domingo, 24 de novembro de 2013

The Last Man to Die.

 
 
 
 
Robert Capa
The Last Man to Die
Leipzig, 18 de Abril de 1945
 
 

 
          Porque este ano é o centenário de Robert Capa, e porque dois fregueses habituais do Malomil, a N’Anonima e o Fado Alexandrino, tiveram palavras muito amáveis para com um texto que aqui escrevi sobre a morte de Capa, e porque no Malomil gostamos de agradecer a quem é amável connosco e apreciamos que a nossa clientela se sinta bem servida, a gerência mandou-me contar mais uma história daquele fotógrafo.
          aqui falei de imagens de Leipzig em 1945, captadas aquando da entrada dos Aliados. Fotografias de Lee Miller e de Margaret Bourke-White, imagens de um estranho e triplo suicídio. Na altura, as tropas norte-americanas entravam na cidade, com combates de rua e emboscadas de snipers. Robert Capa estava lá, evidentemente. If your photographs aren’t good enough, you’re not close enough, um dos seus ditos mais famosos, bem ilustrativo da bravata que caracterizava a sua personalidade (só a bravata, uma imensa e tremenda bravata, explica que tenha conseguido fazer a cobertura fotográfica de cinco – repete-se: cinco – guerras).
Mais tarde, recordou o momento em que, naquele dia 18 de Abril de 1945, se juntou à 2ª Divisão de Infantaria quando esta tentava atravessar a Ponte Zepellin, sobre o Canal Weisse Elster, e daí alcançar o centro da cidade. Escreveu Capa, tempos depois:  
          «The first platoon were already crossing it, and we were very afraid it was going to be blown up at any minute by the Germans. A fashionable four-story apartment building stood on the corner overlooking the bridge, and I climbed to the fourth floor to see if the last picture of crouching and advancing infantrymen could be the last picture of the war for my camera»

(in Richard Whelan, Robert Capa. A biography. Lincoln: University of Nebraska Press, 1985, pp. 235-236).
  
 
 
Robert Capa
Leipzig, Abril de 1945

 


Ao entrar no apartamento, viu dois jovens soldados a cobrirem a passagem das tropas pela ponte, disparando rajadas de metralhadora à varanda. Logo após Robert Capa os ter fotografado a recarregar a arma, uma bala de um sniper alemão atingiu um deles mortalmente, crê-se que no pescoço. A vida vira num segundo: o jovem teve morte imediata, ou quase. Capa manteve o sangue-frio e continuou a fotografar a chegada de reforços, que se acercaram novamente da janela e recomeçaram a disparar a partir da varanda. Depois, saiu dali e foi acompanhar aqueles que, na rua, foram no encalço do atirador furtivo. Descobriram alguns alemães, tendo Capa registado momentos de fúria e vingança. Não há a certeza, ou pelo menos não consegui apurar, se entre esses detidos se encontrava o autor do disparo fatal que vitimou o soldado americano. Segundo nos informa o volumoso álbum que a Phaidon dedicou à obra de Capa, a censura militar dos Estados Unidos não deixou que essas imagens fossem divulgadas (cf. Richard Whelan, Robert Capa. The Definitive Collection. Londres: Phaidon Press, 2001, p. 438).  

 
 
 
 
 
 
Robert Capa
Leipzig, 18 de Abril de 1945


 
 
 
Robert Capa
Victorious Yank,
Nuremberga, 1945
 
 
 
De facto, não seria bom exibir fotografias em que os vencedores ameaçavam esbofetear os vencidos, ameaçavam-nos com baionetas ou tentavam pontapeá-los no fundo das costas. Em contrapartida, a imagem triunfante de um soldado, fazendo uma saudação de vitória à frente da cruz gamada, teria honras de capa na edição de 14 de Maio de 1945 da revista Life. Além dessa foto de Capa, intitulada «Victorious Yank», no interior publicar-se-ia a sequência de imagens captadas no interior do apartamento de Leipzig. Graças ao extraordinário arquivo da agência Magnum, podemos aqui ver toda a série. A fotografia mais marcante, sem dúvida, é a do soldado tombado, já comparada a outra, celebérrima, em que Capa registara um republicano a cair, na Guerra Civil espanhola. Há mesmo quem diga que ambas formam um ciclo, duas imagens de soldados a cair, no preciso momento em que uma bala lhes ceifava a vida. Uma assinala o início da guerra; a outra marca o seu fim. As duas, todavia, são idênticas na apresentação da morte no preciso instante da sua ocorrência. The Last Man to Die, assim ficou conhecida a fotografia de Leipzig. Robert Capa, naturalmente, gostava que esta fosse a imagem que encerrava a 2ª Guerra, mesmo sabendo que, óbvia e infelizmente, aquele não era o último homem a morrer.
 
