos e das muitas qualidades, os portugueses foram no passado grandes sedutores de almas e quem não entender isso perde metade do filme. Gosto de ouvir o Sr Niquisse, que trata do meu quintal, quando me diz "...para lá de Manica falam "uma coisa" que a gente não entende...." - referindo-se claro ao Inglês, do Zimbabué. É a minha vingança relativamente ao Economist que escreveu uma vez referindo-se à nossa língua "...who cares about learning it, anyway....". Com a colonização é igual. Tivemos a nossa e ao fim deste tempo todo, como V. dizia na sua Conferência, está largamente por estudar e conhecer. Bem haja e vá em frente. Abraço António, Beira

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, António. Interessante comentário seu sobre realidades que têm muito por revelar. Faço o possível tal com o António seguramente fará.
      Abraço amigo,
      Gabriel Mithá Ribeiro

      Eliminar
  4. Não se preocupe por utilizar o AO90. Se todos os jovens dos 5 aos 18 o usam, daqui a 10 ou 20 anos só os caretas anquilosados é que não o usam.
    Quanto ao texto, está interessante.

    ResponderEliminar
  5. Debaixo das mangueiras carregadas, olhando lá para a frente, isolado e aterrorizado pela crescente onda de racismo, pelos raptos, pela guerra que vai crescendo, li o teu artigo.
    Só o facto de alguém investigar com seriedade o fenómeno social moçambicano, engrandece o que fazes.
    Devias acompanhar os últimos acontecimentos, o bluff político e o momento eleitoral - só visto.
    Abraço
    Jafar

    ResponderEliminar
  6. Obrigado e abraço, Jafar.
    Gabriel

    ResponderEliminar