quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 5

 
 
 
 
 
A outra componente do momento em que vivemos espelha-se na reinvenção permanente e inevitável das identidades coletivas. Por mera opção, refletirei a partir de um caso-tipo: a crise da dignidade de se ser português ou, com mais rigor, a fragilidade identitária dos portugueses enquanto povo. Parto de dois pressupostos: (i) o fenómeno existe e é estrutural, limitando-se a adquirir maior saliência em conjunturas de pendor depressivo; (ii) dado o peso do fator história (muito mais decisivo do que a emigração enquanto fator isolado), o fenómeno funciona fortemente imbricado numa vasta configuração de comunidades dispersas pelo mundo, qualquer delas com papel ativo no jogo de identidades coletivas tal como as pretendo considerar. Quer dizer que o último longo ciclo histórico e o seu desfecho com as independências levou a que o alter-ego de referência que faz funcionar a identidade portuguesa, como qualquer identidade, fosse deixando de estar centrado nos vizinhos espanhóis para se focalizar nos distantes brasileiros ou angolanos, sintoma das transformações em curso dos significados do mundo, sendo que o que está em causa é genericamente válido para outros espaços de tradição colonial europeia.
No que se revela essencial, na identidade coletiva dos portugueses resulta bastante saliente o lado traumático, aquilo que os deprime. Tal característica, no entanto, não emana necessariamente dos fenómenos históricos e sociais que funcionam como referentes-chave em si, no caso a colonização ou o racismo, antes e sobretudo na persistência de determinadas interpretações que lhes são atribuídas. Retomo a tese expressa nos textos anteriores sobre a função decisiva das ciências sociais e humanidades, desta feita associada à validação e cristalização de interpretações sobre determinados fenómenos relevantes que, por sua vez, moldam fortemente os discursos de senso comum legitimados no espaço público formal. O problemático é que o statu quo que resultou desta génese tem alimentado, nestas décadas pós-coloniais, um conjunto de recalcamentos mal sucedidos verificáveis numa parte dos que partilham a identidade portuguesa pós-imperial, mas não menos numa parte dos que partilham as identidades africanas pós-coloniais, e que em conjunto têm sido tratados com seletividade (ou remetidos para a informalidade) pelos olhares das elites académicas e pelos olhares das respetivas elites políticas.
Sendo difícil aferir o peso proporcional do que designo por formal e informal, o facto é que os significados oficiais atribuídos à herança colonial – por motivos práticos não abordarei as relações raciais nestes textos – tipificam o que psicanalistas, psiquiatras ou psicólogos (os «psis») designam por desvio funcional depressivo da memória, no caso de memórias coletivas. E é nesse desvio que repousam as razões de fundo das crises permanentemente endémicas nas relações oficiais entre Portugal e Angola, mas também potencialmente entre Portugal e Moçambique, casos sintomáticos do modo como pretextos económicos, financeiros, legais, burocráticos ou simples fait divers escondem bloqueios identitários muitíssimo mais significativos. Ainda que com contornos específicos em cada caso, não ficam à margem deste jogo as relações de Portugal com o Brasil, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau ou Timor Leste, nem as relações entre quaisquer desses países entre si, excluindo Portugal.
A necessidade de um retorno crítico renovado aos significados do passado histórico comum aos espaços de língua oficial portuguesa dispersos pelo mundo é, por todas as razões, mais do que justificada. Tal retorno será bem mais útil se for espoletado de forma racionalizada, crítica, empiricamente sustentada do que se, em vez disso, avançar em rédea solta apenas orientado por simplismos ideológicos, emotivos ou de desforço. A intenção é muito mais a de procurar ultrapassar atitudes de impotência ou de frustração que condicionam as identidades coletivas do que abrir quaisquer caixas de Pandora. É também por isso que necessitamos de universidades ideologicamente serenas, capazes de autonomizar com clareza o seu campo académico/analítico em relação ao campo político/ativista. Independentemente das vontades de indivíduos ou instituições (nomeadamente académicas ou políticas), o contexto em que vivemos no século XXI ou o simples decurso das gerações imporão a renovação dos encontros com as memórias de senso comum, coloniais e pós-coloniais. É por essas e outras razões que este conjunto de textos, desde o início, tem procurado cruzar dois universos de sentido: o do conhecimento/pensamento académico (formal) e o do conhecimento/pensamento de senso comum (informal).
Sublinho que a colonização europeia, especificamente a colonização portuguesa, enquanto fenómeno social e histórico – reporto-me à colonização em África no século XIX e sobretudo no século XX, o período de ocupação colonial efetiva – oscila num contínuo entre um extremo desfavorável/negativo (escravatura, trabalho forçado, culturas obrigatórias, violência arbitrária ou racismo) e um extremo favorável/positivo. Não é por acaso que em Moçambique onde, desde 1997, venho realizando trabalhos de campo para recolher discursos de senso comum, com essa fórmula ou em fórmulas aproximadas, tenho registado um pouco por todo o país: Eles, os portugueses/brancos/colonos civilizaram-nos. Nos diálogos de rua depois os indivíduos conferem conteúdos concretos ao tipo de avaliação referida. E não se trata de avaliações circunscritas, episódicas, acidentais, antes de um fenómeno social que pode e deve ser equiparável ao outro que atesta a existência de um legado negativo da presença colonial europeia em África. Ambos são inegáveis.
Aqui reside o problema: no ato de truncar um desses extremos nas interpretações oficiais que se elaboram sobre o passado colonial português e europeu em África. Ao fazê-lo adultera-se a complexidade da memória, no fundo nega-se a memória enquanto tal, no sentido referido do desvio funcional depressivo das memórias coletivas, prejudicial para qualquer das identidades sociais que vive (ou sobrevive) nas cinzas dos antigos impérios europeus: ex-colonizados africanos e ex-colonizadores europeus. Nestas mais de três décadas pós-coloniais, de modo equivalente ao que acontecera no período colonial com sentido contrário, a atitude intelectual-oficial de truncar um dos extremos dos significados do fenómeno colonial aos olhos das próprias populações tem sido fortemente dominante. Acrescento que os discursos das pessoas comuns que vou recolhendo em Moçambique, a que recorro como exemplo, atestam com muita evidência que a colonização portuguesa nunca foi um fenómeno estático no tempo. A situação em 1974 era marcadamente distinta da situação em 1960 e por aí adiante.
Os obstáculos residem, desse modo, no facto de tais construções intelectuais seletivas terem sido institucionalizadas e cristalizadas nas universidades, as maiores responsáveis por se ter gerado uma tradição hegemónica de busca apenas do negativo na herança colonial portuguesa e europeia em África quando o negativo e o positivo existiram sempre profundamente imbricados um no outro. Em suma, existe um amplo conjunto de sociedades que tem vivido em dissonância cognitiva no que tem a ver com a gestão das suas longas e complexas memórias históricas, característica que explica os mais significativos bloqueios identitários do presente pós-colonial e pós-imperial, quer no interior de cada formação territorial nacional, quer no que tem a ver com as relações entre sociedades dispersas pelo mundo.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 

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