 

 
  
 
Na metralhadora, Clarence Ridgeway



 
 

 
 
 
A fotografia impressiona – e, aos olhos de todos, esse é o seu aspecto mais evidente – pelo sangue a alastrar no chão, como uma mancha de óleo a invadir o soalho. O enquadramento é extraordinário, sobretudo se pensarmos que ali, debaixo de fogo, nada foi encenado ou sequer pensado: um soldado tombado cujo rosto mal se vê, de pernas semiabertas, a cabeça encostada à porta. A porta de acesso à varanda cuja existência e alvura são realçadas pelo contraste de luz com a semiobscuridade do interior. Ao fundo, árvores de escassa folhagem, vagos prédios longínquos no que aparenta ser a margem de um curso de água. Uma porta de acesso à varanda e uma janela, ambas abertas de par em par, deixando entrar a luz que se projecta sobre um objecto burguês, um adereço de conforto: a cadeira de braços, cujas formas surgem recortadas suave e luminosamente. A porta e a janela formam dois blocos de luz, alternando com os dois blocos de sombra, ou mesmo negrume, constituídos pelas paredes. Os ferros déco da varanda confirmam que, como Capa dirá mais tarde, aquele era um edifício elegante ou, pelo menos, com pretensões estéticas («a fashionable four-story apartment building»). Os ferros da varanda e a cadeira acabam, de certo modo, por «humanizar» o que parece ser a imagem de um boneco derrubado e inerte. Adensam o surreal de uma cena tão crua e tão real, onde maior realismo não poderia haver. Sem o sangue, como se vê numa das primeiras imagens, a morte estava lá, adivinhava-se, mas não era absolutamente confirmada. É o sangue que atesta e certifica a irreversibilidade do instante decisivo. O sangue é definitivo numa dupla acepção: é ele que define a fotografia ao mostrar que aquela vida tinha definitivamente terminado. No chão, um objecto que tudo sugere ser a cápsula de uma bala – não, obviamente, da bala que matara o soldado, mas que este disparara antes de ser atingido por um outro projéctil. Há um outro pormenor, porventura o mais decisivo de todos para o desfecho letal do episódio. Falo de «episódio» pois é essa a palavra utilizada na reportagem da Life: este era um episódio, mais um, no decurso de uma guerra que matou milhões. O detalhe é o seguinte: em cima da cadeira é possível entrever um capacete. Pelo menos, tudo aponta para que seja um capacete. E, vistas as imagens anteriores, verificamos que o soldado morto não tinha capacete, ao contrário do que sucede com os que chegarão a seguir. É possível, ou até provável, que o soldado tenha deixado o seu capacete em cima da cadeira, antes de montar a metralhadora e começar a disparar no vazio. Não se sabe – ninguém saberá – se o jovem teria evitado a morte se acaso não tivesse pousado o seu capacete em cima daquela cadeira, elegante e burguesa.






 
A imagem é um retrato puro da solidão da morte. O companheiro de armas que acompanhava o soldado nos seus disparos já ali não está.  E a fotografia tanto impressiona quando vista isoladamente, na solidão de olhar uma morte solitária, como quando colocada em sequência, o que permite uma leitura de toda a cena como se de um filme se tratasse. Essa ambivalência é correcta: quando vistas pela ordem correcta, tal qual a Life as apresentou, as imagens dispensam legendas, é toda uma curta-metragem que decorre diante dos nossos olhos; somos capazes de perceber exactamente o que sucedeu, fotograma a fotograma. Mas, em simultâneo, a imagem adquire uma outra expressividade quando é vista sem o ruído do que aconteceu, antes e depois. A sequência do «episódio» é movimentada e ruidosa, até ensurdecedora. Em contraste, a imagem isolada suscita o vazio e o mutismo e evoca o total silêncio. Nada se ouve ou escuta, porque, ali, a vida já morreu.
 
