terça-feira, 26 de novembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 3

 
 
 
 
 
Além do que referi nos textos anteriores, um outro fator explicativo do momento que atravessam as ciências sociais e humanidades (admito que se possa ir além deste domínio) é o das difíceis relações de vizinhança entre as diferentes disciplinas ou áreas académicas resultantes da consciência crescente da complexidade da condição humana e das idiossincrasias da vida em comum. Tal tendência está a conduzir ao esgotamento do modelo universidade tal como o conhecemos.
É adquirido que um dado fenómeno social pode ser abordado tanto pelo ângulo da história, como da sociologia, psicologia social, economia, literatura, direito, relações internacionais, jornalismo, antropologia, ciência política, arquitetura, entre outros. É por essa razão que há várias décadas foram-se constituindo mecanismos de aproximação entre as diferentes áreas do saber designados por interdisciplinaridade, multidisciplinaridade ou transdisciplinaridade, práticas hoje correntes. Tal caminho contribuiu indubitavelmente para que se ultrapassassem alguns bloqueios na elaboração de conhecimentos sobre a condição humana e sobre as sociedades, mas paradoxalmente também foram-se sempre avolumando novos obstáculos. Isso porque a colaboração entre as diferentes disciplinas académicas foi crescendo sem que as identidades originárias de cada uma delas fossem abandonadas. É nesse ponto que o sistema perdeu parte importante da sua funcionalidade. Significa que com o tempo alteraram-se de forma substantiva os pressupostos teóricos ou conceptuais de produção e regulação de conhecimentos, porém mantiveram-se as estruturas institucionais de funcionamento herdadas dos momentos primordiais do atual sistema académico. Tal incongruência entre novos pressupostos e velhas práticas de origem atingiu um ponto de estagnação que ajuda a fazer com que o ensino superior corra o risco de se tornar a prazo, ao menos em parte, em mais um dos muitos problemas sociais do que, em vez disso, funcionar como referente cuja razão de ser tem a ver com a capacidade de prevenir e preparar com sustentabilidade a ultrapassagem de obstáculos com que se confrontam as sociedades contemporâneas através do reforço da qualidade e renovação dos conhecimentos.
Neste passo importa esboçar uma retrospetiva. Em geral desde o século XIX, quando foram surgindo disciplinas como a sociologia, a economia (embora as teorias económicas remontem à época do mercantilismo), a antropologia, a psicologia social, entre outras, fazia sentido a compartimentação em diferentes áreas vocacionadas para o estudo das sociedades. As razões eram compreensíveis. Além da tradição especulativa da filosofia e do espírito positivista da época, a história andava focada na antiguidade clássica e a avançar para a idade média, fazendo o seu longo e lento caminhar, enquanto a compreensão do passado recente e do presente das sociedades ficava entregue a uma espécie de terra de ninguém. Tal vácuo foi sendo adequadamente preenchido na época por um conjunto de novas disciplinas empíricas. Mas isso na transição do século XIX para o século XX. A questão é que no presente, no século XXI, o contexto tornou-se substantivamente diferente, reclamando um novo reequacionar de dados. Por um lado, a história faz-se, se necessário, até ontem e, por outro lado, as outrora novas disciplinas tornaram-se também herdeiras de um passado secular, ao mesmo tempo que persistem em interessar-se até aos dias de ontem ou de hoje. Face a esta configuração original no campo da produção e regulação de conhecimentos, tendo também em conta as considerações sobre o estado das relações de vizinhança entre as disciplinas, é a própria ideia de universidade, tal como se institucionalizou, que acaba por estar em causa.
Um dos pesados obstáculos que torna muito difícil os inevitáveis ajustamentos resulta de ter sido criado e consolidado com o tempo um modelo de instituição universitária pesadíssimo e estático (com os seus departamentos, disciplinas, distribuição de recursos, conflitos de interesses, tudo muito compartimentado em disciplinas na lógica da tradição oitocentista) que tornou a construção de conhecimentos refém das estruturas administrativas e burocráticas das universidades quando deveria ser o contrário, isto é, quando deveriam ser as características do objeto de conhecimento – o indivíduo, a sociedade e o seu tempo histórico – a condicionarem os pressupostos que a ele conduzem. O imbróglio criado é de tal monta que se tornou num desafio para as sociedades no seu todo. O facto é que a condição humana com muita dificuldade convive hoje espartilhada entre a história, a economia, a psicologia social, a geografia, o direito, a sociologia, a antropologia, entre outros.
Num momento em que as incongruências no domínio académico são notórias, persistindo distantes de apontar para modelos sustentáveis (ora a tentação é a de regressar à pureza solitária de cada disciplina; ora de reforçar a inter, trans ou pluri disciplinaridades tal como têm funcionado), o que assistimos muitas vezes como preocupação visível entre académicos é a fuga acelerada para o campo político – nos discursos mas não menos nas práticas – com intuito de ajudar a resolver os problemas da sua sociedade ou do seu país quando o âmago dos problemas contemporâneos reside precisamente nas universidades.
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
 
 

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