 
 
 


 

          O edifício onde tudo isto ocorreu é actualmente conhecido como «Capa Haus». Apresenta sinais flagrantes de degradação. Os movimentos dos soldados no seu interior já foram objecto de uma montagem, exibida no Flickr por Rogerio Entringer. O prédio, esse, ameaça ruína. No mês passado, dois realizadores, Alina Cynarek e Frederik  Vogt, lançaram aqui  uma acção de crowd-funding, para poderem realizar um documentário sobre a passagem de Capa por Leipzig e resgatarem a memória de um prédio que ficou para a História devido a uma meia-dúzia de fotografias, uma das quais se tornaria célebre. Ninguém quereria conservar um prédio apenas por ali ter morrido um soldado de baixa patente, em 18 de Abril de 1945. O seu valor histórico não decorre do «episódio» em si mesmo, mas do facto de esse episódio ter sido intermediado e captado por Robert Capa. A casa, no nº 61 de Jahnallee, tem o nome de Capa, não do soldado morto.  Há iniciativas cívicas para a preservar, até um logótipo possuem, mas transferiram-se para o Facebook (http://www.capa-haus.com/). 


 

 


* * *
 
Raymond J. Bowman (1924-1945)
 



Nas fotografias da Life, os dois homens à varanda têm os rostos tapados. Mas hoje sabemos quem foi o last man to die. Chamava-se Raymond J. Bowan, nasceu em Rochester, Nova Iorque, em 2 de Abril de 1924 e morreu em Leipzig, em 18 de Abril de 1945. Pouco mais tinha do que vinte anos. E, curiosamente, a entrada que consta da Wikipedia está em alemão, não em inglês. Ao que parece, e a crer na Wiki, a identificação do morto na fotografia de Capa só ocorreu há dois anos, em Dezembro de 2011, sendo revelada pelo historiador militar Jürgen Möller e pelo Leipziger Volkszeitung. No utilíssimo Find a Grave conseguimos saber que Raymond era filho de George Bowman (1890-1931) e de Florence Rebecca Bowman (1891-1969). A mãe sobreviveu ao filho vários anos. Raymond alistara-se em Junho de 1943 e está sepultado na sua terra natal, Rochester, no Holy Sepulchre Cemetery, na Ala dos Veteranos, campa nº 482. As várias medalhas que recebeu estão aqui recenseadas. 

 
        

~.
 Além da fotografia de Capa, há uma outra que nos deve impressionar. Foi tirada a Bowman no dia do seu 21º aniversário, em 2 de Abril de 1945. Pouco depois, seria morto – e imortalizado pela objectiva de Robert Capa. Nesse dia, escreveu à mãe:
.

 
          «Dear Mom,

          You know what day this is, don’t you. Yes, I’m 21. Today I am a man».





 
Raymond J. Bowman
2 de Abril de 1945
 
,
          Enviou a carta e a sua fotografia nesse mesmo dia. Today I am a man, disse à mãe. Dezasseis dias depois, seria the last man to die. Falamos dele por ter sido literalmente imortalizado por Capa, não por ter sido morto. O mesmo que acontece, como vimos, com o edifício onde decorreu o «episódio». Se Capa não o tivesse fotografado morto, hoje não nos impressionaríamos ao vê-lo, sorridente no dia do aniversário, desconhecendo que dias depois seria atingido por uma bala fatal. É isso que a guerra tem de mais estúpido: um projéctil metálico de 3 ou 4 centímetros aniquila uma vida jovem, com 21 anos de idade, com tanto caminho por percorrer ainda, com tanta coisa para fazer. A vida vira num segundo.    


Lehmann Riggs
 
 


Lehmann Riggs é o sobrevivente desta história. É ele quem vai à varanda após a morte de Bowman e retoma os disparos de metralhadora. O posicionamento de cada um dos intervenientes, até as peças de mobiliário, são minuciosamente recordados por Lehmann, numa reconstituição completa, imperdível, aqui. Ao lado de Bowman estava Clarence Ridgeway, o section leader, e é ele quem dispara a metralhadora, sob o olhar de Bowman.  Ao que parece, Lehmann estava junto a um relógio de pêndulo, que mal se vê na fotografia de Capa, e presenciou a morte de Bowman; de imediato, foi ao andar de cima chamar o médico, que se vê rastejar na direcção do corpo. Para Lehmann Riggs, um dos atiradores encontrava-se no grupo de nazis que depois será detido. A cadeira, que atrás se referiu, ainda hoje existe. O relógio e a cadeira pertencem a Robert Petzold, que na altura tinha doze anos de idade e estava escondido com a mãe na cave do prédio.  

 

Robert Petzold

A cadeira de Leipzig










O ano passado, Riggs, com 92 anos, foi a Leipzig, sendo recebido com honrarias pelo burgomestre e homenagens à memória do camarada caído em combate. «War is horrible», disse. Deu várias entrevistas, uma das quais à Fox (aqui), outra aqui e outra aqui. Vale a pena vê-las (ou ouvi-las) todas.
 

 
 
 
Lehmann Riggs,
Leipzig, 2012

 Entrevista de Riggs
 
 
Com a congressista Diane Black
 
 
 


Não convém confundi-lo, como por vezes se pensa, com Hubert Strickland, o homem que surge na capa da Life como «Victorious Yank». A história de Hubert é curiosa: tinha sido ele que conduzira Robert Capa da Normandia até Paris, em Agosto de 1944. Mais tarde, Capa deixará Leipzig, onde fotografara o last man to die, regressando a Paris por razões não propriamente profissionais… De regresso a Paris, parou em Nuremberga e é no estádio dessa cidade, onde existia uma cruz suástica pouco depois arrasada, que reencontra Hubert, fotografando-o como  «Victorious Yank». Para que existisse um victorious yank, triunfando na capa da Life, muitos tiveram o mesmo destino do last man to die, cuja morte surge retratada no interior da revista. Naquele apartamento de Leipzig, mas com um destino diferente na vida, encontrava-se Lehman Riggs, que em 2012 foi saudado em Washington como um «verdadeiro herói americano» pela congressista republicana Diane Black, que  auxiliou Riggs a obter o passaporte que o levou a Leipzig, tantas décadas depois. A bala que matou Bowman, segundo a recordação de Riggs, fez ricochete na parede, voou pela sala e por pouco não o atingia a ele, escondido ao lado do relógio de pêndulo da família Petzold. Esta história aparece aqui, numa entrevista dada ao Tactical Life, uma editora e um site que publicitam as mais variadas e sofisticadas armas de fogo. Não me atrevo (quem sou eu?) a considerar condenável que Riggs recorde a morte do seu camarada, caído com uma só bala, fazendo-o num local que promove armas e munições. Mas, sem dúvida, a conclusão impõe-se: a vida é um lugar estranho.  
 
 
 António Araújo
 





 
 
 
 
 
 
 
 

6 comentários:

  1. :)) muito agradecida duas vezes, pela simpatia e pelo excelente post. (e já agora, também pelos links).

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  2. Muito obrigado.
    Este blog é muito simplesmente um poço de cultura. Se eu mandasse era subsidiado como são centenas de "agentes culturais".

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  3. Excelente texto! Há alguma polémica em torno da icónica imagem do miliciano republicano da Guerra Civil Espanhola. Arturo Pérez-Reverte, no «Pintor de Batalhas», escreve que nunca viu um soldado com as joelheiras tão limpas. Seja ou não uma encenação, a verdade é que a fotografia tornou-se uma das mais célebres de Robert Capa.

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  4. Obrigado a todos. São palavras imerecidas, mas que agradeço.
    Qaunato à foto da Guerra Civil de Espanha, só falar da «polémica» daria para um blogue inteiro.... todos os anos saem notícias a confirmar, ou infirmar, a veracidade das imagens.
    Um abraço
    António

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  5. Parabéns pelo maravilhoso texto e pela história repassada.

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  6. Sem palavras, este blogue está para lá de bom, está divinal! Continuem por favor!

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